A igualdade chegou aos vícios
As mulheres portuguesas estão a beber mais, a fumar mais e a consumir mais drogas. A vida de três portuguesas que passaram a juventude no Estado Novo e a de quatro raparigas de 20 anos mostra como os hábitos e a condição de mulher se alterou muito ao longo das últimas décadas.
Sentadas no sofá em casa de uma delas, conversavam sobre a vida agitada das mulheres actuais e comparavam-na com os tempos em que elas eram jovens. “Na nossa época, só quando casávamos é que tínhamos um bocadinho mais de liberdade”, diz Luísa Saldanha, de 83 anos. “Mas para viajar ainda tínhamos de ter autorização do marido e nem sequer podíamos, por lei, gerir o nosso dinheiro. Éramos dependentes deles”, recorda Assunção Magalhães, de 89 anos. Rosa Maria, de 85, acrescenta: “Vivíamos mais fechadas em família.” Assunção resume: “A liberdade não era sequer tema.” Mas, para algumas destas mulheres, casar significava poder estar com os homens de quem gostavam, tendo em conta que nos tempos da sua juventude, antes do casamento, “só se davam uns beijos”, até porque havia “pânico de engravidar. Durante uma conversa com o P2, estas três mulheres e amigas percorreram a memória dos anos 40 e 50 do século passado, nos quais viveram a adolescência e juventude, em pleno Estado Novo e com a II Guerra Mundial pelo meio.
À mesa de uma esplanada do Jardim das Amoreiras, em Lisboa, quatro jovens de 20 anos bebiam um café, enquanto, animadas, pensavam sobre o casamento. “Para nós, é o contrário. Quando casarmos, é que vamos perder a liberdade”, acredita Maria Carvalhosa. Ela e as amigas — Mariana Cazal Ribeiro, Leonor Andrade e Luísa Ferreira — gostam de estar juntas, de sair à noite e de se divertir. E, antes de se casarem e terem filhos, garantem que têm uma imensidão de coisas para fazer.
Muito se alterou desde que Assunção, Luísa e Rosa Maria tinham esta idade. Ao longo destes 70 anos, o comportamento das mulheres mudou radicalmente. Foram ganhando terreno no meio académico, no mundo laboral e na esfera privada. E, ao mesmo tempo, adquiriram hábitos que durante décadas eram associados aos homens. Nunca, asseguram vários estudos, as mulheres fumaram tanto, beberam tanto álcool e consumiram tantas drogas. Num inquérito divulgado em Setembro do ano passado, feito pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), organismo dependente do Ministério da Saúde, os números revelam bem esta realidade, com a prevalência de certos hábitos no sexo feminino.
A disparar entre 2001 e 2017, o consumo de álcool nas mulheres passou de 66,4% para 81,3%, o de tabaco de 25% para 40,7%, o de cannabis de 3,9% para 6,5%, e o de cocaína de 0,3% para 0,6%. Por outro lado, fenómenos como a ingestão de cinco ou mais bebidas num só momento (conhecida como binge) teve um aumento muito grande entre as mulheres, passando de 0,8% para 3,7%. De tal forma que, segundo referem os autores do trabalho do SICAD, hoje em dia 2,8 % das mulheres bebem até ficar embriagadas, em especial entre os 35 e os 44 anos — destas, 3,3% ficaram embriagadas.
“Isso era impensável no nosso tempo. Era raro uma mulher beber demais”, nota Assunção Magalhães, explicando que em muitas famílias as filhas, solteiras, bebiam vinho à mesa com os pais. Depois, mais velhas e a maioria já casada, quando iam a festas ou a boîtes bebiam então um “vermute ou um vinho de porto”, refere Luísa. “Ou um whisky”, acrescenta Rosa Maria. Cerveja, nem pensar, dizem, nunca imaginando que se tornasse um hábito comum como é hoje “ver uma mulher de cerveja da mão.”
Actualmente, 36% das raparigas com 18 anos bebem cerveja com regularidade. “E as mais novas bebem cerveja atrás de cerveja sem problema na rua à tarde e à noite”, observa Luísa, recordando que, quando era adolescente, bebia “limonada e laranjada”. Admitindo que, nessa altura, não imaginava que viessem a existir locais, como o Largo de Santos, em Lisboa, onde miúdas de 13 ou 14 anos se misturam com amigos a beber álcool.
