Esta noite eles são tão frágeis — mas não quebram
Marco Martins não passa a mão pelo pêlo de Nuno Lopes, Miguel Guilherme, Luísa Cruz, Bruno Nogueira e Rita Cabaço sem lhes remexer nas feridas e sem os expor nas suas fragilidades. Arregaça as mangas e entra com cada um nas suas experiências mais dolorosas e humilhantes: Actores.
Poderia ter-lhe dado para convocar este mesmo grupo de actores e propor-lhes trabalhar a partir dos espectáculos mais memoráveis e gloriosos das suas carreiras, esquartejando-os, autopsiando-os, revolvendo essas memórias e com elas construindo um monstro de Frankenstein só com as partes boas – mesmo que adulteradas até parecerem gastas e se tornarem insípidas. Poderia ser algo entre o best of e um conceito ligeiramente pervertido que degenerasse em beast of. Mas a Marco Martins não interessava convocar actores para lhes pedir recordações felizes e lhes passar a mão pelo pêlo, bajulando-os e celebrando-os sem os colocar em causa, sem lhes remexer nas feridas e sem os expor nas suas fragilidades. E, por isso, não lhes pedindo o inverso, algo como “o pior de”, quis arregaçar as mangas e entrar com cada um nas suas experiências mais dolorosas e humilhantes.
Havendo em Actores (em cena no Teatro São Luiz, Lisboa, até 28 de Janeiro; no Teatro Nacional São João, Porto, de 7 a 11 de Fevereiro; no Cine-Teatro Louletano, Loulé, a 16 de Fevereiro) uma tentadora leitura de homenagem a estes profissionais, a verificar-se, isso acontece sem infantilizar quer os actores quer a ideia daquilo que uma homenagem pode ser e representar. O espectáculo apoia-se nas fraquezas e nos momentos mais indefesos dos seus intérpretes não para gerar um compadecimento paredes-meias com a condescendência – “coitadinho, tanto que ele/a sofre” – mas para erguer a partir desse desamparo, partilhando a ideia do que é pisar um palco longe do olhar autorizado do público.
Claro que naquela que tem sido cada vez mais a prática teatral de Marco Martins para o Arena Ensemble – sobretudo a partir da peça Estaleiros (2012), desenvolvida com Nuno Lopes e os trabalhadores dos inactivos Estaleiros Navais de Viana do Castelo –, mas que invadiu também a abordagem cinematográfica em São Jorge (2016), a sua proposta de ficção tem-se revelado uma matéria sujeita a todo o tipo de intromissões da realidade, construída, na verdade, a partir dessa imersão e desse olhar propositadamente contaminado.
Em Todo o Mundo É Um Palco, espectáculo que dirigiu em parceria com Beatriz Batarda para a comemoração dos 150 anos do Teatro da Trindade em finais de 2017, os habitantes de uma nova Lisboa, de uma cidade repleta de imigrantes que a redefinem com as suas histórias e os seus percursos, a realidade tornava-se coisa turva quando na tradução de outras línguas as palavras iam perdendo rigor e boicotando discursos, criando um curto-circuito na comunicação que tinha tanto de vontade genuína de chegar ao outro quanto de impossibilidade efectiva de ocupar o seu lugar e decifrar o mundo com os seus olhos.
Para Actores, Marco Martins chamou Nuno Lopes, Miguel Guilherme, Luísa Cruz, Bruno Nogueira e Rita Cabaço, e passou dois dias a entrevistar cada um – na presença dos restantes –, com um guião que lhe permitisse levantar situações que se prendessem com a repetição e a exaustão no dia-a-dia profissional dos cinco intérpretes. Era o primeiro passo na resposta a um pressuposto inicial “um pouco mais catártico e mais egoísta” do que a versão final que agora testemunhamos. E isto porque a ideia em bruto para Actores começou a formar-se na cabeça de Marco Martins ao assistir, repetidas vezes, a actores com quem trabalhava em cinema que aproveitavam pausas para decorar texto para outros espectáculos ou que “saíam para fazer uma peça e quando voltavam já não estavam exactamente no mesmo sítio” onde os tinha deixado. “Isso pode ser muito assustador porque, como criador, estou a viver e a dormir todos os dias com os mesmos problemas do filme e o intérprete não”, diz. “A forma que encontrei para me tranquilizar foi começar a pensar que um dia faria um espectáculo em que se estaria a presenciar a cena de um filme e no momento seguinte estaríamos a fazer uma peça.”
Esse pressuposto, embora ampliado, persiste ainda nos segmentos em que Rita Cabaço e Bruno Nogueira saltitam entre personagens (ela percorrendo num repente sete diferentes, ele num pingue-pongue constante entre duas) e que espelham um dos elementos fundamentais que Marco Martins queria ver tratado em Actores: a sujeição dos intérpretes à aceitação de uma série de trabalhos em paralelo para poder viver da profissão e, no caso específico de Bruno, a forma como a percepção exterior pública pode desgastar e quase desesperar. E isto porque com uma imagem ligada sobretudo à comédia stand-up e ao humor, qualquer frase que lhe saia na pele do atormentado desempregado de A Conquista do Pólo Sul, texto de Manfred Karge em que foi dirigido por Beatriz Batarda, parece ser sempre interpretada como um gesto paródico e destinado a provocar o riso. No limite, o humor torna-se violência contida naquilo a que Marco chama “o nosso momento Andy Kaufman”.
