Talgo posiciona-se para o concurso de material circulante da CP

Ainda nem há caderno de encargos, mas a empresa espanhola diz que já está a falar com fornecedores portugueses para apresentar uma proposta à CP.

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Em Espanha, 55% dos comboios são da marca Talgo Heino Kalis/Reuters

Há 17 anos que a CP não compra novos comboios, e o concurso que se avizinha ainda nem sequer tem caderno de encargos, mas os espanhóis da Talgo dizem que o seu catálogo de material circulante é o que melhor se adequa às necessidades portuguesas.

Para além da proximidade – um factor que dizem ser importante quando comparado com os seus concorrentes franceses e alemães – a empresa salienta a especificidade dos seus comboios: em vez de cada carruagem assentar em dois bogies (conjuntos de quatro rodas), no seu caso cada carruagem assenta, nas suas extremidades, em duas rodas, que, por sua vez são partilhadas pela carruagem seguinte.

Isso diminui imenso o atrito e torna os Talgos os comboios mais leves do mundo, com evidentes vantagens ao nível da aerodinâmica, velocidade e consumos energéticos. São ainda dotados de uma “pendulação natural” graças a um sistema que faz com que a composição – já de si invulgarmente baixa e com carruagens curtas – se incline nas curvas tornando a viagem mais cómoda para os passageiros.

Esta inovação na forma de construir comboios data de 1942 e foi patenteada pelo engenheiro Alexandro Goicoechea que teve o apoio de um sócio capitalista – José Luis de Oriel – com quem fundou a TALGO – Tren Ligero Articulado Goicoechea Oriel.

Setenta e cinco anos depois, a empresa é gerida pelos netos dos seus fundadores, emprega 2200 pessoas e as suas composições estão presentes em 44 países. Em Espanha, 55% dos comboios são de marca Talgo. E muitos são de alta velocidade.

Pelo meio, sucessivos acrescentos às patentes iniciais têm garantido uma relativa blindagem à concorrência e impulsionado novos produtos: há comboios de eixo bi-bitola (que podem circular em diferentes tipos de bitola), comboios híbridos (que podem circular em linha electrificada ou a diesel), com diferentes tipos de alimentação eléctrica (que permite circular em Portugal ou em Espanha) e para todo o tipo de velocidades, desde os regionais à muito alta velocidade (350 Km/hora). 

“Temos o ‘todo o terreno’ dos comboios de alta velocidade – o Talgo 250 que é híbrido, bi-bitola e tem duas tensões – que foi a solução encontrada para ligar Madrid à Galiza através de vários tipos de linhas, sistemas de sinalização e alimentação eléctrica”, diz João Meireles, um português responsável pelas vendas da empresa na América Latina e em Portugal. “Uma das nossas vantagens é a flexibilidade e presumimos que a CP vai querer precisamente comboios flexíveis, híbridos que se adaptem às particularidades da rede ferroviária portuguesa”.

João Meireles sublinha as soluções que a Talgo encontrou e que tornam a questão da diferença de bitolas entre a Península Ibérica e o resto da Europa num “não problema”: a instalação de “intercambiadores” na via que alargam ou encurtam a distância entre rodas, adaptando-as à distância entre carris. Uma operação que é feita com o comboio em andamento.

No concurso para a CP, a empresa já está a falar com fornecedores portugueses para construir uma proposta assim que o caderno de encargos seja público. E também diz que está preparada para que 20% da produção seja efectuada em Portugal, possivelmente a parte da montagem final e os ensaios. Uma parceria com a EMEF (empresa de manutenção da CP) é uma das possibilidades, mas, por outro lado, esta ficar-se-ia pela fase de fabrico pois a própria Talgo costuma fornecer a manutenção juntamente com a venda do produto.

Numa visita à fábrica de Las Matas (Madrid) a jornalistas portugueses, os técnicos da Talgo mostraram o fabrico de uma encomenda que tem ocupado a quase totalidade da produção – 35 comboios, mais um, para a Árabia Saudita (36º é o comboio destinado à família real saudita). São todos de alta velocidade (atingem os 350 Km/hora) e vão ligar Medina a Meca. Um projecto de quase 2000 milhões de euros que já está em fase de testes e que deverá ser inaugurado no fim deste ano. E que estará vedado a grande parte do mundo, dado que só muçulmanos poderão aceder à cidade de Meca.

“Foi um desafio encontrar soluções para a fina areia do deserto que se infiltra nos mecanismos e as redundâncias que tivemos de fazer para os sistemas de ar condicionado. Imagine o que é um comboio destes, com mais de 400 passageiros a bordo, parado no deserto com 50 graus”, diz João Meireles. “Ou o que é circular a 300 à hora no meio de uma tempestade de areia”.

Outro projecto que a empresa gosta de mostrar é o do Cazaquistão, onde começou por vender apenas quatro comboios. “É nisto que nos distinguimos dos grandes gigantes da indústria ferroviária. Todos os clientes são prioritários. Para a Talgo não há encomendas pequenas. No Cazaquistão começamos por vender apenas quatro comboios e hoje temos lá uma fábrica com mais de 300 trabalhadores”. E, neste país, os problemas foram outros, como o de conceber sistemas de aquecimento que mantenham o comboio e os seus passageiros quentes com temperaturas de 40 graus negativos.

Comparada com aquelas temperaturas extremas, os quatro graus negativos que se faziam sentir na serra de Segóvia na passada terça-feira não eram nada. Mas numa viagem de demonstração entre Madrid e Valladolid num Talgo da série 102 deu para perceber como é “fácil” circular a 300 Km/hora no meio da neve suportando fortes rajadas de vento gélido. Na cabine de condução avistavam-se apenas as duas tiras metálicos dos carris num deserto de branco que quase cegava.

Vista dali, a condução do comboio até parecia um jogo de computador em frente a um écran gigante. Rodeado de tecnologia de ponta, o trabalho do maquinista é rotineiro, independentemente da intempérie. O horário e os 300 Km/hora são para se cumprir e a única coisa que lhe merecia mais atenção era um cuidado especial para que as rodas não patinhassem nos carris gelados.

*O PÚBLICO viajou a convite da Talgo

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