Com essa idade, as mulheres ficavam em casa a conversar, a ler ou a dormir, recorda Assunção. “Não víamos sequer televisão, pois só apareceu em 1955”, acrescenta Rosa Maria. “Para nós, não havia fins-de-semana. Todos os dias eram iguais porque não havia saídas à noite”, nota.
Agora, 13,4% das portuguesas com 13 anos costumam sair à noite uma ou duas vezes por semana com amigos. Além disso, passam o tempo na Internet (65% usam-na todos os dias), passeiam todas as semanas pelos centros comerciais (21,6%) e apenas 13,1% lêem todos os dias. Os dados são de um outro estudo do SICAD, coordenado por Fernanda Feijão, onde se analisaram os hábitos dos alunos e alunas do ensino público entre os 13 e os 18 anos. E confirmam a mudança no comportamento: entre as portuguesas de 13 anos, 26,3% já experimentaram álcool e, quando chegam aos 18 anos, 90,8% delas já consumiram bebidas alcoólicas — praticamente o mesmo do que os rapazes da mesma idade (91,4%).
“Ao contrário do que acontecia no início do século XX na maioria dos países ocidentais, onde os homens bebiam duas vezes mais álcool, hoje em dia o consumo entre homens e mulheres tornou-se quase igual”, confirma Anne Cova, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “Naquela época, o consumo de álcool era habitual nos homens, que depois do trabalho socializavam nos cafés enquanto as mulheres trabalhavam dentro de casa.” Segundo a investigadora, para os homens, as bebidas alcoólicas eram “um símbolo de força, de virilidade e de socialização”. Já “a sobriedade”, diz, era considerada uma qualidade para as mulheres respeitáveis.
“Com o trabalho das mulheres fora de casa e com a sua emancipação financeira, as ocasiões de beber para as mulheres multiplicaram-se”, sublinha. Cova refere que “quanto mais a igualdade de género é respeitada num determinado país, menos diferenças de género existem em consumo de álcool”.
Rapazes e raparigas empatados
Foi a essa nova realidade que chegaram os autores de um relatório europeu que analisaram os consumos de álcool, tabaco e drogas nos últimos 20 anos, concluindo que em 1995 os rapazes revelavam percentagens mais elevadas em todos os indicadores e que duas décadas depois, em 2015, essas diferenças “já não existem ou tornaram-se muito pequenas”.
Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e investigadora da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, especialista no estudo das questões da adolescência, também garante que é assim: “Há uns 20 anos, os homens fumavam e bebiam mais. Depois deu-se um ‘empate técnico’”, diz, explicando que ainda não acontece as raparigas fumarem e beberem mais do que eles nestas idades mais jovens.
No entanto, alguns estudos têm demonstrado que existem sinais de que as mulheres estão a ultrapassar os consumos do sexo oposto em algumas situações concretas. Entre os jovens com 13 anos, as raparigas (5,4%) já se embriagaram mais do que eles (4,7%) e consomem mais bebidas destiladas e mais misturas, indica aquele mesmo estudo coordenado por Feijão.
“Hoje as raparigas ficam bêbedas mais rápido e apanham muitas bebedeiras”, diz Mariana Cazal Ribeiro, enquanto uma das colegas a interrompe para acrescentar: “Há até muitas miúdas novas com intoxicações alcoólicas.” E revela: “Eu já tive de ir ao hospital por ter bebido demais.” Todas admitem ter a noção de que a geração delas bebe mais e mais cedo. “A minha mãe ficou de boca aberta quando lhe disse que bebia sozinha uma garrafa de vinho à noite”, relata uma das jovens. E confessam não saber o motivo para este aumento do consumo de álcool.
Mas Anne Cova dá uma explicação: “Hoje o consumo de álcool é sinónimo de festa e de integração dentro de um grupo.” Mas as adolescentes fazem-no por razões diferentes das dos rapazes, alerta Margarida Gaspar de Matos. Para esta investigadora, os motivos e o padrão do consumo de rapazes e raparigas parecem ser diferentes. “Por exemplo, no tabaco, as meninas tendem a fumar preferencialmente para regular estados emocionais, e os rapazes pela ‘acção’ em si; no álcool, os rapazes tendem mais a beber durante o dia e regularmente todos os dias, enquanto a meninas bebem mais frequentemente quando saem à noite e no fim-de-semana.”
