Boas notícias para a Europa e para os consumidores alemães

Inesperada abertura a uma reforma mais profunda da zona euro negociada com a França. Mais atenção ao consumo interno. Os grandes princípios estão definidos. Faltam os detalhes do acordo entre a CDU/CSU e o SPD.

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O acordo de princípio para a formação de um governo de coligação entre Merkel e Schulz vai bem mais longe do que se previa HANNIBAL HANSCHKE/REUTERS

O Presidente francês, Emmanuel Macron, e o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, foram os primeiros a manifestar a sua enorme satisfação. A notícia de que, na madrugada de ontem, a CDU/CSU e o SPD tinham assinado um acordo de princípio para um novo governo de “grande coligação” na Alemanha, deve ter suscitado um suspiro de alívio em muitas capitais europeias.

Lendo o documento de 28 páginas, não restam grandes dúvidas de que Berlim vai bem mais longe do que o que se previa, aceitando uma reforma da zona euro muito mais próxima de Paris. Haverá ainda os detalhes, mas as palavras já lá estão. “Em estreita cooperação com a França, queremos reformar a zona euro de forma a fortalecer a sua sustentabilidade, para que o euro possa enfrentar crises globais”. Mais impressionante ainda: os dois partidos comprometem-se a dedicar “fundos orçamentais específicos” para a estabilização económica dos países do euro e apoiar “a convergência social” e as reformas estruturais.

A prazo, é mesmo admitida a criação de um “orçamento para o investimento”, já mais próximo do orçamento da zona euro que a França defende. E ainda mais uma surpresa: a Alemanha está disposta a aumentar a sua contribuição para o orçamento plurianual da União Europeia, que será negociado em breve e que deixa de contar com a contribuição britânica. Martin Schulz tinha razões para estar exultante. Angela Merkel lembrou que “o mundo não pode esperar”. Como avaliar esta nova abertura? As medidas anunciadas no acordo no que respeita à Europa não têm ainda tradução quantitativa, o que recomenda alguma prudência. Mas chegam para indicar para onde vai o barco.

A Alemanha estava sem governo desde as eleições de 24 de Setembro passado. A popularidade da chanceler, pela primeira vez desde há quase uma década, está em queda e chovem as críticas sobre a sua falta de ambição. O SPD pode negociar a partir de uma posição de maior força. O resultado seria sempre um governo ainda mais favorável à integração europeia, facilitando um compromisso sólido entre Paris e Berlim para as reformas que aí vêm, incluindo a união monetária.

Coligação inevitável

A coligação entre os dois maiores partidos alemães era praticamente inevitável. Merkel e Schulz tinham um revólver apontado à cabeça que não lhes deixava outra opção, cujo nome é Alternativa para a Alemanha (AfD), o novo partido de extrema-direita que ficou em terceiro lugar nas eleições de Setembro, alterando profundamente a paisagem política de um país habituado à moderação e à estabilidade desde a fundação da Republica Federal.

Em matéria de agenda interna, é visível que, desta vez, os sociais-democratas conseguiram ir bem mais longe do que em 2013, quando a chanceler ainda reinava sem contestação. Com um crescimento económico assinalável (2,3%), um desemprego quase residual e um excedente orçamental significativo, os sociais-democratas tinham mais argumentos para a sua agenda social, que passa pelo aumento do investimento público e pela melhoria de algumas políticas que ajudem a distribuir mais equitativamente este excedente. Em 2013, tinham conseguido apenas a garantia de um salário mínimo e um pacote de investimento bastante limitado.

Nos outros grandes temas, o resultado das negociações reflecte também uma agenda interna mais equilibrada entre a CDU/CSU e o SPD. Em matéria de imigração, um tema que ganhou o topo das preocupações dos alemães, o entendimento foi mais difícil mas o resultado é razoável.  Merkel tinha negociado com a CSU da Baviera, a irmã gémea da CDU ainda que bastante mais conservadora, um limite de 200 mil por ano. O acordo estabelece um tecto entre 180 mil e 220 mil. Schulz queria que a reunificação familiar fosse consentida; a CDU queria um prazo alargado até à sua concretização. O entendimento prevê um limite de 1000 pessoas por mês no âmbito da unificação familiar, apenas restrito aos cônjuges e aos filhos, desde que haja igual número de saídas de quem não conseguiu o estatuto de refugiado. Ambos concordaram em que a Alemanha deve dar prioridade aos imigrantes mais qualificados (os patrões precisam deles desesperadamente).

