Numa das suas crónicas da semana passada, Rui Tavares respondeu aos autores de um artigo de opinião sobre “o federalismo suíço como modelo para a Europa”, que tinha sido publicado uns dias antes, também neste jornal. Os quatro professores que assinavam o artigo (Eurico Figueiredo, Fernando Condesso, José Adelino Maltez e Carlos Fraga) tinham acusado Rui Tavares de denegrir o patriotismo, acusação que ele considerou ser uma deturpação grosseira do seu texto, isento de qualquer confusão entre nacionalismo e patriotismo. Sem ser visto nem achado nessa troca de palavras que não chegou a ser um debate, intrometo-me para me colocar convictamente no lugar onde Rui Tavares, com igual convicção, disse nunca ter estado: o da crítica ao patriotismo, aproximando-o (ou até assimilando-o) ao nacionalismo. Bem sei que uma tradição de pensamento quase canónica nos assegura que o patriotismo é doce e bom, enquanto o nacionalismo é amargo e mau; e que o primeiro é benévolo e tolerante em relação às diferenças culturais e às minorias étnicas e religiosas, enquanto o segundo é agressivo em relação a tudo o que considera estrangeiro e, levado aos seus extremos, constitui uma regressão a um estado guerreiro e de existência tribal. Mas este discurso que pretende distinguir duas formas de pertença a uma comunidade, dizendo que elas são completamente diferentes, baseia-se em falácias ou em critérios tão plásticos que servem para tudo e para nada. Podíamos parafrasear Hobbes, dizendo que “o nacionalismo é um patriotismo desagradável, enquanto o patriotismo é o nacionalismo que agrada”. A diferença assim formulada apresenta uma óbvia analogia com a distinção feita por Breton (também há quem a atribua a Robbe-Grillet) entre pornografia e erotismo: “A pornografia é o erotismo dos outros”. É verdade que ser patriota não significa reivindicar um direito adquirido pelo sangue (isto é, por via dos nosso progenitores) e pelo solo (isto é, por fusão com a entidade nacional onde se inscreve o lugar de nascimento). Mas significa termos orgulho nessa coisa que se chama cidadania e sentirmos amor pela “pátria”, essa entidade tão mítica como é, para o nacionalismo, o mito nacional-estatal. O nacionalismo é o patriotismo dos outros, mas os patriotas (de Esquerda e de Direita) salvam a sua boa consciência dizendo que o patriotismo e o nacionalismo não coincidem na mesma reivindicação identitária. É verdade que, nesse aspecto, exibem algumas diferenças, mas ambos, com mais ou menos essencialismos à mistura, não prescindem das identidades, das pesadas cristalizações históricas, culturais e geográficas. Uma história do conceito de patriotismo, como a que faz o grande historiador dos conceitos que é Reinhart Koselleck, mostra que ele nasceu no início do século XVIII como uma figura-guia do Iluminismo político e que no século XIX, na época do Romantismo, se tornou um princípio organizador da acção política. Mas o que Koselleck mostra também é que antes de começar a ser entendido como um antídoto contra o nacionalismo, o patriotismo não se distinguia claramente deste e até foi necessário definir um patriotismo mau e um patriotismo bom. Foi aliás para isolar e salvar um patriotismo bom — operação impossível, disseram os seus críticos — que Habermas formulou o seu conceito de “patriotismo constitucional”, pós-nacional, isento de visões apologéticas do passado nacional e até portador de uma visão crítica, como exigia a República Federal da Alemanha depois do nazismo. Avatar romântico, o bom patriota é uma figura da reciclagem histórica.
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