Mulheres a fumar cada vez mais
Na mesa das quatro amigas, na esplanada do jardim das Amoreiras, vão-se juntando outras raparigas. Várias fumam. “Acho que todas começam para se integrarem no grupo”, diz Mariana Ribeiro, continuando: “Quase todas as minhas amigas fumam, menos eu e uma ou outra.” Estão cientes dos perigos, mas não pensam verdadeiramente neles.
“Nos anos 50/60 já havia mulheres a fumar, mas não era frequente”, lembra Assunção Magalhães. Era até mal visto pela sociedade, relatam os autores do estudo Tabagismo em Portugal, que analisaram os consumos de cigarros no país ao longo das décadas. Os especialistas do Serviço de Higiene e Epidemiologia, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e da Faculdade de Economia da Universidade do Porto garantem o facto de nas décadas anteriores aos anos 70 a “ideologia dominante não considerar aceitável o consumo de tabaco pelas mulheres” levou a que as que fumassem fossem, na sua maioria, as mais novas e mais escolarizadas, principalmente as que nasceram na primeira metade do século XX. Desde aí, asseguram, a prevalência de fumadoras foi crescendo. O que foi sendo registado pelo Inquérito Nacional de Saúde, que ao longo dos anos avaliou amostras probabilísticas da população de Portugal continental: em 1987, 5% das mulheres diziam fumar pelo menos um cigarro por dia; em 1995/96, esse número aumentou para 6,5% e em 1998/99 estava nos 7,9%. Agora, em 2017, a prevalência de tabaco ao longo da vida entre as mulheres dos 15 aos 64 anos atinge os 40,7%, aproximando-se dos valores dos homens (56,07%).
Assunção e Luísa fumaram depois de casarem — a primeira em 1958; a segunda em 1960. “Fazíamos porque os outros faziam”, assume Luísa Saldanha, que fumava pouco, apenas gostava de saborear a seguir ao jantar as cigarrilhas que um amigo mandava vir de Cuba.
E Assunção não tardou em desistir quando o médico alertou o marido para os problemas de saúde. Foi um cancro no pulmão que a fez ficar viúva em 1975. “Dantes, os homens é que morriam de cancro nos pulmões, mas agora também há muitas mulheres”, constata, recordando o estudo da Direcção-Geral da Saúde que saiu em Setembro passado revelando um aumento da mortalidade feminina por cancro no pulmão: em 2015, morreram 980 mulheres com doenças associadas ao tabaco, mais 15% do que no ano anterior. Uma tendência contrária à dos homens e que, segundo o relatório do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, se verifica desde 2011, ano em que 811 doentes do sexo feminino perderam a vida por causa deste tumor.
Mas, na época em que Assunção e Luísa fumavam, nada se sabia ao certo sobre os riscos, lembram os especialistas que fizeram aquele estudo sobre o tabagismo, ao contarem que, apesar de nos anos 60 “a relação entre tabaco e cancro do pulmão estar já estabelecida, as medidas legislativas e as políticas públicas no sentido da prevenção e combate ao consumo do tabaco só se generalizaram durante a década de 1980. “Lembro-me desde criança de ver mulheres a fumar. Mas as mulheres das classes trabalhadoras não me lembro que fumassem”, diz Maria José Magalhães, investigadora e Presidente da UMAR — União de Mulheres Alternativa e Resposta.
Muitas fumavam às escondidas. “Não me esqueço de ter ouvido uma tia que descobriu que a filha fumava a dizer-lhe que preferia saber que ela tinha morrido do que descobrir que fumava”, conta Luísa, explicando que não era comum ver na rua mulheres de cigarro na mão. “As primeiras que me lembro de ver com regularidade eram as estrangeiras que vieram para cá com a II Guerra”, recorda. “E também as actrizes de cinema”, acrescenta Rosa Maria.