O SPD cedeu alguma coisa na questão dos impostos. Merkel queria baixar o IRC das empresas para valores mais competitivos; Schulz queria mais dinheiro para financiar as políticas sociais. Foi encontrado um meio-termo. Há a promessa de uma redução generalizada dos impostos das pessoas singulares de cerca de 10 mil milhões de euros até 2021. O facto de poder estar para breve uma greve do maior sindicato alemão (4 milhões de membros), a IG-Mettal, que representa a grande indústria metalomecânica, incluindo o sector automóvel, é um sinal de que vai haver maior pressão sobre políticas mais favoráveis ao consumo. Para a Europa, são boas notícias.

Ontem, a chanceler disse que havia condições para a constituição de um governo até meados de Fevereiro, abreviando um calendário do qual a Europa está, em alguma medida, dependente. Schulz ainda tem de fazer aprovar estes princípios (e, depois, o programa) num congresso previsto para dia 21, mesmo que não se preveja um chumbo. O líder social-democrata garante que conseguirá convencer o seu partido com o argumento do futuro da Europa. As vozes mais críticas dentro do SPD insistem em que uma “grande coligação terá consequências negativas para a democracia” e alertam para o facto de a AfD, o terceiro maior partido no Bundestag, passar a ter o estatuto oficial de líder da oposição.

Foi um longo caminho

Não foi fácil para a chanceler chegar até aqui. A primeira coligação que tentou pôr de pé com os Liberais e os Verdes falhou, como provavelmente estava destinada a falhar. A única preocupação de Merkel era que as culpas fossem assacadas aos liberais, como acabou por acontecer. A viragem eurocéptica do FDP e a dureza contra os imigrantes, aproximando-o da direita radical, impediram desde o início um entendimento com os Verdes, criando igualmente sérias dificuldades à chanceler. Mas esta experiência “Jamaica” tinha de ser feita, a partir do momento em que Martin Schulz anunciou que nunca iria para um governo com a CDU/CSU, atribuindo o pior resultado da história do SPD desde a guerra a uma coligação que deixava todos os louros nas mãos da chanceler. Sem “Jamaica”, não podia fazer outra coisa. Quando foi preciso, Merkel acenou com o regresso às urnas, um pesadelo para os sociais-democratas, que temiam um resultado ainda pior, deixando a CDU provavelmente na mesma mas abrindo as portas ao crescimento da AfD. Em 2013, os dois maiores partidos representavam quase 80 por cento dos lugares no Bundestag. Hoje, somam pouco mais de 50. “De grandes já só têm o nome”, comentava o Politico. Só lhes restava, como sublinham vários analistas, fazer das fraquezas forças.

Diferenças na política externa

Ainda se mantêm, no entanto, algumas divergências europeias importantes entre os dois partidos. Schulz não quer aumentar o orçamento da Defesa para os dois por cento estipulados pela Aliança Atlântica (2024) e aceites pela União Europeia. Merkel quer. O SPD não dá a mesma prioridade às matérias de segurança e defesa, que hoje estão no topo da lista de muitos governos europeus. A política da chanceler em relação à Rússia, incluindo as sanções, também não cai bem no SPD, tradicionalmente mais próximo de Moscovo. Esta é outra matéria sensível que se coloca ao nível europeu. De resto, tal como Schulz queria, haverá uma proibição de venda de armas aos países envolvidos no conflito do Iémen, visando a Arábia Saudita, da qual a Alemanha é uma importante fornecedora de armamento.

O primeiro passo está dado e foi mais longe do que se previa. Falta agora acertar os detalhes.

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