Cannabis medicinal: muito exagero e algumas aplicações plausíveis
A Cannabis é usada há milhares de anos para fins recreativos e terapêuticos, mas nas últimas décadas ressurgiu como uma panaceia capaz de tratar uma miríada de doenças, que vão da dor crónica ao autismo. Mas a literatura científica revela um nível de prova muito distinto para as várias alegações.
A Cannabis é um género de plantas originárias da Ásia Central, que inclui várias espécies, que há muito se sabe terem efeitos psicoactivos, sendo usadas para fins recreativos e medicinais. O Imperador da China Shen Nung descreveu as propriedades terapêuticas da Cannabis no seu compêndio de ervas medicinais escrito há mais de 4700 anos. Os dois derivados principais da Cannabis são a marijuana (designação de origem mexicana para as folhas secas da planta) e o haxixe (a resina). Estas plantas contêm mais de 460 substâncias químicas, incluindo dezenas que pertencem a um grupo de moléculas chamadas canabinóides. O ingrediente psicoactivo principal da Cannabis é o delta-9-tetra-hidrocanabinol, vulgarmente conhecido como THC. Os outros canabinóides presentes não têm efeitos psicoactivos significativos quando comparados com o THC.
Os canabinóides ligam-se a receptores na superfície das células e enviam “mensagens” para o seu interior. Os receptores de canabinóides (conhecem-se dois tipos) são proteínas que atravessam a membrana das células, ou seja, têm uma parte fora da célula e outra dentro. Apesar dos canabinóides não entrarem nas células, conseguem influenciar o que lá se passa através desses “funcionários” da fronteira. Muitos processos fisiológicos dependem dessa mediação dos receptores na membrana, que permitem às células sentir o ambiente à sua volta. Temos muitos outros receptores capazes de sentir moléculas como a adrenalina ou a dopamina, por exemplo. Cerca de metade de todos os medicamentos actuam através dos receptores na membrana (que separa o exterior do interior das células). É o caso dos beta bloqueadores (usados no contexto de problemas cardíacos), dos anti-histamínicos (indicados para o tratamento de alergias) e de vários medicamentos psiquiátricos. A elucidação desse mecanismo de “recados” para o interior das células foi distinguida com o Nobel da Química de 2012 (e um investigador português radicado na Austrália, David Aragão, participou no trabalho que deu origem ao prémio).
O nosso corpo produz naturalmente moléculas (endocanabinóides) que se ligam aos receptores de canabinóides na superfície das células. Esse sistema, que inclui os receptores e as moléculas que a eles se ligam (produzidas por nós) está envolvido em vários processos fisiológicos, como a dor, o apetite e outros. É por isso plausível que moléculas produzidas por plantas, capazes de se ligarem aos mesmos receptores, possam ter um efeito nesses processos fisiológicos. Mas ser plausível não basta, são necessários ensaios clínicos que avaliem a sua eficácia e segurança. E nessa aspecto os resultados são distintos para as várias aplicações médicas. Têm surgido muitas alegações de aplicações médicas da Cannabis, que abarcam situações clínicas muito distintas. Neste texto serão focadas apenas as que são mais plausíveis e que constam da carta aberta que pede legalização da Cannabis para fins medicinais, subscrita por vários profissionais de saúde portugueses.
Dor crónica
Os canabinóides estão envolvidos em processos fisiológicos relacionados com a dor, pelo que é possível que possam ter um efeito no tratamento da dor crónica. Uma revisão sistemática da literatura científica, publicada em 2011 no British Journal of Clinical Pharmacology, que levou em conta 18 ensaios clínicos que envolveram 766 participantes, concluiu que os canabinóides têm um pequeno efeito no tratamento da dor crónica (não relacionada com cancro), designadamente no quadro de fibromialgias e artrites reumatóides. Foram incluídos ensaios de Cannabis fumada, aplicada em spray nas mucosas da boca, assim como canabinóides sintéticos. A duração dos tratamentos avaliados variou, de seis horas a seis semanas.
Os autores realçam que são necessários estudos com um maior número de participantes e de mais longa duração. Uma outra revisão da literatura médica publicada em 2015 no Journal of Pain concluiu que a inalação de Cannabis proporciona um alívio de curta duração para um em cada cinco doentes com dor crónica. Também neste caso os autores apontam como limitação às suas conclusões a falta de estudos de longo prazo para avaliar se os resultados são estáveis e duráveis. Uma revisão sistemática da literatura médica publicada em 2016 pela Cochrane Collaboration (uma colaboração internacional de cientistas que é o padrão para a medicina baseada na ciência) avaliou o efeito da nabilona, uma molécula que imita THC no tratamento dos sintomas causados pela fibromialgia. Nesta análise os autores não encontram provas do valor terapêutico deste análogo do THC. Parece, no entanto, que a Cannabis tem um efeito modesto no tratamento da dor crónica nalguns casos.
Apetite
Muitos consumidores recreativos de Cannabis dizem que fumar erva lhes abre o apetite. Pensa-se que o nosso sistema canabinóide está envolvido na regulação dos comportamentos alimentares. Por isso é razoável supor que a Cannabis possa ajudar doentes com HIV ou cancro a terem mais apetite, que por vezes é severamente reduzido em certas fases da doença. Uma revisão sistemática da Cochrane Collaboration publicada em 2013 avaliou o uso de Cannabis na redução de mortalidade e morbilidade em pacientes com HIV. Foram incluídos sete ensaios clínicos, com durações entre os 21 e os 84 dias, que avaliaram os efeitos dos tratamentos com a planta ou com THC.
