De residência em residência, os Liima chegaram a 1982

É um álbum de reecontro com a memória dos anos 1980, é o álbum que aconteceu aos Liima enquanto saltavam de Londres para Berlim, daí para Viseu ou Porvoo. O "lisboeta" Casper Clausen explica-o ao Ípsilon.

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Os dias Casper Clausen passa-os aqui, numa pequena divisão feita sala de ensaio, feita laboratório sonoro, no primeiro andar de um edifício da hoje extinta Sociedade Portuguesa de Pescas, no Complexo industrial do Olho de Boi, em Cacilhas Nuno Ferreira Santos

Os dias passa-os aqui, numa pequena divisão feita sala de ensaio, feita laboratório sonoro, no primeiro andar de um antigo edifício da hoje extinta Sociedade Portuguesa de Pescas, no Complexo industrial do Olho de Boi, em Cacilhas. Nos dias e nas noites de Cacilhas, até que chegue o início da madrugada e a hora do último barco até Lisboa, Casper Clausen fica ali, Cristo Rei de braços abertos nas suas costas, velha povoação abandonada a oeste, cais do Ginjal  na direcção contrária. À sua frente, janela aberta sobre Lisboa. Foi ali, no espaço que o pintor Rui Soares Costa utiliza como atelier e que dinamiza oferecendo as restantes salas para residências artísticas, que Casper, dinamarquês tornado habitante de Lisboa há cerca de dois anos, vocalista e co-fundador dos Liima e dos Efterklang, criou a música do seu alter-ego a solo Captain Casablanca, que apresentou ao vivo este ano.

“Sentado neste escritório, só preciso disto [aponta para um microfone], talvez disto [aponta para um teclado]. Posso usar apenas o que tenho aqui. Essa é a maior diferença em relação a outras décadas. Podemos ir a muitos sítios, a quaisquer espaços, para fazer música”. Captain Casablanca foi reflexo disso – e temos esta sala ocupada por um microfone, um teclado, um computador, um pacote de bolachas, um cinzeiro e um likembe (lamelofone africano), como prova. 1982 também foi reflexo disso – não destas redondezas à beira Tejo, mas de vários espaços que os Liima utilizaram em residências, convidados ou fazendo-se convidados, desde o início de 2016.

Os Liima são a banda que nasceu quando Casper, Mads Christian Brauer e Rasmus Stolberg decidiram que década e meia dedicados inteiramente aos Efterklang era muito tempo e que havia mais coisas para descobrir – com o baterista finlandês Tatu Rönkkö inventaram uma nova banda, que nasceu no âmbito de uma residência, na Finlândia. E foi entre residências, viajando entre Berlim, Istambul ou a Madeira, que surgiu ii, o álbum de estreia. Quanto a 1982, nasceu entre hotéis em Londres, Copenhaga e Berlim, escolas norueguesas, a Viseu do festival Jardins Efémeros e a cidade postal finlandesa de Porvoo. “A música ainda é relativamente nova nesta questão das residências”, diz Casper [ver texto nas páginas seguintes]. “Quando falamos de pintores, escritores ou outras formas de arte, uma residência de três meses pode não ter qualquer resultado prático imediato”. No caso dos Liima, a vantagem é saberem que, de uma residência, terá obrigatoriamente que resultar qualquer coisa – os espaços ou instituições que os acolhem pedem habitualmente que, no final, a banda apresente em concerto a música que neles criou. “Sabemos que temos a missão de, em cinco dias, fazer o maior número de canções e mostrá-las. Isso é aquilo de que gostamos mais neste esquema das residências. Permite que nos concentremos”. E proporciona o encontro com o inesperado, levando para a música algo dos espaços que ocupam e das pessoas com que se cruzam.

