“Não sou entusiasta da legalização da cannabis para fins recreativos”

João Goulão, director do SICAD, o organismo que define a política na área das drogas e das dependências, vê vantagens no uso da cannabis para fins terapêuticos. Rejeita, porém, o auto-cultivo e o seu uso recreativo que, alerta, serve antes de mais os interesses das tabaqueiras.

Foto
RUI GAUDÊNCIO

A favor da legalização da cannabis para fins terapêuticos, o director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão, admite ser convencido das vantagens da legalização para fins recreativos, desde que a discussão se faça ao arrepio dos interesses da indústria. Mas avisa que não será porta-estandarte desse movimento. Já a possibilidade de auto-cultivo – presente nas propostas que são esta quinta-feira discutidas no Parlamento – merece-lhe um rotundo não. Numa altura em que o Governo está a reequacionar o novo modelo organizacional para a área das dependências, Goulão lembra que a integração nas administrações regionais de saúde relegou o problema das adições para “um plano secundaríssimo” e aponta as vantagens de recriação de uma estrutura autónoma.

Estando de acordo com a legalização da cannabis para fins terapêuticos, em que condições é que a substância deve ser prescrita e adquirida?
Essa é uma discussão que nunca tinha sido desencadeada em moldes tão concretos e concretizáveis como agora. E congratulo-me pela clara separação entre o uso recreativo do uso terapêutico. Embora considere que ambas as discussões devem ser travadas, elas têm contextos e actores francamente diferentes. Quando falamos do uso terapêutico, o que está em causa é a prescrição do uso de cannabis em condições clínicas muito concretas e baseada em evidência científica, estamos a falar, ao fim e ao cabo, da utilização de um medicamento que deve seguir a mesma tramitação de introdução no mercado de qualquer outro medicamento.

Deve ser comparticipada e adquirida em farmácias comunitárias ou hospitalares?
Sim. Uma das vantagens desta legalização é a possibilidade de prescrição, de exercer um controlo de qualidade e de ter a garantia de que o médico sabe exactamente o que está a prescrever, qual é o tipo de planta, ou de preparado feito a partir da planta, que está a prescrever ao seu doente, quais os efeitos positivos que são expectáveis e quais os eventuais efeitos negativos que pode antecipar.

Concorda com a proposta de autorização do auto-cultivo?
Não, porque isso me levanta sérias dúvidas relativamente à manutenção desta vantagem do controlo de qualidade, isto é, de saber exactamente qual é o teor dos diversos alcalóides presentes naquela planta. Se houver um processamento industrial – e já foram autorizados cultivos de cannabis para fins terapêuticos em Portugal –, esse controlo de qualidade é exercido. No auto-cultivo, alguém que tem meia dúzia de plantinhas em casa dificilmente se assegura que a composição, os produtos daquela planta são exactamente aqueles que são buscados pelos seus fins terapêuticos.

O uso recreativo não merece ser igualmente discutido?
Sem dúvida que sim, mas com pressupostos diferentes. O uso recreativo remete-nos para uma discussão muito mais ampla sobre as responsabilidades que devem ser assumidas pelo Estado: em que medida é que o Estado tem o dever ou o direito de se imiscuir nas liberdades individuais e nas escolhas dos cidadãos. Assistimos em relação ao tabaco a políticas cada vez mais restritivas em nome do direito do Estado a defender o cidadão dos riscos potenciais do tabaco. Assistimos a políticas restritivas relativamente ao álcool, nomeadamente em termos de idade de consumo. São substâncias que são legais no nosso quadro. Será que em relação à cannabis deve o Estado pura e simplesmente demitir-se disso, apesar dos riscos claramente identificados no seu consumo?

Deve?
Acho que não deve. 

Que sentido faz que um Estado que autoriza substâncias como o tabaco e o álcool proíba a cannabis, numa altura em que ela é consumida no mercado negro?
Como digo, essa é uma discussão que faz sentido travar. A cannabis foi introduzida nas listas de substâncias proibidas e consta de tratados internacionais dos quais Portugal é signatário. Alguns países têm, à revelia dessa assinatura, decidido regular o uso recreativo de cannabis. É um caminho possível. Devo dizer que não sou um defensor desse caminho.

