Maravilhas de Ravel, o presente de Natal do São Carlos para toda a família

L'enfant et les sortilèges, de Maurice Ravel, chega agora a Lisboa na encenação de James Bonas, com direcção musical de Joana Carneiro. E promete ser uma experiência "visceral e surpreendente”, como convém a uma ópera que para muitos poderá constituir uma primeira vez.

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NUNO FERREIRA SANTOS
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Uma azáfama no teatro: último dia de ensaios no São Carlos, e os trabalhos não paravam. Era preciso acertar detalhes musicais e gestos dos cantores, ensaiar movimentações e agradecimentos, olear a máquina para o dia seguinte. Em causa estava a estreia, esta quinta-feira, da “fantasia lírica em duas partes” L'enfant et les sortilèges, que é, na verdade, uma ópera num só acto composta por Maurice Ravel.

A segunda ópera do compositor francês – e depois não houve mais nenhuma – é uma peça que o Teatro Nacional de São Carlos apresenta (até 6 de Janeiro) como “uma experiência mágica para crianças e adultos”, e foi escrita de facto com a intenção de se dirigir ao público mais jovem, tendo uma criança como protagonista. Uma criança apresentada de início como desobediente, preguiçosa (“Não me apetece trabalhar”) e cruel (“Apetece-me puxar o rabo do gato!”), que destrói as coisas que a rodeiam. Mas essas coisas começam a tomar vida e aí se iniciam os “sortilégios” do título desta ópera de Ravel.

O compositor partiu de um libreto de Colette, de seu nome completo Sidonie-Gabrielle Colette, escritora e actriz nascida em 1873, figura “escandalosa” na Paris da transição do século, sobretudo devido à sua assumida bissexualidade. O director da Ópera de Paris tinha-lhe pedido que escrevesse um “bailado-fantasia” em 1915. Colette admirava Ravel e gostou da ideia de lhe encomendar a música para o seu libreto, que recebeu o título provisório de Divertimentos para a minha filha. Mas Ravel estava na altura a combater na Primeira Grande Guerra Mundial. E em 1917 teve um desgosto profundo com a morte da sua mãe. Depois da guerra, recomeçou lentamente a compor (e a recompor-se), e pegou finalmente no libreto de Colette, terminando a composição apenas em 1925.

“A música de Ravel e o libreto de Colette são extraordinários”, diz-nos o encenador James Bonas, que estreou uma outra produção desta mesma obra para a Ópera de Lyon na temporada passada. “Há imagens poéticas e uma alegria que apela ao sentido do maravilhoso”, continua. A versão que veremos em Lisboa não tem contudo a animação de Grégoire Pont com que se estreou em França: “Houve problemas logísticos de vária ordem e tivemos de fazer sem a animação prevista, começando de novo e arranjando outras soluções. Tinha decidido pôr a orquestra no palco. Era importante mostrar a extraordinária orquestração de Ravel”, explica o encenador inglês, que tem lidado frequentemente com o mundo da ópera.

“Há jazz, brincadeiras com o teatro musical. Brincadeiras musicais e até de 'não-música'. E muitos efeitos sonoros. No tempo de Ravel, foi uma obra supreendente, experimental e desafiante”, resume James Bonas numa conversa no Salão Nobre. Não esconde a sua admiração pelo edifício do São Carlos, que quis mostrar também nesta encenação: “A música explora territórios: de repente podemos estar num jardim, por exemplo. Tentei que a encenação pudesse estar no meio do som e jogar com o espaço. Encontrando os espaços no próprio edifício, na sala do São Carlos. Jogando com objectos, mas também com os sítios de onde as personagens podem aparecer."

Sentir os cantores

E de facto os cantores aparecem dos lugares mais improváveis, com as luzes a ajudarem à criação de um espaço de imaginação um pouco especial: “Começamos como um concerto formal, com a separação tradicional entre palco e público, e depois isso quebra-se, o concerto desfaz-se, desmorona-se. Na peça isso também acontece. Desdobra-se, e somos puxados para um mundo diferente." Um mundo de magias e ironias, brincadeiras e violências, tons e cores, que é criado pela orquestra dirigida por Joana Carneiro, mas também pelos cantores: “Também julgo que é importante a proximidade com os cantores, que na ópera parecem sempre estar muito longe. Por isso criei momentos em que estão ao lado dos espectadores ou em locais improváveis. Para se sentir a energia dos cantores, perto de nós. E ao mesmo tempo activar a imaginação, dar-lhes uma experiência marcante.”

Tudo num ritmo alucinante: “Aqui há mais de 20 cenas em menos de uma hora. É um ritmo muito rápido, a imagem move-se constantemente”, diz James Bonas. L'enfant et les sortilèges é uma ópera pequena em duração, mas cheia de maravilhas que se vão desdobrando e desfazendo, a partir da prosa poética do libreto original de Colette.

Assim se instala o tal mundo diferente e maravilhoso, num processo de descoberta e aprendizagem, para a criança-personagem e para nós, os espectadores: “Pode haver uma imagem literal, mas convida-se o público a usar a imaginação. Um sapo ou um relógio, por exemplo, fazem-se através de pequenos gestos.” Nesse jogo de imaginação, nota o encenador, as crianças são peritas: “Convidadas a usar a imaginação, elas alinham. Um pequeno movimento do dedo pode ser um barco. Aqui isso acontece, e obriga os espectadores a uma atitude activa."

Activa e criativa, como deve ser a experiência de uma ópera, segundo James Bonas: “Julgo que a primeira experiência de uma ópera é importante e deve ser visceral e surpreendente.” E é isso que nos promete o encenador de L'enfant et les sortilèges: “Uma ópera divertida, surpreendente, imersiva." Perdoaremos nós as maldades da criança? Só vendo e ouvindo este “maravilhoso” Ravel no São Carlos.

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