A imagem de personagens das quais os actores entram e saem, com o corpo abanado e sovado por cada uma destas transformações súbitas apresentadas como um acto de violência física e mental, toca noutro dos pontos nucleares para o encenador: a exaustão dos actores. O cansaço extremo de quem pode estar a rodar durante sete horas um filme ou uma telenovela e em seguida se entrega a mais umas tantas horas de ensaio para uma peça de teatro. “E a exaustão tira muita da nossa disponibilidade criativa”, nota Marco Martins. “Tal como nos acontece socialmente. Quando começamos a ficar exaustos perdemos a capacidade de ter qualquer máscara, entra-se numa espécie de jet lag mental, em que não se está totalmente presente, está-se a antecipar outro momento ou na ressaca do anterior. E ou isso é interessante para o processo, ou então, se não o é, torna tudo extremamente difícil e só já se tem mesmo a máscara do cansaço.”
Talvez por espicaçar de forma recorrente os contágios entre ficção e realidade, o próprio processo de preparação de Actores acabaria afectado por um episódio de cansaço extremo. Após todo o período de recolha de materiais, de textos e de histórias de cada actor, a actriz Luísa Cruz anunciaria o seu abandono do projecto devido à crescente incapacidade de gerir os dois espectáculos em que estava a trabalhar em simultâneo. “Nesse momento”, explica Marco, “tinha duas possibilidades: ou abandonava por completo a personagem da Luísa, todas as histórias que tínhamos construído com ela e todo o material recolhido ao longo de meses, ou pedia a uma actriz totalmente distinta, de outra geração, para interpretar o papel da Luísa.”
A segunda opção, mais atraente, acrescentava ainda a dificuldade de implicar a substituição por alguém fluente em francês e que cantasse num registo próximo do lírico. A solução milagrosa estava bem à mão e socorreu-se de Carolina Amaral, jovem actriz com quem tinha acabado de trabalhar em Todo o Mundo É Um Palco. Por um lado, a perda de Luísa Cruz era um golpe evidente numa criteriosa escolha de “intérpretes de gerações distintas e uma forma de viver a profissão muito diferentes entre si, para que o espectáculo fosse algo muito pop ou punk, estilhaçado, em que tanto se pudesse fazer stand-up como passear ovelhas num supermercado ou fazer Shakesperae”; por outro lado, privado de uma actriz que tinha animado quase 70 protagonistas na sua carreira teatral, a presença de Carolina a trabalhar sobre “uma série de material muito duro e muito autobiográfico” escolhido por Luísa oferecia ao encenador uma irresistível camada extra de construção ficcionada sobre a memória.
A memória ficcional
A memória seria sempre o ponto de partida para a construção de Actores. Mas a memória enquanto matéria elástica, perecível, porosa, dissimulada, falível e até mesmo fajuta, a memória como acontecimento resumido mais a uma sensação e a uma imagem do que a um rigor factual. Até porque se Marco encontrou em Miguel Guilherme e Luísa Cruz “uma memória prodigiosa”, os outros intérpretes respondiam mais àquilo que lhe parece “um processo de autodefesa que consiste em apagar completamente os espectáculos e as personagens que tinham feito”. “Parece-me um mecanismo para conseguir recriar e renascer com outra personagem”, avalia.
Tornava-se assim ainda mais evidente que qualquer tentativa de recriação de um episódio ou uma peça passada, mesmo recorrendo a documentos e fotografias, acabaria por ser fatal e razoavelmente diversa daquilo que tinha acontecido. “Não há aqui, de todo, a ideia de construirmos sobre o real; estamos a construir sobre a memória e, portanto, sobre a memória como lugar de ficção”, diz. Até mesmo no caso de Carolina, ao agir sobre as memórias de Luísa Cruz – beneficiando do facto de Marco Martins registar sempre todos os ensaios em vídeo –, aquilo que lhe era pedido era não um trabalho de mimetismo sobre esses registos, mas uma construção sobre a construção de Luísa Cruz.
Ao mexer com memórias associadas a momentos de dificuldade, de exposição, de exaustão e de humilhação dos actores – situações muitas vezes provenientes de castings e do pedido de repetição do mesmo texto com diferentes emoções, fazendo dos actores quase marionetas –, Marco fundou Actores em medos, dificuldades, incompreensão daquilo que encenadores e realizadores pedem e recriações que, fugindo à armadilha de se poderem acumular numa sequência quase anedótica de fait-divers, muitas vezes rememoram o seu início de carreira. Não apenas os castings e as contantes repetições em resposta a uma voz de comando, mas trabalhos embaraçosos para quem anuncia estar a enveredar por uma vida de actor ou actriz profissional, chamadas de atenção diante de colegas – que podem conduzir à revelação do que é, afinal, ser actor –, a frustração e o sentimento conflituante de estar à espera que a actriz principal adoeça para subir ao palco no seu lugar…
Com cada um dos cinco actores a trazer consigo entre 20 a 40 personagens para o espectáculo, Marco Martins queria também que, nesta navegação por estilhaços dos percursos individuais, o grupo atracasse em momentos em que, desta vez, fosse a ficção a transbordar para o lado da realidade, em que biografia e peças/telenovelas se vão intersectando, através de manifestações físicas próprias das personagens que assaltam os actores ou de cartas de admiradoras com pedidos mais ou menos abstrusos e pouco ágeis a destrinçar o actor e a personagem da telenovela.
