Sauditas decididos a “puxar tapete regional ao Irão”
A eventual aproximação de Washington a Teerão muda todo o tabuleiro regional erguido desde a revolução islâmica iraniana de 1979 e está a ser muito difícil de gerir pelos árabes.
Vendo-se cada vez mais cercado por combatentes jihadistas e milícias apoiadas por Teerão, o país que se considera o líder do mundo árabe sunita não esperou pela conclusão de um acordo na Suíça para declarar guerra à crescente influência regional do Irão xiita.
É verdade que os rebeldes huthis do Iémen estavam quase a conquistar a segunda maior cidade do país, onde se encontrava o que resta do Governo reconhecido internacionalmente, quando os sauditas lançaram as primeiras bombas, à frente de uma coligação de dez países. Mas os próprios líderes da monarquia (e de outros países que os apoiam, como os Emirados Árabes Unidos ou a Turquia) têm justificado a intervenção mais com a necessidade de “travar a ameaça expansionista iraniana” do que com o objectivo de proteger o Presidente Abd Mansour Hadi ou os iemenitas.
"Resolver os assuntos com os nossos próprios meios é o nome do jogo hoje”, diz Jamal Khashoggi, veterano jornalista saudita e ex-conselheiro do Governo, citado pelo jornal The New York Times. “Um acordo [com o Irão] vai abrir o apetite saudita e turco por mais programas nucleares. Mas por agora a Arábia Saudita está a avançar com as suas operações para puxar o tapete aos iranianos na nossa região.”
É do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, o aviso contra um acordo “ainda pior do que tínhamos antecipado” e a afirmação de que “o eixo Irão-Lausanne-Iémen é muito perigoso para a humanidade e tem de ser travado”. Mas estas podiam ser palavras do rei Salman, o monarca saudita que sucedeu ao irmão, Abdullah, em Janeiro.
Paranóia e factos
Os sauditas, e os seus aliados árabes sunitas da região, temem que os Estados Unidos estejam a entregar a supremacia regional ao Irão. A lógica de que um acordo tornará o Irão menos ameaçador não os convence, mesmo porque as suas convicções são em parte apoiadas em factos mas também alimentadas pela paranóia – delírios que Teerão não se esforça exactamente por desmentir.
Riad tende a observar o mundo em seu redor a partir da ameaça do “crescente xiita”, expressão cunhada pelo rei Abdullah da Jordânia antes da invasão norte-americana do Iraque, em 2003, que derrubou um ditador árabe sunita e abriu a porta do poder à maioria xiita da população iraquiana.
Para o guardião dos dois principais locais santos do islão, Meca e Medina, é fácil ler as movimentações regionais em termos sectários. Mesmo se é a sua intervenção que tende a exacerbar tensões sectárias em conflitos que são antes de mais políticos.
Sabe-se que o Irão já enviou dinheiro aos huthis, talvez até armas. É possível ainda que tenha treinado no seu território cem combatentes desta tribo iemenita de confissão zaidita (os zaiditas, um ramo do islão xiita, são perto de um terço dos 25 milhões de iemenitas) e até que alguns membros das suas forças (ou do Hezbollah libanês) tenham passado pelo Iémen para ajudar a treinar ou aconselhar os rebeldes.
Mas isto não faz dos huthis “marionetas do Irão”, como dizem sauditas e membros do Governo iemenita (liderado por um Presidente que chegou ao poder em 2012 na sequência de um acordo negociado por Riad).
O conflito que opõe há muitos anos esta tribo do Norte ao executivo central prende-se com a falta de investimento de Sanaa nas regiões onde se concentram os zaiditas e os recentes avanços dos huthis explicam-se mais com a aliança com o ex-Presidente Saleh, obrigado a deixar o poder para o seu sucessor, Hadi, e com a fraqueza deste. Quando os huthis entraram em Sanaa, a capital, em Setembro, fizeram-no com armas conquistadas ao Exército iemenita, mesmo segundo os relatos da imprensa saudita.
Hadi, tal como Saleh quando estava no poder, depende mais do apoio saudita do que alguma vez os huthis dependeram da ajuda iraniana.
Síria, Iraque e Líbano
Também há factos, como o apoio de Teerão ao regime sírio de Bashar al-Assad – ao qual Riad responde apoiando grupos de rebeldes sunitas, incluindo jihadistas ligados à Al-Qaeda, como os que durante o fim-de-semana capturaram Idlib a Assad, fazendo da cidade apenas a segunda capital de província da Síria a escapar ao Governo (a primeira foi Raqqa, bastião do autoproclamado Estado Islâmico). E sim, para além da Síria, o Irão apoia os governos de dois outros países árabes, o Iraque e o Líbano, este através do Hezbollah.
Daí até se poder afirmar que os Estados Unidos são aliados do Irão no Iraque, como Riad tem feito, vai algum caminho. Ambos estão no terreno a combater a ameaça jihadista – e há uma coordenação tácita. Mas na batalha para reconquistar Tikrit aos fundamentalistas, por exemplo, Washington só aceitou participar com bombardeamentos quando as milícias xiitas apoiadas pelos iranianos foram substituídas por soldados do Exército de Bagdad.
Os sauditas também acusam os iranianos de apoiarem a oposição xiita no Bahrein – país de maioria xiita governado por uma família sunita –, mas foram eles que não hesitaram em enviar tropas para esmagar protestos pró-democráticos no pequeno país do Golfo, em 2011.
No Iémen, a situação só parece piorar, com dezenas de civis mortos nos últimos dias (alguns nos bombardeamentos da coligação saudita, outros em combates) e o Governo de Hadi a pedir “uma intervenção terrestre” assim que possível.
Suspeitas árabes
Com iranianos e sauditas a trocarem acusações sobre quem está a desestabilizar o país mais pobre do mundo árabe, que controla grande parte do comércio marítimo mundial, quem pode ganhar é afinal um inimigo comum, a Al-Qaeda na Península Arábica, que tem a sua base no Leste do Iémen. “O país parece estar à beira do colapso total”, avisa o Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Raad al-Hussein.
Analistas e diplomatas da Arábia Saudita, do Egipto ou dos Emirados têm repetido o aviso: se o Irão não recuar nas suas ambições regionais, vamos assistir a um aumento das tensões na zona porque cada vez mais os países árabes vão agir militarmente sem esperarem pelos EUA.
A eventual aproximação de Washington a Teerão muda todo o tabuleiro regional erguido desde a revolução islâmica iraniana de 1979 e está a ser muito difícil de gerir pelos árabes.
“Há uma desconfiança no mundo árabe, uma impressão de que estas negociações não são só sobre o nuclear, e uma queixa frequente destes países, que dizem não ser consultados”, explica Gamal Abdel Gawad Soltan, politólogo da Universidade Americana do Cairo. “Os EUA são agora considerados um aliado muito menos fiável enquanto garantia política face às ameaças de segurança que os governos da região enfrentam, e é por isso que estes governos decidiram agir sozinhos.”