Que impressões consolidou a partir das experiências de legalização da cannabis no Uruguai e em variadíssimos estados norte-americanos?
Há alguns sinais que parecem bastante animadores no sentido da legalização com regras, nomeadamente o facto de não ter disparado o consumo de cannabis entre os menores, pelo menos em Estados que conheço melhor como o Colorado. Isso é animador. E é um dado que tem que ser tido em consideração nessa discussão.

Teria a vantagem de aumentar a arrecadação de impostos para aplicar no tratamento dos utilizadores problemáticos. No Canadá discute-se academicamente a hipótese de essas verbas ajudarem a financiar medidas como o rendimento básico para todos. Ainda assim não se inclina para essa possibilidade?
Não sou muito entusiasta da legalização para fins recreativos, mas estou aberto a participar nessa discussão e a discutir os diversos argumentos. Não me sinto é capacitado ou à vontade para ser um porta-estandarte desse movimento.

Admite mudar de ideias?
Admito que me convençam. O facto em relação ao qual me sentia mais fundamentalista era estar-se a querer utilizar o uso terapêutico de cannabis como um cavalo de tróia para fazer passar o uso recreativo. Aí pareceu-me que havia alguma falta de seriedade intelectual. E incomoda-me um bocadinho que coincidam na defesa deste novo negócio, por um lado, teses que se centram nas liberdades individuais e no direito à escolha e, por outro, teses que são oriundas de grandes empresários que vêem aqui uma oportunidade de negócio que gera muitos milhões. Como há um fading da utilização do tabaco a nível mundial, há aqui um revirar das próprias tabaqueiras para um novo nicho de negócio que lhes pode assegurar a sobrevivência.

Tudo isto me aconselha guardar alguma prudência e alguma distância. Com alguma probabilidade, serei apelidado de conservador ou reaccionário, mas custa-me ver isto discutido apenas em nome de uma suposta modernidade, sem tentar acautelar da forma mais séria possível os potenciais impactos que isto pode ter na saúde das populações.  

O Governo já o informou da sua decisão quanto ao novo modelo organizativo para a área das dependências?
Ainda não.

A que conclusões chegou o grupo de trabalho no segundo relatório que entregou ao Governo?
Mais uma vez não foi conclusivo porque estiveram sempre presentes em cima da mesa duas opções que acabam por ter reflexo no documento final. Uma que prevê um aprofundamento da integração nas ARS [administrações regionais de saúde] e outra que prevê a existência de um organismo com uma ligação directa às unidades do terreno.

A sua posição pende para a recriação de uma estrutura vertical.
Faz-me todo o sentido que exista um organismo que assuma como preocupação central o problema dos comportamentos adictivos e das dependências. De outra forma, eles diluem-se no universo das necessidades dos cidadãos a que as ARS têm que dedicar a sua atenção. E os comportamentos adictivos tendem a ficar muito relegados para um plano secundaríssimo, o que provoca uma diminuição da eficácia das respostas.

O famoso “modelo português” está em risco de colapso?
Não diria colapso, mas é preciso uma atenção urgente a esta área, nomeadamente em termos do reforço de recursos humanos. A muito curto prazo vamos ter um empobrecimento muitíssimo significativo ao nível dos profissionais dedicados a esta área. São pessoas que trabalham há 30 anos e que vão sair, porque se aproximam da reforma, e não se perspectiva nenhum mecanismo para repor a capacidade de resposta.

O aprofundamento da integração nas ARS não é susceptível de introduzir aqui melhorias?
Não acredito. Uma organização com uma ligação directa entre a entidade responsável por pensar as políticas e a sua execução no terreno, sem interposto organismo, tem claramente vantagens relativamente ao modelo actual.

E se a decisão não for nesse sentido continuará a ter condições para fazer o seu trabalho?
Qualquer resposta que lhe dê neste momento pode ser entendida como uma pressão que eu considero ilegítima. Seria como se estivesse a fazer uma chantagem: se não aceitarem, vou-me embora.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários