O que quer Kim Jong-un de 2018?

O ano que acaba foi trespassado pela crise aberta pelos ensaios nucleares norte-coreanos. O líder de Pyongyang traçou uma estratégia de sobrevivência e não dá sinais de querer abdicar dela. Mas há quem diga que é insustentável 2018 ser a continuação de 2017.

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Foto divulgada pelo governo de Pyongyang que diz ser um retrato de Kim Jong-un a assistir ao lançamento de um míssil balístico inetrcontinantal Reuters

Num dia gélido de 2011, o novo líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, estava acompanhado por sete conselheiros no cortejo funerário do seu pai, Kim Jong-il, pelas ruas de Pyongyang.

Nenhum deles continua com o jovem Kim. Este Outubro, o líder afastou os últimos desses conselheiros, ambos homens na casa dos 90 anos. Estão entre cerca de 340 pessoas afastadas na sequência de purgas ou que foram executadas, segundo o Instituto para a Estratégia de Segurança Nacional, um centro de estudos dos serviços secretos da Coreia do Sul.

Kim, “obviamente um louco” aos olhos do Presidente norte-americano Donald Trump, completou este ano que acaba uma transição de seis anos para o que a Coreia do Sul chama “um reinado de terror”. A sua imprevisibilidade e beligerância instalaram o medo em todo o mundo: depois de ter testado um míssil avançado, Kim declarou que a Coreia do Norte é uma potência nuclear capaz de atingir os Estados Unidos. Mas um olhar mais próximo à sua liderança revela um método por trás da sua “loucura”.

Aos 33 anos, Kim Jong-un é um dos mais jovens chefes de Estado do mundo. Herdou uma nação orgulhosa da sua história, onde as superpotências da Guerra Fria enxertaram um estado socialista que serve de tampão entre a China comunista e o Sul capitalista.

Sob a liderança do pai de Kim, a economia foi mal gerida, e o desmoronar do comunismo na União Soviética eliminou uma importante fonte de apoio. Cerca de três milhões de pessoas morreram à fome.

Para consolidar uma posição fraca, o jovem líder tem alimentado três forças: o poder militar e nuclear, a economia de mercado assente num tácito sector privado, o medo e a adoração de um deus. Para este fim, tem executado homens poderosos e promovido uma jovem mulher – Kim Yo-jong, a sua irmã mais nova, que os observadores dizem ser a chefe da propaganda de Kim. É a única familiar directa de Kim envolvida na política: o seu irmão mais velho, Kim Jong-chol, foi afastado da sucessão pelo próprio pai.

Ao longo de cinco anos, até Dezembro de 2016, Kim gastou 250 milhões de euros em 29 testes nucleares e de mísseis, 150 milhões na construção de cerca de 460 estátuas da família e cerca de mil milhões no congresso do partido único em 2016 – incluindo os 22 milhões que custou o fogo-de-artifício, de acordo com o citado instituto onde trabalham desertores norte-coreanos.  

Lições da História

“Ele substituiu tão facilmente muitos comandantes e altos responsáveis, e mandou matar outros de forma tão implacável, que podemos perguntar se não será louco”, comenta Lee Sang-keun, especialista em liderança norte-coreana no Instituto de Estudos da Unificação na Universidade Ewha, em Seul. “Mas, historicamente, esta é a forma de governar que te mantém no poder durante muito tempo.”

Antigamente, Pyongyang era a capital de um império poderoso, o Koguryo, a raiz da palavra moderna Coreia. Indo ainda mais atrás na História, o conceito de "Grande Líder" é uma mistura de várias ideias que foram aparecendo ao longo dos tempos: um deus todo-poderoso, a adoração confuciana de um pai, um rei com um mandato do Céu, diz Lee Seung-yeol, do Serviço de Investigação da Assembleia Nacional, também na capital sul-coreana.

Lee diz que de acordo com a teoria de sucessão do Estado, a ascensão do mais jovem dos Kim deveria ter todo lugar durante a vida do pai - Kim Jong-il (filho de Kim Il-sung, o primeiro líder norte-coreano) começou a ser preparado para a sucessão 20 anos antes de tomar posse, dando-lhe tempo para construir alianças e um sistema de liderança. Kim Jong-un teve apenas três anos.

Nascido em 1984, era o terceiro na linha de sucessão e uma criança competitiva, diz Kenji Fujimoto, um chefe de cozinha japonês que trabalhou para a família. Nas suas memórias publicadas em 2010, Fujimoto, que tem um restaurante de sushi em Pyongyang, diz que um dia Kim ficou furioso com uma tia que lhe chamou "pequeno general". Queria que lhe chamassem "camarada general".

Quando Kim Jong-il percebeu que o filho mais novo lhe sucederia em breve, adoptou várias medidas para proteger o rapaz, dizem os investigadores. Lee diz que fez mudanças na estrutura em que assentava o poder de forma a criar rivalidade entre a elite, permitindo a Kim jogar um grupo contra o outro.