Os autores concluíram que não existem provas da eficácia e segurança no tratamento da anorexia relacionada com o HIV. Notam que os estudos são de curta duração, com pequenos grupos de pacientes e que são focados em critérios de eficácia de curto prazo. Comentam ainda a dificuldade de fazer ensaios clínicos às cegas, porque os pacientes percebem se estão no grupo a que é dada Cannabis ou um placebo, por causo dos efeitos psicoactivos do THC.
Um outro ensaio clínico publicado em 2006 no Journal of Clinical Oncology concluiu que não havia melhorias no apetite ou na qualidade de vida de doentes com cancro tratados com extracto de Cannabis ou com THC. Já um ensaio clínico publicado em 2011 na revista Annals of Oncology concluiu que o THC poderia aumentar o prazer de comer em pacientes com cancro. Não se pode dizer que haja provas definitivas e sólidas da utilidade da Cannabis no estímulo do apetite de doentes com cancro.
Enjoos e vómitos
Os enjoos e os vómitos são efeitos secundários frequentes em tratamentos de cancro, designadamente em doentes que fazem quimioterapia. Uma revisão sistemática da literatura científica publicada em 2001 na revista médica BMJ, que teve em conta 30 ensaios clínicos que envolveram 1366 pacientes, concluiu que os canabinóides são mais eficazes no tratamento destes sintomas do que vários outros medicamentos. Deve-se notar que neste caso os ensaios clínicos considerados avaliaram o efeito de substâncias isoladas, mas nenhum estudo incidiu sobre os efeitos do fumo de Cannabis. Uma outra revisão de 2008 no European Journal of Cancer Care confirmou que os canabinóides têm um efeito superior ao dos medicamentos convencionais no tratamento destes sintomas em doentes com cancro. Uma revisão da Cochrane Collaboration publicada em 2015 também apresenta uma conclusão favorável para os tratamentos baseados em Cannabis para os enjoos e vómitos induzidos pela quimioterapia.
Os autores consideram, no entanto, que a qualidade dos ensaios clínicos é fraca a moderada e que não incluem comparações com os medicamentos mais recentes. Apesar disso, a tendência geral da literatura científica é claramente favorável ao uso de componentes isolados da Cannabis no tratamento de enjoos e vómitos relacionados com quimioterapia.
Glaucoma
Glaucoma é a designação para um conjunto de doenças que afectam o nervo óptico e que podem resultar na perda de visão. A pressão intraocular alta é um factor de risco para estas doenças e pode agravar a sua progressão. Os canabinóides baixam a pressão arterial e a pressão intraocular, o que poderia fazer deles potencialmente úteis no tratamento do glaucoma. No entanto, o seu uso é considerado impraticável. Tendo em conta o efeito de curta duração, a quantidade necessária de Cannabis para manter baixa a pressão intraocular teria efeitos tóxicos significativos. Isso mesmo é discutido num artigo de 1998, publicado na revista JAMA Ophthalmology. A Sociedade Americana de Glaucoma, num comunicado de 2009, excluiu o seu uso no tratamento da doença.
Um tratamento fora da caixa
O consumo de Cannabis, embora visto por vezes com alguma benevolência, tem alguns riscos, discutidos num artigo de 2014 publicado no The New England Journal of Medicine. Os efeitos psicoactivos podem interferir com as funções cognitivas (memória e percepção do tempo) e com a coordenação motora, o que pode provocar acidentes e outras consequências negativas. O uso continuado na adolescência pode resultar em alterações de longo prazo no cérebro, que prejudicam o sucesso escolar, profissional e social. O fumo de Cannabis também aumenta o risco de sintomas de bronquite crónica. E, com elevada probabilidade, o risco de habituação.
Algumas alegadas aplicações médicas da Cannabis que podemos encontrar facilmente com uma pesquisa na Internet são absurdas. Mas isso não significa que não haja aplicações médicas úteis da planta ou dos seus componentes isolados. É muito plausível que seja esse o caso de redução de enjoos e vómitos em pacientes oncológicos. Mas muitos ensaios clínicos não são feitos com Cannabis, mas com um dos seus componentes isolados, com versões sintéticas desses componentes ou com análogos (moléculas diferentes, mas que têm um efeito químico semelhante). E isso é uma diferença relevante.
Vejamos um outro caso: a aspirina (ácido acetilsalicílico) é um derivado de um produto natural (ácido salicílico) que se pode extrair da casca do salgueiro e que tem propriedades antipiréticas. Mas tomar uma aspirina ou ingerir extracto da casca de salgueiro não é a mesma coisa. Uma planta apresenta uma variabilidade maior da quantidade de princípio activo do que um medicamento preparado industrialmente. Segundo dados da Drug Enforcement Administration (DEA) dos Estados Unidos, a percentagem de THC em amostras confiscadas de Cannabis tem aumentado de modo consistente, de cerca de 3% nos anos de 1980 para 12% em 2012. Esta variabilidade pode levantar problemas, porque a janela terapêutica - ou seja, o intervalo em que a dose de uma substância tem um efeito positivo até ao ponto em que passa a ser demasiado tóxica - por vezes é pequeno.
O uso de componentes isolados da Cannabis em produtos farmacêuticos oferece, à partida, mais garantias de consistência. Tanto o THC como a Nabilona (um canabinóide sintético com uma acção semelhante ao THC) estão disponíveis sob a forma de medicamentos em vários países.
O fumo de Cannabis como tratamento médico será sempre uma opção fora da caixa.