A guerra e as estrangeiras modernas
A Segunda Guerra Mundial, garantem, teve grande impacto na mudança de comportamento do sexo feminino em Portugal. Por um lado, pelo mundo, levou as mulheres a assumirem outras funções, como substituir os homens nas fábricas. Por outro, trouxe refugiadas estrangeiras para Portugal que “eram mais evoluídas e modernas”, recorda Assunção. E as portuguesas começaram a imitá-las, em especial as das classes mais elevadas. “Fumavam, bebiam e vestiam-se de forma diferente”, recordam as três amigas, lembrando que o Portugal do Estado Novo era muito atrasado em relação aos avanços sociais e culturais de outros países.
“A moda chegava cá com muitos anos de atraso”, dizem. Luísa Saldanha ainda se lembra de estar em Trancoso, Guarda, e toda a gente ir ver uma mulher de calças. “Era uma brasileira que era cunhada de uma pessoa da zona”, diz, apontando, sem certezas, para 1958. As calças tinham sido usadas pelas mulheres durante a Segunda Guerra, quando tiveram de substituir os homens em alguns trabalhos, nomeadamente nas fábricas de armamento. E desde aí foram-se impondo na moda feminina — com Coco Chanel e outros estilistas a lançar calças para mulheres.
Apesar de as duas guerras mundiais terem permitido que a mulher assumisse papéis que lhe estavam vedados, não foi definitivo. “Durante a II Guerra, as mulheres substituíram os homens nas fábricas, mas depois do fim do conflito, quando os homens regressaram, elas foram empurradas de novo para o lar”, sublinha Anne Cova. Para a investigadora, essa situação mostra “uma realidade complexa”. “As guerras permitiram que as mulheres trabalhassem fora da casa e exercessem novas profissões, tendo um papel emancipador. Mas o pós-guerra foi um período de refluxo profundamente conservador, porque as mulheres foram consideradas pelos seus colegas masculinos como intrusas.”
A pílula
Se as guerras impuseram algumas mudanças, uma invenção médica que surgiu logo no início dos anos 60 trouxe uma verdadeira revolução para a mulher. A pílula foi aprovada no dia 18 de Agosto 1960, pela Food and Drug Administration, o organismo norte-americano que tutela os medicamentos. Dois anos depois, chegou a Portugal a Enovid-10. “Essa foi a grande libertação da mulher”, considera Anne Cova.
“Deu liberdade pessoal para decidir melhor sobre a vida íntima e sexual. Antes da pílula, as mulheres ou se sujeitavam ao acaso ou recorriam à abstinência, ou a outros métodos que não eram eficazes; ou os maridos emigravam”, explica, por seu lado, a investigadora Maria José Magalhães, que na sua tese de mestrado Mulheres, Espaços e Mudanças: o Pensar e o Fazer na Educação das Novas Gerações (apresentada em 2005 na Universidade do Porto) tinha constatado que as “vidas das mulheres, sobretudo as das classes trabalhadoras, era marcada com gravidezes todos os anos, alta taxa de mortalidade infantil e materna, abortos e desmanchos”. As portuguesas, sobretudo nas zonas rurais, garante, eram “escravas do seu útero”.
Depois de casarem, as mulheres passavam anos grávidas, confirmam as três amigas. Por isso, quando a pílula chegou a Portugal, Luísa — que tinha passado os dois últimos anos à espera de bebé — não hesitou. “Fui ao médico e disse que queria tomar [o contraceptivo], pois desde que me casara tinha estado sempre grávida”, conta, recordando o dia em que foi ao consultório do médico Manuel Neves e Castro — que terá sido o primeiro clínico a utilizar a pílula em Portugal. Isto com as amostras de Enovid-10 que trouxe quando em 1960 regressou dos EUA, onde esteve a trabalhar sob orientação do professor Gregory Pincus, o “pai” da pílula.
Rosa Maria nunca quis experimentar o método, com receio de trair a Igreja. Pertencia a um grupo de casais católicos e o Vaticano contestava o método. “Nas missas, os padres até diziam que [o contraceptivo] era abortivo”, recorda Assunção. Mas a pílula, asseguram todas, foi o que mais fez mudar a mulher, que passou a sentir que podia controlar a sua vida.
