Aqui os estrangeiros só lamentam uma coisa: “Isso mesmo, o frio”
Estrangeiros são 26% dos inscritos no Instituto Politécnico de Bragança e mais de metade desses são cabo-verdianos e brasileiros. Atrair estudantes internacionais foi a resposta da instituição à quebra da procura dos alunos portugueses.
“Se não fosse pelo frio, Bragança era uma 11.ª ilha de Cabo Verde.” Délvis Reis atira a frase com uma gargalhada, mas é mesmo a sério que fala. Sente-se “em casa”. “Podes ser feliz em qualquer lugar de Portugal, mas cá somos muitos”, explica. Actualmente, vivem na cidade mais de 700 cabo-verdianos, quase todos estudantes no Instituto Politécnico de Bragança (IPB). A estratégia de atracção de alunos internacionais para a instituição está a mudar a face da cidade transmontana. Há quase 2000 estrangeiros a estudar aqui.
Délvis veio para Bragança estudar Arte e Design. Terminado o curso, decidiu ficar e acaba de entrar nos Bombeiros Voluntários de Bragança (BVB). Por causa de uma publicação sua no Facebook, outros três conterrâneos, todos estudantes do IPB, também se juntaram à corporação. Eugénio Lopes, Elderson Lopes e Andrea Borges vestem o mesmo uniforme: calças de sarja azuis, camisolão vermelho, botas pretas.
Este é já o terceiro grupo de cabo-verdianos nos BVB. Todos estudantes do IPB. Os primeiros chegaram em 2013 e “causaram alguma estranheza”, confessa o segundo comandante Carlos Martins. “Ninguém acreditava na continuidade.” Contudo, não foi assim: esses alunos ficaram na corporação durante os quatro anos em que estudaram em Bragança e só saíram quando encontraram trabalho em cidades do litoral.
“Sempre deram o que podiam, tal como quem é natural de Bragança”, elogia o segundo comandante dos bombeiros, para logo depois corrigir: “Corro o risco até de dizer que se calhar deram mais. Como não tinham cá as famílias, vinham para o quartel mais amiúde.”
Nos últimos oito anos, Bragança foi o distrito em que mais aumentaram os pedidos de residência de estrangeiros. Na capital de distrito, onde se concentra um quarto da população da região, aumentou exponencialmente o número de cabo-verdianos neste período. Do arquipélago africano chegaram 346 pessoas em 2016 — em 2008 eram apenas 38.
O número de cabo-verdianos cresceu tanto que, dentro da Associação de Estudantes Africanos em Bragança, foi necessário criar um núcleo para cada uma das ilhas do arquipélago, para melhor responder às necessidades de acolhimento dos alunos.
Não é apenas Cabo Verde a destacar-se como país de onde chegam cada vez mais pessoas ao concelho de Bragança. No mesmo período, o número de brasileiros a quem foi concedida autorização de residência aumentou 40%. Foram 248 em 2016.
Necessidade e oportunidade
Olha-se para os números de inscritos no IPB e percebe-se uma relação. Em 2016, houve 554 alunos cabo-verdianos e 270 brasileiros matriculados na instituição. Este ano, o número subiu: há 687 alunos de Cabo Verde e 521 do Brasil. O crescimento dos estudantes brasileiros deve-se ao facto de o Exame Nacional de Ensino Médio do país ter passado a ser reconhecido em Portugal, facilitando o processo de candidatura a uma licenciatura. Os estudantes daquelas duas nacionalidades representam mais de metade dos 1987 alunos estrangeiros da instituição.
Nada disto é uma coincidência. Há seis anos, o instituto politécnico desenhou uma estratégia para atrair mais estudantes internacionais e Cabo Verde e Brasil foram as suas primeiras apostas. “Foi um misto de necessidade e oportunidade”, comenta o presidente do IPB, João Sobrinho Teixeira.
Viviam-se tempos de crise de procura dos estudantes nacionais no ensino superior, que afectavam particularmente as instituições do interior. O IPB, que hoje tem 7600 estudantes — e foi a instituição que mais cresceu no último Concurso Nacional de Acesso —, chegou a ter menos de 5000 inscritos em alguns anos lectivos, entre 2009 e 2013.
O politécnico apostou na divulgação da sua oferta em sites especializados internacionais e criou acordos de cooperação com instituições brasileiras — neste momento são 63 as universidades parceiras — e com câmaras municipais cabo-verdianas e a própria Universidade de Cabo Verde.