Todas estas histórias e estas memórias moldadas pela ficção vão-se sucedendo num encadeamento que sabe evitar transformar-se numa pilha de gags. Havia sempre recordações de um espectador que tinha dito qualquer coisa durante um espectáculo, de um actor que se tinha magoado numa qualquer acção ou alguém que chegava atrasado e que, apesar de um potencial efeito cómico, faria de Actores pouco mais do que uma longa piada. Mas tudo isso foi limpo durante o processo, deixando que o humor cumpra, afinal, um papel que acentua o ridículo e a humilhação de muitas das cenas. Por vezes, a um ponto de exagero que significa a reacção a esse ridículo, como a sequência em que Nuno Lopes “involui para um macaco”, farto da condição de ser cro-magnon das nove da manhã às sete da tarde.
X
“Adoro a experiência de fazer o mesmo texto repetidamente e a liberdade que isso me dá”, diz, às tantas, Miguel Guilherme. Estamos ainda muito no início de Actores, ainda mal arrancou a parada de excertos de peças de vários graus de reconhecimento imediato – de À Espera de Godot (Beckett), Jardim Zoológico de Cristal (Tennessee Williams), Três Irmãs (Tchékhov), Esta Noite Improvisa-se (Pirandello) e Música (Wedekind) a Pillowman (Martin McDonagh), Rosencrantz & Guildenstern Estão Mortos (Tom Stoppard) e A Estupidez (Rafael Spregelburd) –, quando o actor compara a repetição, os ensaios, como a preparação técnica de um bailarina que se exercita várias horas por dia para “chegar ao palco e deixar-se ir, simplesmente deixar o seu instrumento assumir o controlo, sem se preocupar se vai cair porque está livre”. No seu caso, defende, é o domínio do texto a ferramenta a domar para que o palco se torne um campo de possibilidades quase infinitas e não um território de mera reprodução de um caminho já cartografado.
Essa relação entre intérpretes e liberdade dissemina-se por toda a peça. Por vezes, no conflito e na resposta contrariada mas obediente aos pedidos do encenador – Marco Martins, a partir da régie, pede a repetição de algumas cenas, sempre diferentes a cada passagem, e exige diferentes emoções impressas ao texto –, essa liberdade é objecto de uma negação extrema; mas em todos os segmentos há uma luta pela sua preservação e pela fidelidade a uma certa ideia do que é ou deve ser a profissão. “Quando eles falam em liberdade”, defende o encenador, “acho que isso também tem que ver com o momento em que se libertam do medo de estar em palco, esse medo quase humilhante – e não é só o medo, porque também o facto de estarem a ser dirigidos pode ser extremamente humilhante e castrador.” A repetição é, por isso, usada para construir e não para apenas repetir – “porque não é evidente que se possa construir a partir da repetição”, diz. “E acho que estes textos falam muito do momento da execução como momento de libertação, e não de tensão ou de julgamento.”
Claro que, a partir da régie, Marco Martins joga um papel assumidamente ingrato e contraditório. Ao montar uma peça em que a repetição, a exaustão e a humilhação são atiradas para o centro do palco, com os focos bem calibrados e apontados na sua direcção, cabe-lhe o papel de dirigir, de exercer esse lugar de poder, de corrigir e balizar, colocar as fronteiras que podem, afinal, cercear a liberdade procurada pelos seus actores. “Essa é uma grande questão”, admite, “porque acaba-se sempre por dirigir muito, uma vez que todos eles estão habituados a um tipo de trabalho muito distinto daquele que se desenvolve neste espectáculo.” O que é obviamente diferente de tudo o resto é a ausência de personagem – à excepção de Carolina Amaral, que se pode agarrar, de certa forma, a Luísa Cruz – e a tentativa de defender na peça essa ausência. Por isso, Marco chamou os coreógrafos Vânia Rovisco e Vítor Hugo Pontes, pedindo-lhe que trabalhassem o corpo e “sobretudo os intervalos, porque é um espectáculo em que o intérprete se encontra muito entre dois momentos de representação”.
Se a natureza destes actores, acrescenta o encenador, é sempre a de encontrar uma personagem como máscara, aqui essa máscara é-lhes sempre negada. Mais do que isso, é-lhes agitada à frente do rosto, numa sucessão de várias personagens que habitam temporariamente, para logo em seguida lhes ser roubada de novo essa âncora. E é nesse jogo que muito de Actores reside: ao verem ser-lhes recusadas as habituais referências, quem restará em palco e quem veremos diante de nós?