Em Portugal, porém, o impacto foi mais lento. “O Estado Novo discriminava tudo o que implicasse modernidade”, nota Ana Margarida Garcia na tese Moda Feminina no Estado Novo, que concluiu em 2011 na Faculdade de Arquitectura e onde mostra que a adesão da mulher a este método revolucionário não foi imediata. Isto a avaliar pelos II Inquéritos à População Universitária, promovidos pela Juventude Universitária Católica em 1964/65, nos quais 83,4% das raparigas consideravam a virgindade importante para a felicidade do casamento e 90% encaravam como “repreensível” ou “perigosa” a actividade sexual antes do casamento. E só 7,2% das raparigas aprovavam o uso dos meios contraceptivos com resultados comprovados — 50,9% apenas aceitavam o uso de métodos naturais.
“Hoje, a pílula tornou-se uma banalidade”, nota Margarida Gaspar de Matos. Mariana Ribeiro e as amigas confirmam: “Sim, todas as raparigas tomam”, dizem, calculando que a média de idades com que iniciam o consumo se situa nos 16 anos. A ideia de manter a virgindade até ao casamento é desvalorizada. “Só aquelas raparigas que pertencem a grupos muito católicos às vezes falam disso”, contam. Já nas gerações das avós, a virgindade era uma das características mais apreciadas, garante Julieta de Almeida Rodrigues, no estudo Continuidade e mudança nos papéis das mulheres urbanas portuguesas: emergência de novas estruturas familiares, publicado na revista Análise Social. “A virgindade pré-matrimonial era considerada a melhor garantia que a rapariga podia oferecer, porque mostrava que não tinha propensão para a infidelidade. Ainda era do consenso geral que, se a rapariga preservasse a sua virgindade até ao casamento, seria mais tarde uma esposa fiel por não ter criado maus hábitos.” Mas a pílula, a diminuição do peso da Igreja e outros factores, como a independência financeira das mulheres, notam várias investigadoras, mudaram esta forma de pensar.
Donas de casa
“Para as jovens de hoje, o sexo já não é tabu”, garante Margarida Gaspar de Matos, especialista em questões relacionadas com a adolescência. “É uma coisa perfeitamente natural”, refere Luísa Ferreira, notando, contudo, que, tal como no passado recente, a sociedade continua a ser mais exigente com o comportamento da mulher. “Quando um rapaz tem muitas namoradas, é muitas vezes elogiado, mas, se isso acontecer com uma rapariga, há mais críticas.” A verdade, concordam todas, é que a pílula dá mais poder à mulher para decidir.
“Foi de facto um marco histórico na individualização da sexualidade da procriação e neste momento já nem é a única opção para as mulheres gerirem o tempo de procriação”, observa Gaspar de Matos. Além disso, lembra, também mudou a ideia de que era obrigatório uma mulher ter de deixar herdeiros: “Os jovens tendem a ter menos filhos e cada vez mais tarde. E há cada vez mais jovens mulheres que dizem que o seu projecto de vida não inclui ter filhos.”
As consequências sociais e demográficas estão ainda por estabelecer, adianta Margarida Gaspar e Matos, para quem não há dúvidas de que “a prioridade das jovens é hoje encontrar um trabalho gratificante, pessoal e economicamente, serem autónomas”.
É exactamente a essa conclusão a que chegaram os autores do estudo Prioridades das mulheres antes de serem mães, divulgado em Julho de 2017, coordenado pela Sociedade Portuguesa de Contracepção e patrocinado pela empresa farmacêutica francesa HRA Pharma. Em todas estas gerações, conclui-se, as mulheres “dão hoje mais prioridade a viajar, poupar dinheiro ou progredir profissionalmente do que a casar-se, comprar casa ou ter um filho”.
Entre as jovens de 20 anos, apenas 16% dizem que ter um filho fazia parte das prioridades na vida. Já 46% pensam antes em poupar dinheiro e viajar. Entre as mulheres de 30 anos, a maioria (60%) assume que quer poupar e progredir no trabalho (58%) — só 31% dizem desejar filhos.
“Filhos?... não sei... só muito mais tarde”, diz Maria Carvalhosa. A amiga Mariana até diz que não se imagina neste momento a ser mãe: “Agora nunca... mais tarde acho que sim.” De todas, só Luísa Ferreira assume ter o sonho de casar e ter filhos rapidamente. “Penso muito nisso”, confessa. Mas é a única. Para as outras, casar é algo que está muito longe. E enxoval, fazem? “Enxo... quê?”, pergunta uma delas. Olham umas para as outras à procura da resposta e depressa chegam à conclusão de que não fazem ideia do que significa a palavra.