O primeiro álbum dos Liima, chegou em 2016 e mostrou uma banda mais directa que os Efterklang, mestres da filigrana orgânico-sinfónico-digital, uma banda mais vivida à flor da pele. 1982, que será apresentado em Portugal em Março de 2018 (ZDB, em Lisboa, dia 21; Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, dia 22; festival Tremor, em Ponta Delgada, dia 24), tem um contexto diferente, conta uma história diferente. É o álbum de um reencontro, é trabalho sobre a memória e sobre como a transformar para que se torne matéria do presente. É o álbum de alguém que já se permite um balanço da vida,  alguém que se sente envelhecer sem se sentir velho: perfeitamente à vontade nesta era em que “tudo é fluído, em que a maior parte das nossas vidas está exposta na internet, em que o mundo virtual é usado de uma forma muito natural”, mas que, ao mesmo tempo, se sente “um dinossauro ancestral” por ter conhecido o antes (dos telemóveis, das redes sociais, etc…).

Aceitando o passado

Casper Clausen saiu de casa aos 18 anos, juntamente com os futuros colegas nos Efterklang, abandonando a pequena cidade costeira dinamarquesa onde nascera em direcção a Copenhaga. Fê-lo para escapar a uma vida igual à dos pais, como é desejo de 90 por cento dos adolescentes. O novo álbum, habitado por uma melancolia de néon desmaiado, é consequência de um momento de pacificação. “Não tentes fazer sentido do passado, aceita-o. É isso que sinto neste momento. O passado fez de mim o que sou, mas ainda posso decidir o que quero ser”. No dia seguinte à conversa com o Ípsilon teria pais e irmãos a seu lado, chegados da Dinamarca para passar o Natal em Lisboa.

I’ve been living in the shadows / Now, here I am / I’m a different man”. São versos da primeira canção do novo álbum. Partilham o mesmo título, 1982. É o ano do nascimento de Casper e os restantes Liima nasceram à volta dele, um ano antes, um ano depois. “Tendo nascido na Finlândia e na Dinamarca, partilhamos as mesmas referências, as dos filmes de Hollywood e de um certo tipo de música, a da estética de futuro retratada em Blade Runner ou em Exterminador Implacável”.

As músicas que foram compondo desde o início de 2016 gravitavam em volta desse universo, como o denunciam títulos como David Copperfield (o mágico americano) e Kirby’s dream land (um jogo de consola dos anos 1990), ou histórias que Casper nos conta, como a da génese de People like you, que encontramos num exercício de corte e cola que o vocalista fez com a letra de Atmosphere e, de seguida, num ensaio em que a banda “jammou” sobre o clássico dos Joy Division.

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1982 é um disco em que os Liima mergulharam numa memória partilhada, procurando canalizar para som o ambiente das bandas-sonoras de Carpenter, as sensações transmitidas na infância pela música dos Depeche Mode ou dos supracitados Joy Division. “Grande parte do que são os Liima nasce de conversas sobre música, cinema ou arte, sobre a origem das nossas influências”. Não se incomodam em tê-las bem destacadas à vista de todos. “A partir do momento em que roubamos uma coisa, insistimos, tocamos uma vez, e outra, e outra até se tornar outra diferente. Não interessa de onde retiras as coisas, interessa onde as levas”.

Tudo aquilo representa uma das camadas de 1982, disco que, diz Casper, Chris Taylor, produtor do álbum e músico dos Grizzly Bear, moldou enquanto obra coerente – “foi ele que fez o álbum”, elogia: “Ergueu-o do que era, nós a tocarmos as canções ao vivo no estúdio, até um álbum que soa mesmo a um álbum”. Tudo emanando de um mesmo universo: “Música muito sintetizada, artificial, mas que respira como natureza orgânica. Tem uma certa estética 80s, mas não de uma forma retro. A nossa intenção foi fazer um álbum futurista – como Blade Runner era também futurista”. A outra camada liga-se directamente ao método criativo dos Liima.