Foi através desses canais que começou a chegar um número crescente de estudantes desses países, num processo acelerado com a aprovação do estatuto do estudante internacional, em 2014. Depois, o passar-palavra fez o resto. E a crescente comunidade de Cabo Verde e do Brasil na cidade atrai cada vez mais conterrâneos.
A Avenida Sá Carneiro, que liga o IPB ao centro de Bragança, é, por estes dias, uma das ruas mais cosmopolitas do país. É ali que vive a esmagadora maioria dos estudantes internacionais do politécnico, que, neste ano lectivo, vêm de 69 países diferentes — e de proveniências tão diversas como o Nepal, o Quirguistão, o Kosovo ou a Mauritânia.
Nos cafés e bares frequentados pelos alunos não é difícil tomar contacto com esta diversidade. Nas mesas ouve-se falar crioulo, português com diferentes sotaques, inglês. Em muitos desses estabelecimentos trabalham também estudantes estrangeiros, em part-times com que ajudam a pagar os custos da estadia em Portugal.
O impacto do número crescente dos estudantes internacionais na cidade sente-se também nas cadeias de supermercados que operam em Bragança, onde é comum encontrar prateleiras repletas de produtos importados, incluindo grogue, a bebida típica de Cabo Verde, ou milho para cachupa.
Os 1987 estudantes internacionais significam 26% do total de estudantes. É o maior rácio de todo o sistema de ensino superior nacional. E têm um peso muito determinante numa cidade com cerca de 25 mil habitantes.
Revitalizar a cidade
O IPB mediu, este ano, o impacto económico directo dos alunos estrangeiros, não só em Bragança como em Mirandela, cidade que tem um pólo do IPB. Todavia, outras mudanças que não são medidas nesse estudo começam a sentir-se na cidade, desde logo, no mercado de habitação e na reabilitação urbana.
Em 2009, Vítor Laranjeira percebeu as dificuldades com que os alunos estrangeiros que chegavam a Bragança — então sobretudo ao abrigo do programa de mobilidade europeu Erasmus — se deparavam: oferta escassa, relutância dos senhorios em fazer contratos de curta duração e a barreira linguística. Criou a empresa Riskivector, que é agora quem arrenda os apartamentos — cerca de 90 no total — directamente aos proprietários e imobiliárias, e subarrenda aos estudantes, depois de os mobilar e equipar, entre outros serviços prestados.
“Muitas destas casas estavam fechadas se não fossemos nós”, sublinha Laranjeira. A empresa — que no ano passado facturou 300 mil euros e tem dez funcionários, metade dos quais estrangeiros — investiu também na reabilitação do antigo edifício da Segurança Social, no centro histórico da cidade, para o transformar em habitação para estudantes.
Também a Câmara de Bragança recuperou dois edifícios no centro histórico, bem perto do castelo, para residências universitárias destinadas exclusivamente a alunos estrangeiros. São dois dos poucos edifícios reabilitados naquela zona da cidade, bastante degradada e cada vez menos povoada. No próximo ano, nasce uma terceira residência universitária na mesma área.
Mas, afinal, o que atrai os estudantes estrangeiros a estudar na cidade transmontana? A resposta é dada por Higor Cerqueira, que preside à Associação de Estudantes Brasileiros em Bragança: o prestígio que o IPB está a ganhar em rankings internacionais — foi considerado o 50.º melhor do mundo na área de Ciência e Tecnologia Alimentar pelo ranking de Xangai e tem surgido bem colocado nas listas de Leiden, SCImago e U-Multirank; a qualidade de vida e segurança da cidade; o baixo custo da propina (1090 euros anuais para alunos estrangeiros), bem como o baixo custo de vida.
Como vários outros alunos brasileiros com quem o PÚBLICO falou no IPB, Higor chegou a Bragança com a intenção de passar um semestre ao abrigo de um programa de mobilidade e acabou por gostar tanto da experiência que agora está a fazer um mestrado na instituição. “Viver em Bragança é incrível. Quando vou no Brasil não vejo a hora de voltar”, conta. Dificuldade, mesmo, só encontra uma. A mesma com que lida Délvis Reis e muitos outros brasileiros e cabo-verdianos habituados a climas tropicais. “Isso mesmo, o frio.”