Em décadas passadas, fazer o enxoval era uma prática comum e significava guardar objectos, como conjuntos de cama e panos de cozinha, para levarem quando casassem. “Isso não fazemos”, diz Mariana enquanto lança uma gargalhada ao imaginar: “Hoje, muitas de nós nem sabe cozinhar.”
Durante o Estado Novo, a mulher perfeita “era mãe, esposa e dona de casa”, disse Irene Flunser Pimentel numa entrevista ao programa Ler+ na RTP. No seu livro A cada Um o Seu Lugar, a historiada explica que o papel da mulher era “caseiro”. O suposto era apenas casar, obedecer ao marido, ter filhos e educá-los. Foi este conjunto de imposições que a tornaram feminista porque, sendo jovem na época, não aceitava que as mulheres ficassem reduzidas a essa função. Um papel que nem sequer era aplicado a uma grande parte das mulheres. “As do povo tinham de trabalhar”, nota a investigadora, recordando que as mulheres rurais ou dos sectores operários sempre trabalharam. E eram estas que também sentiam a submissão aos homens com quem casavam.
“Na classe operária, o marido parecia mais propenso a exercer a autoridade e ocupava claramente a posição de uma figura autoritária”, descreve Julieta de Almeida Rodrigues naquele estudo, acrescentando que, “nas famílias da classe média, o elo entre o marido e a mulher parecia ser mais o de um casal imbuído por um ideal de camaradagem”. Seja como for, o ideal de mulher passava por tratarem bem da casa. De tal forma que, segundo o estudo de Julieta Rodrigues, na véspera do 25 de Abril, Portugal tinha 68,9% de donas de casa entre as idades de 20 e 54 anos. Quase todas eram activas, mas poucas tinham uma profissão.
Em 1971, das 3,7 milhões mulheres potencialmente activas, 2,8 milhões tinham ocupação. Do universo total, menos de 20% das portuguesas exerciam uma actividade remunerada, segundo dados do livro O Mercado de Trabalho e a Mulher, de Antónia de Sousa, publicado pela editora Arcádia em 1971.
“Gostava de ser actriz”, conta Mariana Cazal Ribeiro, que este ano não está a estudar porque acabou o 12.º ano na escola profissional Magestil, onde fez o curso de Marketing, e sentiu que não sabia bem o rumo a seguir. “Por isso, estou a aproveitar para fazer uns trabalhos, como ajudar nos check in dos hóspedes que chegam para ficar em casas de arrendamento temporário.” Maria Carvalhosa, por seu lado, sonha ser cantora. “Adorava.” Está no 2.º e último ano da Escola de Tecnologias Inovação e Criação (ETIC) a estudar Produção Musical e está a ponderar tirar ainda outro curso. Já tentou participar no concurso de talentos musicais Ídolos e ainda acredita que pode conseguir seguir a carreira, mas tem receio de que seja muito complicado. Neste momento, está a acabar o curso, onde é a única rapariga de uma turma de 30 alunos.
Na turma de Luísa Ferreira, por exemplo, que estuda Comunicação Social na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, o cenário é o oposto. “Há 100 raparigas e 30 rapazes.” Hoje, confirmam, há muito mais raparigas do que colegas do sexo masculino a sair das faculdades.
“Pelo menos há uma década que a população que estuda e sai da faculdade é predominantemente feminina e, na maior parte dos empregos regulados, há a regra do salário igual”, refere Margarida Gaspar de Matos. Mariana Cazal Ribeiro e as amigas dizem que sentem que têm boas hipóteses de ser bem-sucedidas, mas admitem que as oportunidades não são ainda totalmente iguais. “Em alguns empregos, quem contrata tem sempre medo de que as mulheres engravidem”, diz Leonor. Apesar disso, sentem que é possível uma mulher chegar longe. Um sentimento que, garante Maria José Magalhães, mostra o quanto as mulheres mudaram. “Uma das principais mudanças desde o início do século XX situam-se no acesso aos direitos — o direito à educação nas primeiras décadas do século XX; o direito de voto até 1976 (ano em que as mulheres tiveram acesso ao voto universal, até aí foram podendo votar diferentes grupos de mulheres, mas não todas); e o direito ao emprego pago fora do lar, que só é completamente concretizado a seguir ao 25 de Abril.”
