A guerra entre Riad e Teerão já chegou aos direitos das mulheres?
No dia em que estalavam os primeiros protestos contra o aumento dos preços e o próprio regime do Irão, a polícia da capital anunciou que deixará de deter mulheres por usarem o lenço islâmico de forma a deixar ver cabelo.
Seria a primeira boa notícia da guerra sem tréguas que a Arábia Saudita lançou nos últimos anos, em reacção ao acordo nuclear que permitiu aos iranianos regressarem mais ou menos como iguais ao palco do mundo.
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Seria a primeira boa notícia da guerra sem tréguas que a Arábia Saudita lançou nos últimos anos, em reacção ao acordo nuclear que permitiu aos iranianos regressarem mais ou menos como iguais ao palco do mundo.
Em vez de financiarem grupos radicais para combater o líder sírio que os iranianos ajudam, ou matarem milhares de iemenitas debaixo de bombas porque os rebeldes huthis são próximos dos aliados xiitas de Teerão, em vez de brincarem a ver quem tira e repõe primeiros-ministros no Líbano, estarão as duas potências que disputam a hegemonia do Golfo Pérsico a ver quem se despacha a dar mais direitos às mulheres dos seus países?
A verdade é que apesar do rigor das regras sauditas, nunca as mulheres deixaram de exigir novos direitos. Do mesmo modo, apesar da repressão com que a chamada revolução verde de 2009 (contra eleições fraudulentas) foi esmagada, as iranianas têm mantido acesa a chama do protesto: durante o Verão, cresceram o número de mulheres envolvidas na campanha lançada pelo movimento My Stealthy Freedom (A Minha Liberdade Furtiva), um dos vários grupos empenhados em combater o uso compulsivo do véu no Irão. No ano que agora acabou, a novidade foi o número crescente de mulheres a recusarem usar hijab enquanto conduziam (para além de detidas, viam muitas vezes as suas viaturas confiscadas).
Na véspera do início dos protestos contra o regime – onde já se ouve gritar “Abaixo o ditador” e “Khamenei, devias ter vergonha, deixa o país em paz”, tinha-se celebrado mais uma #WhiteWednesday, a campanha que o My Stealthy Freedom iniciou depois da reeleição de Hassan Rohani para a presidência, em Maio.
A cada quarta-feira, as mulheres são convidadas a usar véu branco, os homens a vestirem de branco em solidariedade. Aliás, uma fotografia que chegou a circular como ícone dos novos protestos tinha sido tirada na quarta-feira, mostrando uma iraniana sem o seu hijab branco, que atara ao pau que segurava.
A foto era na verdade de Teerão e a fotografada foi detida, na véspera do início dos protestos generalizados, que estalaram primeiro em Mashad (segunda maior cidade do país, no Nordeste) contra o aumento dos preços e o investimento iraniano na região (no apoio a Bashar al-Assad na Síria, ao Hezbollah no Líbano ou ao Hamas), por oposição às dificuldades que tantos iranianos passam. Investimento feito precisamente no contexto do conflito entre a potência xiita e a potência árabe sunita da região.
Fim das detenções
Rapidamente estas manifestações evoluíram nos slogans e se expandiram a grande parte do país, com 12 mortos já confirmados durante o fim-de-semana.
No dia em que foi tirada aquela foto, as habitantes de Teerão ficaram a saber que a chamada “polícia da moralidade” vai deixar de deter as mulheres “apanhadas” a usar “mau hijab” – o obrigatório lenço islâmico que cobre os cabelos usado de forma solta, a deixar ver mais ou menos madeixas.
Trata-se de uma primeira vitória, mas apenas isso: poderão ser reencaminhadas para aulas de reeducação e, se reincidirem, ainda estão sujeitas a ser acusadas de um crime e, eventualmente, multadas.
Entretanto, decorria na Arábia Saudita o principal torneio do mundo de xadrez – a federação internacional da modalidade chegou a acordo com os organizadores sobre o código de vestuário, que não envolveu a obrigação de usar hijab nem abaya (túnica comprida), “uma estreia para qualquer competição desportiva” no reino dos santuários do islão.
Isso não impediu o boicote do torneio por parte da ucraniana Anna Muzichuk, dupla campeã mundial, que decidiu assim abdicar de medalhas para “não ser acompanhado por um homem nas saídas e não se sentir como uma criatura secundária”.
Terão estas pequenas aberturas algo a ver com a rivalidade permanente entre Riad e Teerão?
Há algumas suspeitas, mas não é certo: pequenas conquistas recentes serão mais fruto da persistência de activistas incansáveis e do trabalho que dá, na prática, persistir em restrições absurdas. Mais isso do que uma troca de respostas permanente entre a Arábia Saudita do príncipe herdeiro Mohammad bin Salman, jovem e mais liberal nos costumes, apesar de ser um falcão na Defesa e Política Externa, obcecado com o Irão, e Teerão, que permanece a teocracia nascida da revolução de 1979, mas com o centrista Rohani como Presidente.
Futebol e condução
Ainda assim, algumas medidas foram anunciadas logo a seguir a novidades no país rival, o que dá que pensar. Por exemplo, pouco tempo depois do anúncio dos sauditas de que as mulheres passariam a poder assistir no estádio a jogos de futebol (uma das lutas mais duras que as iranianas travam há anos), em Outubro, o Irão apressou-se a divulgar que vai permitir às suas atletas de levantamento do peso competir pela primeira vez em torneios internacionais, onde quer que estes se realizem.
Mas a grande notícia de 2017 para as sauditas foi mesmo que a partir de Junho vão poder conduzir, finalmente, e não apenas carros, também motas e camiões. Sim, as sauditas continuavam a ser as únicas mulheres na região impedidas de se deslocar livremente nas suas próprias viaturas, uma regra absolutamente incompreensível e contra a qual muitas activistas protestavam com regularidade, enfrentando, nalguns casos, a prisão.
Para Rada Hakakian, poeta e jornalista irano-americana, co-fundadora do Centro de Documentação dos Direitos Humanos no Irão em New Haven, Connecticut, iranianas e sauditas têm beneficiado “de uma competição entre os dois regimes para ganhar a medalha de alternativa islâmica mais moderada”.
Numa coluna de opinião publicada quarta-feira no jornal The New York Times, Hakakian cita ainda uma activista iraniana, Mariam Memarsadeghi, que se diz não só feliz pelos avanços das sauditas mas “encantada porque o regime iraniano ver a sua falsa superioridade moral desfeita, com as leis e as acções do regime contra as mulheres mostradas como são, atrasadas e absurdas, mesmo por comparação com um país que é visto como o mais retrógrado da região”.