Debaixo desta cama, séculos de História nos contemplam

História, em várias camadas, não falta no Corpo Santo Lisbon Historical Hotel, junto ao Cais do Sodré, em Lisboa - de parte da Muralha Fernandina à Torre de João Bretão, são vários os vestígios visíveis. Mas isso não impede a modernidade e o conforto deste novo cinco estrelas da cidade.

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Ainda não há muito tempo, dormir a meia dúzia de metros do Cais do Sodré era ideia para fazer esboçar sorrisos desdenhosos e arquear de sobrancelhas. Percorrer a Rua do Arsenal e não ver os prédios velhos, já cheios de ervas, onde funcionaram despachantes e outras actividades ligadas ao rio, parecia miragem. E, no entanto, a terra move-se, e de tal modo que uma zona mal-amada da cidade é hoje um dos seus ex-líbris turísticos; a rua onde cheira sempre a bacalhau já quase não tem despachantes.

Vão desaparecendo também as pensões de circunstância, que durante décadas marcaram o Cais, e passa-se agora pelo Largo do Corpo Santo quase não se acreditando que alguém meteu na cabeça que era boa ideia abrir ali um hotel de cinco estrelas. Maior loucura parece quando espreitamos pelas janelas indiscretas do piso térreo, viradas à Rua do Arsenal, e vemos que lá em baixo está um bocado de antiga muralha de Lisboa.

Mais do que uma dor de cabeça (que também foi), a volumosa quantidade de vestígios arqueológicos tornou-se uma singularidade que os donos do Corpo Santo Lisbon Historical Hotel quiseram pôr em evidência. E por isso lá estão à mostra 32 metros da Muralha Fernandina, que está naquele sítio desde o século XIV, e o que sobra da chamada Torre de João Bretão, um corsário contratado por D. João II para proteger a costa lisboeta.

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Chegaria isto para espevitar a curiosidade, mas um hotel não se faz só de relíquias do passado, e neste há modernidade bastante para justificar as cinco estrelas. Ainda que Pedro Pinto, director do hotel, não sinta grande peso nos ombros por causa disso. “Nós, lá por termos cinco estrelas, não temos de ser diferentes, temos é de saber receber as pessoas”, diz. “Não temos a pretensão de ser os melhores, queremos ser nós”, acrescenta. Isso sim, pesa-lhe nos ombros. “Preocupamo-nos em ter um produto que faça com que as pessoas gostem de estar cá. Elas vêm para ver Lisboa, não é para verem o nosso hotel.”

Pelas tais janelas de onde se vê a muralha, vê-se também uma parte do restaurante Porter. O contraste entre os dois espaços é evidente e por aqui se percebe como descontracção é uma das ordens da casa. A sala de refeições é luminosa, decorada com candeeiros contemporâneos e uma grande parede de azulejos que imita as escamas de um peixe – o que não é um acaso: durante as escavações arqueológicas foi encontrado um prato com este feitio.

A ementa também não tem tentações de snobismo. Por exemplo, a carta de vinhos tem escolhas para quem não entende nada sobre o néctar e para quem quer partilhar – assumindo sem peias que há uma grande fatia da população que, embora fingindo um ar grave quando lhe dão o vinho a provar, não entende nada de taninos e quejandos termos.

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Uma vista nova sobre a cidade

De manhã, ao abrir-se a janela do quarto virado ao Largo do Corpo Santo, ouve-se o martelar ritmado das obras que decorrem nos prédios próximos. Olha-se para a cidade de outra forma. Vê-se o 25 a curvar para a Rua de São Paulo, o chão está molhado da chuva que caiu toda a noite e cheio de folhas dos grandes plátanos que há do outro lado do quarteirão. Enquanto os carros se atravancam na Ribeira das Naus, esticamos o pescoço e lá vemos uma nesga do Tejo atrás dos feios prédios das agências europeias, ao fundo o guindaste da Lisnave. Noutra direcção, lá longe, um bocadinho da Ponte 25 de Abril confunde-se com as antenas no topo dos edifícios, ao lado o Cristo Rei, completo, braços abertos para a Lisboa chuvosa. E, mesmo em frente, a Igreja do Corpo Santo, sempre misteriosa porque raramente está aberta. No telhado, ao lado da cúpula, há um pequeno sino que só se vê assim, de cima. No topo da fachada, por cima do brasão, gravado na pedra: Veritas.

Fechamos a janela e voltamos ao quarto, onde as prateleiras apresentam um curioso leque de obras literárias: Explication des oiseaux, de Lobo Antunes; L’Anné de la mort de Ricardo Reis, de Saramago; The Complete Homebrew Beer Book, entre outros. Pontuam nas paredes, aqui e ali, azulejos das antigas encarnações do prédio. E se há sempre passado à espreita, o presente e o futuro nunca deixam de ali estar. As casas de banho estão equipadas com um sistema de cromoterapia, que permite escolher cinco ambientes com música e luz de cores diferentes, baseados nos cinco elementos da Natureza.

Cada piso tem uma inspiração diferente, cada qual com papel de parede e odor próprio. Fazemos a viagem do primeiro ao quinto andar, que corresponde também às venturas lusas pelos mares deste mundo. Eles iam de barco, nós subimos de elevador com Pedro Pinto. Há o ambiente Norte de África, depois o da África Central (romãzeiras e cheiro a cacau), Ásia (pagodes, cheiro a incenso), América (araras, tucanos, cheiro a baunilha) e regressamos a Lisboa, lá no cimo. Tudo foi feito “com muita simplicidade”, explica o director, antes de nos conduzir à jóia do hotel.

É, naturalmente, a sala onde está a muralha, que agora serve para fazer reuniões e conferências. “Queremos ser rigorosos do ponto de vista científico”, começa a explicar Pedro Pinto, secundado pelo arqueólogo António Valongo, que trabalhou durante toda a escavação e prepara agora a museologia do espaço. Em breve será possível a qualquer pessoa, mesmo que não se aloje no hotel, visitar este local. Estará visível uma gravura que representa a invasão castelhana de Lisboa em 1384 e serão expostas peças de cerâmica e outras que ali se encontraram.

Além da muralha e da torre, “foi-nos possível identificar cerca de 12 compartimentos” de um palácio que pertenceu à Casa do Infantado, de que D. Pedro II foi grande impulsionador, explica o arqueólogo. Um pouco mais para o fundo da sala encontrou-se parte de uma antiga calçada, que “estava em muito bom estado de conservação” e que corresponderá ao Rossio de Cata Que Farás, mandado calcetar por D. Manuel I em 1512. Por fim, encontrou-se também um paredão sobre o qual existiu em tempos a ermida de Nossa Senhora da Graça, erguida pela Irmandade dos Mareantes, cuja primeira referência é de 1492.

Um hotel já cheio de camadas que, ainda assim, propõe-se a não cristalizar. “Ele tem esta particularidade: daqui a um mês está diferente, daqui por seis meses estará diferente”, promete Pedro Pinto.

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A Fugas esteve alojada a convite do Corpo Santo Lisbon Historical Hotel

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