A investigadora Anne Cova concorda: “As mulheres mudaram de comportamento com o trabalho fora de casa, que lhes permitiu receber um salário. Por isso, o direito ao trabalho é fundamental na história da emancipação das mulheres”, diz, acrescentando que as “feministas da primeira vaga, ou seja, da primeira metade do século XX, tinham já percebido isso e, consequentemente, reivindicavam o direito ao trabalho, bem como o direito à educação e o direito de voto”.
Luísa Saldanha adorava ter sido médica. “Gostava de ter ido para a faculdade, mas não me deixaram”, recorda. Fez o liceu até ao antigo 7.º ano e depois nunca mais estudou. Fez um curso de cozinha e dedicou-se à família, onde, entre os filhos, alguns são médicos, um deles uma rapariga, pediatra.
Assunção, por seu lado, gostava de Arquitectura. “Mas era uma profissão que não passava pela cabeça das mulheres”. Por isso, depois de acabar o 7.º ano, estudou Serviço Social e foi das poucas, entre as suas amigas, que chegou a trabalhar, sendo uma das fundadoras, nos anos 50, das creches dos CTT, que funcionaram no 7.º andar na Praça D. Luís, em Lisboa.
Era a mais nova de 12 irmãos e os pais, diz, deram-lhe alguma liberdade. Por isso, esteve a dirigir aquela creche que o administrador-geral dos Correios, Telégrafos e Telefones, na época — o Correio-Mor Luís Couto dos Santos — decidiu criar para acolher os filhos das dezenas de telefonistas que eram responsáveis por todas as chamadas nacionais e estrangeiras feitas no país. “Elas não podiam casar porque se alegava que podiam partilhar com os maridos os segredos que podiam ouvir nos telefonemas. Mas começaram a ter filhos e, como mães solteiras, não tinham onde os deixar e, para não faltarem ao trabalho, criou-se aquela creche, recorda Assunção, que pouco antes de casar deixou de trabalhar para ir viver com o marido para o Porto. “Mas não fui infeliz por isso”, garante. “O ideal da época era casar e ter filhos”, recorda.
Um ideal que era vedado a outras mulheres que trabalhavam, para além das telefonistas. “As enfermeiras hospitalares estavam proibidas de casar e as professoras tinham de pedir autorização, que vinha em Diário da República. Além disso, para que o casamento fosse autorizado, o marido tinha de ter um emprego em que ganhasse mais do que a professora”, recorda Maria José Magalhães, notando que as lutas feministas foram determinantes para as mudanças sociais na vida das mulheres, tanto nas primeiras décadas do séc. XX como a seguir ao 25 de Abril até à actualidade.
Desde 1974 que a mulher não parou de mudar, sublinham as historiadoras. Ganharam independência financeira e isso permitiu que passassem a agir de forma diferente. E hoje são a maioria nas escolas, universidades e cursos de qualificação. Mas ainda continuam a ganhar menos e a não escolher áreas que por razões culturais são mais ligadas ao sexo masculino, como ciência, tecnologia, engenharia e matemática, conclui o livro Benefícios do Ensino Superior, em que os autores, Miguel Portela, da Universidade do Minho, e Hugo Figueiredo, da Universidade de Aveiro, analisaram dados de 2,8 milhões de trabalhadores.
Por outro lado, alerta Margarida Gaspar de Matos, há cada vez mais jovens que, além de terem um emprego, são cuidadoras do marido, cuidadoras dos filhos, cuidadoras dos familiares e cuidadoras da casa, o que inclui limpar, fazer compras, cozinhar.
Este cenário, admite a investigadora, “parece-se muito aos anos 50” e, por isso, conta que ficou admirada por sentir “no dia-a-dia que este modelo se conseguiu perpetuar, num período onde a mudança das condições históricas e culturais o fariam naturalmente extinguir-se”. O que não aconteceu: “A casuística clínica de que disponho aponta para que haja uma nova geração que, talvez para evitar a 'onda de divórcios' da geração anterior, volte ao modelo dos anos 1950 e assuma que é mais fácil ocupar-se de tudo” do que viver em discussões.