Do lodo do Campo das Cebolas saiu a mesa posta para um jantar quinhentista

Obras do parque de estacionamento terminam no fim de Janeiro, com quase um ano de atraso. EMEL promete criar um espaço de exposição para os achados, mas o que já se encontrou na zona ribeirinha dava para um museu.

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Um dos muitos pratos majólica italiana encontrados, conservados e remontados Nuno Ferreira Santos
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Um garfo em osso, que provavelmente fazia parte de um objecto maior, como um canivete Nuno Ferreira Santos
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Os arqueólogos retiraram do Campo das Cebolas milhares de objectos do quotidiano Nuno Ferreira Santos
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Agora, uma das tarefas é perceber se os cacos podem ser reconstruídos Nuno Ferreira Santos
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Um pote em barro de Estremoz Nuno Ferreira Santos
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Uma das coqueluches: o relógio de sol portátil Nuno Ferreira Santos
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Cláudia Manso segura num incensário Nuno Ferreira Santos
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Outra peça encontrada foi este anel Nuno Ferreira Santos
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Do Campo das Cebolas foram retiradas perto de 60 toneladas de material, que encheram três mil caixas Nuno Ferreira Santos
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O trabalho de estudo dos achados ainda não chegou a meio Nuno Ferreira Santos

Há pratos de várias formas, cores e dimensões em cima de uma mesa branca. Ao lado, em tabuleiros vermelhos, um púcaro e outros pequenos objectos em barro, sem pintura. De uma caixa plástica, semelhante às que se usam para vender comida para fora em restaurantes, sai um garfo esculpido em osso a que provavelmente esteve em tempos unida uma faca. Junte-se o copo em marfim decorado com figuras femininas e só fica a faltar o alimento para podermos desfrutar de uma refeição quinhentista.

“Tendo em conta o material encontrado, conseguiria fazer a reprodução de uma mesa do século XVI sem problema nenhum”, comenta Cláudia Manso, directora científica da escavação arqueológica que decorreu no Campo das Cebolas entre 2016 e 2017. Foi a maior intervenção deste tipo em Lisboa e uma das maiores no país neste período. Não só pela área e pela profundidade escavadas, mas sobretudo pelo volume de materiais encontrados. Esperava-se que aparecesse muita coisa, mas não se suspeitou que aparecesse tanta.

Descobriu-se material suficiente para pôr uma mesa para muitos convivas, mas o mais surpreendente nem foi isso. Apareceram oito embarcações do século XIX, quase todas usadas no Tejo e uma que, crêem os arqueólogos, poderá ter tido uso marítimo, dadas as suas dimensões. “Até ao final do século XIX toda aquela zona era rio”, lembra Cláudia Manso, referindo-se à área que hoje tem a Avenida Infante D. Henrique, estruturas portuárias, a estação Sul e Sueste.

Decidiu-se nessa época fazer um novo aterro, ganhando metros ao Tejo para ampliar o porto. Ao escavá-lo, identificou-se um passadiço de madeira, ao qual ainda estavam atracados alguns barcos. “Eles foram ali deixados, era um despojo. Não naufragaram, não aconteceu nenhum acidente que os fizesse ficar ali”, explica a arqueóloga, sublinhando que isto nada tem de incomum, pois era uma forma fácil de as pessoas se desfazerem dos barcos velhos. Aquele que os arqueólogos pensam que navegou no mar foi ali parar aquando da criação do aterro, provavelmente arrastado nas dragagens.

Das oito embarcações, duas ficaram no exacto sítio em que foram encontradas e agora têm um parque de estacionamento por cima. As outras seis foram levadas para um local na Outra Banda, onde têm estado em tanques, mas brevemente serão transferidas para um armazém na Matinha, cedido pelo Porto de Lisboa ao consórcio de empresas responsável pela última fase de escavações no Campo das Cebolas: Empatia, Arqueologia e Património e Império.

O que fazer com este espólio?

No terreno, os trabalhos de arqueologia acabaram há meses e o parque de estacionamento subterrâneo está quase pronto. Rita Marques, da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL), aponta o fim dos trabalhos para o “final de Janeiro” – ou seja, quase um ano depois do inicialmente previsto.

Para Cláudia Manso e restante equipa, há ainda muito a fazer. Das mais de 60 toneladas de material recolhido, dividido em cerca de três mil caixotes de plástico, ainda falta analisar, registar, conservar e preservar mais de metade. No fim do processo, uma pequeníssima parte dos achados será exposta no interior do parque de estacionamento. Rita Marques afirma que “a EMEL tem a pretensão de fazer um espaço museológico” no local, que ficará em frente à escadaria pombalina que foi integrada no projecto arquitectónico de Carrilho da Graça.

Nesse espaço deverá estar uma das coqueluches desta escavação: um pequeno relógio de sol portátil em madeira, do século XVI. “Quando se abria o relógio, havia um fio preso à tampa que esticava e, consoante a posição do sol, a sombra indicava a hora”, explica Cláudia Manso enquanto segura no tupperware onde a peça está agora guardada.

Alguns pratos, como as coloridas majólicas italianas, também deverão ficar visíveis ao público. “Os italianos começaram a fazer estas peças como imitação [da cerâmica espanhola], mas entretanto a majólica começou a ganhar expressão própria”, continua a directora científica. Essa faiança era popular em Lisboa, uma cidade rica e repleta de estrangeiros a partir de meados do século XV. “Apesar da ampla difusão da majólica, não era acessível a toda a gente”, comenta a arqueóloga.

Já os cestos, muito provavelmente usados para transporte e venda de peixe e que datarão do reinado de D. Manuel I, não devem chegar a exposição. Para já, “o objectivo é tentarmos perceber o tipo de material, mas também o entrançado” dos cestos, diz Cláudia Manso. E o que fazer com “o maior espólio de coxins encontrado até hoje em Portugal”? Estas plataformas em cortiça, que se colocavam por baixo das solas dos sapatos para evitar a sujidade do chão, ajudam a compreender a evolução do vestuário e do calçado na cidade ao longo do tempo.

Cachimbos holandeses, majólicas italianas, cerâmicas espanholas, grés da Renânia, vidros italianos e outros possivelmente da Boémia, martabans (grandes potes provenientes da antiga Ceilão), porcelana chinesa, peças em marfim africano, peças em madeira africana ou indiana, cacos romanos. Tudo isto se encontrou também no Campo das Cebolas. E faz parte de uma lista crescente de achados na frente ribeirinha de Lisboa: ali ao lado, num hotel de cinco estrelas; noutro hotel no Corpo Santo; na Praça D. Luís; na Avenida 24 de Julho; num hospital em Alcântara; num hotel em Belém…

Cláudia Manso considera que começa a justificar-se pelo menos um centro interpretativo específico para esta área da cidade, se não mesmo um museu. Todos os achados arqueológicos do país pertencem ao Estado, mas são muitas vezes empresários privados que expõem vestígios, como forma de atrair mais clientela. Em Lisboa, isso acontece cada vez mais com hotéis. Entre arqueólogos, como se percebeu recentemente no congresso destes profissionais, existe frustração pelo facto de não haver mais divulgação da arqueologia pelas entidades oficiais – embora eles também admitam que a culpa é em parte sua.

Para já, o que está definido é o que diz a lei: entregue o relatório final sobre a escavação e o que nela se encontrou, cabe à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) decidir para onde enviar o espólio. A EMEL pedirá parte dele para o espaço expositivo no interior do parque, o restante ficará, em princípio, longe dos olhares públicos.

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