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A ironia do roupão branco 

Casper acaba de tomar um pequeno-almoço requintado no seu quarto de hotel. Roupão branco vestido, caminha pelos corredores. Os Liima estão em Londres, num hotel de cinco estrelas nas proximidades de Oxford Street, na primeira das residências de 1982. Ensaiavam num salão muito chique num andar subterrâneo, onde eram visitados por público enquanto decorria o processo criativo. Foi ali que nasceu Life is dangerous. Surgiu-lhe quando, no seu roupão branco, observava aquele bizarro “mundo paralelo onde só havia luxo e pessoas brancas” – “será que os que estavam ali dentro sabem que a vida pode ser perigosa, que existe outro mundo para além daquele em que vivem?”.

Casper vê Tatu Rönköo às voltas com o seu gravador portátil. Estão num hotel de Copenhaga e ensaiam na antiga cozinha industrial. “Cabiam lá cerca de 80 pessoas e fazíamos um concerto todos os dias”. Nas suas deambulações, Tatu acabará a experimentar sons na velha casa de banho do espaço. Despeja água, ouve o resultado, sampla – “o som já não está na canção finalizada, mas foi a génese de Kirby’s dream land, recorda Casper. Que nos conta depois do tempo passado noutro hotel, este em Berlim e eles alojados bem no alto, com vista para toda a cidade, e que entretanto os Mouse On Mars transformaram no seu estúdio privado.

Durante o processo de composição, os Liima fizeram uma digressão peculiar no norte da Noruega, tocando quatro ou cinco concertos diários “para adolescentes cheios de sono”, no âmbito de um programa escolar estatal. Depois de Berlim, estiveram em Viseu, convidados pelo festival multidisciplinar Jardins Efémeros. Seis dias passaram no Conservatório, trabalhando nova música entre os alunos. A linha de sintetizador de 1982, central ao planar elegante da canção, nasceu ali, tocada originalmente pelos estudantes viseenses em tuba, contrabaixo, violino e acordeão. “Tudo isto parecem pequenos jogos, mas estes pequenos jogos têm um lugar muito especial. E é o ambiente em que estamos que propicia que eles apareçam”, diz Casper. “Quanto tinha 20 anos, detestava quando diziam que a nossa música [dos Efterklang] soava muito escandinava e me perguntavam pela ligação entre a Dinamarca e as nossas canções. Agora percebo que existe obrigatoriamente uma relação. O lugar em que estamos e o estado de espírito que proporciona é o que faz a música”.

1982 é fruto de uma viagem interior, a da banda a confrontar-se com a infância e primeira juventude sob o prisma do presente. 1982 não seria o que é se os Liima não tivessem andado por Londres, Copenhaga, Berlim e Viseu, se não tivessem andado a tocar para miúdos noruegueses, se não se tivessem enfiado num estúdio na cidade finlandesa de Porvoo, num Inverno muito frio, para gravar com Chris Taylor as canções que o compõem, feitas de um ambiente futurista sintetizado, com a imaginação povoada de animações 8-bits, pop vestida com a elegância dos Cars ou dos Roxy Music tardios, pop feita escapismo – o sintetizador divagante aponta a fuga – num exacto equilíbrio entre melancolia e desejo de extravasar.

O sol começa a desaparecer onde o Tejo se torna Atlântico e Casper fala com entusiasmo de como este retiro na margem sul do rio o inspira. De como aprecia ver a noite descer e as luzes da cidade à sua frente acenderem-se enquanto trabalha em mais um pedaço de música. Conta que, não há muito, esteve nesta mesma sala a trabalhar com Mads Brauer na música que os Efterklang preparam com um ensemble barroco de Antuérpia para estreia pública em Janeiro. Pouco antes, falávamos ainda de 1982. “Sempre nos sentimos atraídos por uma certa melancolia, mas é como chorar enquanto sorrimos. Não nos interessa o que é demasiado alegre e luminoso, unidimensional. Procuramos a linha ténue entre um sentimento e o outro. É esse equilíbrio que procuramos. Nesse sentido, este álbum, apesar da melancolia, é esperançoso. Mas esperançoso de uma forma compreensiva, consciente de onde vimos”. 1982. Aqui estamos.

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