Não escolheram ser solteiras, mas sentem-se pressionadas para casar
Duas realizadoras espanholas investigaram os mitos enraizados sobre as mulheres solteiras: descobriram testemunhos reais e revelaram preconceitos escondidos. Documentário Singled [Out] quer mudar a narrativa sobre o celibato feminino e pode chegar aos cinemas em meados de 2018.
O trabalho é uma prioridade para a advogada Yang, que “recusa diminuir as suas expectativas profissionais para encontrar um parceiro”. Porém, na China, ser uma mulher solteira com mais de 30 anos significa receber o rótulo de shengnu (o que pode ser interpretado, em português, como “sobras”). E a isto, conta, soma a pressão da mãe por não se casar. Melek vive sozinha em Istambul, é doutoranda, mas a sua liberdade pode estar em perigo porque a família e os amigos acreditam que uma mulher deve viver sob a protecção de um homem. Manu, professora e designer de moda espanhola, quer ser mãe e decidiu tentar engravidar por métodos artificiais, embora não tenha desistido de ter um relacionamento. Estas são algumas das histórias contadas em Singled [Out], um documentário que explora o estigma de “ser solteira”, enraizado em diferentes culturas de todos os cantos do mundo, e mostra os desafios de cinco mulheres que, na casa dos 30 e 40 anos, se sentem pressionadas para casar.
A ideia começou a surgir em 2013, quando a realizadora Mariona Guiu percebeu que ser solteira aos 30 e poucos anos era uma “preocupação pessoal” que se estava a “tornar numa obsessão”, conta por e-mail ao P3. Algumas amigas viviam com a mesma inquietação e nenhuma conseguia perceber o que estava errado. Mariona decidiu começar a procurar respostas. A sua intuição dizia-lhe que esta questão poderia “ser maior e mais global”. Investigou e descobriu que era possível transformar a experiência pessoal em algo positivo. Em conversa com a amiga e também realizadora Ariadna Relea, encontrou o ponto de partida do projecto: juntas reflectem sobre o lugar do amor na era moderna, na qual permanecer solteira ainda é “um tema fortemente estigmatizado”.
O simples facto de questionarem o que está errado em ser solteira nos dias actuais é, para esta dupla, um indicador a ter em conta. Elas próprias passaram por isso e usaram estas dúvidas como uma “boa bússola” para orientar a investigação. Durante o processo descobriram que ser mulher e estar solteira continua a ser um estigma cultural de discriminação, que a comunidade científica chamou de singlismo (o que será equivalente, em português, a “solteirismo”). E este preconceito, integrado na realidade social, afecta a forma como as mulheres pensam e se justificam: algumas desfrutam da liberdade de ser solteiras, mas frequentemente têm medo de falhar com alguém, seja a família, a sociedade ou até com elas próprias.
Um problema nem sempre reconhecido
Ariadna e Mariona queriam perceber se o estigma e a pressão social, relacionados com o papel da mulher, continuavam a ser um tema que, muitas vezes, não é reconhecido. E, logo no início do projecto, notaram algum cepticismo porque, ao conversar com as pessoas, elas duvidavam de que se tratasse de um problema real.
A existência deste estigma levou as realizadoras de Singled [Out] a procurar aprofundar as ansiedades que as mulheres solteiras enfrentam. “As mensagens que as mulheres recebem, que nos alcançam de diferentes maneiras a nível social, têm um impacto muito importante na forma como nos vemos quando estamos solteiras. Estamos numa encruzilhada de mensagens contraditórias: por um lado, de que somos mulheres livres para escolher o nosso futuro (estudos, trabalho, etc.), mas, ao mesmo tempo, de que esse futuro deve ser partilhado como casal”, escreveram ao P3. Diferentes culturas, contam, perpetuam “mitos” que mantêm o casal como “status quo da sociedade”, mas “o conceito de família está a evoluir”. “Há cada vez mais mulheres solteiras, mães solteiras e não mães”, dizem. Isto acontece numa sociedade onde “o individualismo avança como o centro da equação”. E acrescentam: “Agora, pela primeira vez, o número de solteiros excede o número de pessoas casadas em muitas partes do mundo”.
Nesta tentativa para mudar a narrativa sobre o celibato feminino, continuam a surgir vários tipos de discriminação. A primeira vinda da família e dos amigos, que pressionam para casar e ter filhos e não compreendem as decisões tomadas por algumas mulheres que deixam as relações para segundo plano. Ariadna e Mariona revelam diferentes motivos que levam as mulheres a continuarem solteiras: “Algumas ainda estão ancoradas à ideia de um casal, outras não querem isso, mas recebem pressão das famílias, outras descobrem-se a si mesmas e não querem tanto ter um relacionamento como tinham imaginado”. Este preconceito em relação à mulher solteira contribui ainda para uma marginalização a nível profissional e da sociedade em geral. “A pesquisa mostra que o singlismo contribui para a discriminação das mulheres nos empregos, nos mercados imobiliários, na política, nos meios de comunicação e, em geral, no quotidiano”, contam.
No documentário — produzido com o apoio de uma campanha de crowdfunding lançada na plataforma Kickstarter em 2017 e com lançamento nos cinemas da Europa e Austrália previsto para meados de 2018 —, o demógrafo espanhol Albert Esteve explica que a entrada da mulher no mercado de trabalho alterou a “concepção tradicional de uma relação”, o que significa que a mulher já não sente a mesma necessidade de se casar. Este pensamento é corroborado pelas duas realizadoras: “O acesso das mulheres ao mercado de trabalho muda tudo. Escolher estar com alguém é uma opção e não tanto uma necessidade, e isso modifica os parâmetros nos quais as relações heterossexuais se basearam até agora”.
Ser solteira: escolha legítima ou erro?
Se ser solteira deixar de ser um tabu e for aceite como uma escolha legítima da mulher será possível ter “uma nova concepção da individualidade feminina” — distinta tanto na forma como a sociedade olha para o papel da mulher como no interior da mente de cada uma. A “cultura do apego”, lamentam, continua “muito enraizada” e as mulheres experienciam um sentimento de aprovação pessoal ao serem “capazes de criar e manter um relacionamento emocional com alguém (primeiro o casal e, depois, a família)”.
Eva Cox, socióloga australiana, é uma das especialistas entrevistadas do documentário e reforça o mote do projecto das catalãs. “O facto de terem começado a realizar este filme é um sinal da dimensão da tragédia: [existem] mitos muito enraizados que as mulheres assumem, como o de que se não queremos ter um companheiro é porque algo está mal, que se não conseguimos encontrar uma pessoa é porque erramos em alguma coisa.” E, sublinha, ter um parceiro e mantê-lo é a forma como muitas mulheres procuram validação na comunidade onde vivem. Algo que acontece porque “o modelo da sociedade actual está focado na posse”.
Para as realizadoras, este documentário surge num “momento de choque de valores” e é essencial para ajudar a reflectir sobre este “caminho ainda sem saída”. Porque, defendem, é necessário “romper de uma vez por todas com este estigma” e que “as mulheres solteiras parem de perguntar onde falharam”.