Kim Jong-il tinha declarado que o poder supremo do país era o exército - uma política chamada songun, que significa "militares primeiro". Mas em 2010, mudou esta política, fazendo com que os militares tivessem que competir com a administração do partido pela primazia.

“A arma dos pobres”

A estratégia militar foi a primeira coisa que Kim Jong-un mudou. O seu pai tinha prometido o desarmamento nuclear em troca de ajuda, e em Fevereiro de 2012, o jovem Kim seguiu as pisadas do pai, prometendo parar o programa em troca de ajuda alimentar norte-americana.

Mas passadas semanas mudou de atitude, anunciando o teste de um míssil de longo alcance. “As negociações foram levadas a cabo como um legado de Kim Jong-il”, disse Wi Sung-lac, antigo enviado sul coreano às conversações em 2011 que levaram a este acordo. “Mas a partir Kim Jong-un começou a construir um pensamento estratégico.”

Do ponto de vista de Kim, Saddam Hussein no Iraque e Muammar Kadhafi na Líbia foram feridos de morte por não terem armas nucleares. “A História prova que uma forte dissuasão nuclear é a arma mais eficaz para travar agressões externas”, dizia um editorial da agência oficial de notícias norte-coreana, a KCNA, em Janeiro de 2016.

A Coreia do Norte está numa corrida para conseguir essa dissuasão nuclear porque considera que o Estado está ameaçado, temendo que Kim tenha um destino igual ao de Kadhafi. Em 2003, o líder líbio aceitou eliminar as suas armas de destruição maciça e, em 2011, foi morto por rebeldes apoiados pelos Estados Unidos e seus aliados.

Meses após a tomada de posse de Kim, a Coreia do Norte alterou a sua Constituição para se declarar um Estado com armas nucleares.  

Uma personagem importante no funeral de Kim Jong-il foi Ri Yong-ho, chefe do Estado Maior General do Exército do Povo Coreano. Kim afastou-o em Julho de 2012. Os serviços secretos sul-coreanos confirmaram mais tarde que Ri foi executado. 

Em 2013, Kim desenhou uma nova política, a byungji - o desenvolvimento paralelo do nuclear e do crescimento económico.

A discussão nuclear é essencial nesta linha política, diz Thae Yong-ho, antigo vice-embaixador da Coreia do Norte em Londres, que em 2016 desertou para a Coreia do Sul. A ameaça da destruição total torna a  bomba nuclear “a arma dos pobres”, com a qual se assegura o controlo do país e uma longa permanência no poder, diz Thae. 

“Sonho infantil”

A Coreia do Norte gasta cerca de um quarto do PIB em Defesa: o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que Kim Jong-un prefere pôr o povo a "comer relva" do que desistir do programa nuclear.

Mas com uma história de fome no país, Kim também diz que quer aumentar a prosperidade do povo.

O chefe Fujimoto lembra-se de, em 2000, Kim, que estava de férias da escola que frequentava na Suíça, estar preocupado com uma visita que o pai tinha feito a Pequim.

"Vamos falar", disse o futuro líder ao pai, numa viagem no comboio provado deste e enquanto tomavam umas bebidas. “Tenho ouvido dizer que a China parece estar a ser bem sucedida em muitas frentes – engenharia, comércio, hotéis, agricultura - tudo”, disse Kim, segundo a memória do chefe. “Não deveríamos seguir o seu exemplo?” 

Em 2012, pouco depois de chegar ao poder, Kim tentou mimetizar, numa escala menor, as reformas que a China fez nos anos de 1980. Os agricultores foram autorizados a manter uma grande parte das suas colheitas. Empresas estatais foram autorizadas a comprar e a vender a preços de mercado e a contratar e despedir trabalhadores. Empresários privados e comerciantes foram encorajados a investir em projectos públicos. Kim começou também a fazer vista grossa aos mercados paralelos, que o seu pai tentara, em vão, combater.

Nesse mês de Abril, Kim dirigiu-se ao país – primeira vez em 17 anos, os norte-coreanos ouviram a voz do seu líder. “A firme determinação do partido é que o povo não volte a ter de apertar o cinto”, declarou. Kim assegurou que a liberdade económica não o derrubaria.

Os observadores esperaram que as reformas fossem um sinal da nova abertura política de Kim, que tentava promover o Norte ao mundo: em 2012, o senador italiano Antonio Razzi, do partido Força Itália, disse que Kim lhe pedira para encontrar um centro de treino em Itália para os jogadores de futebol. “Falei com muitos dirigentes locais norte-coreanos”, disse Razzi. “Eles não tencionam atacar ninguém. A Coreia do Norte só quer armas nucleares para se defender".

Jang Song-thaek, um administrador na vanguarda de reformas, também estava no cortejo fúnebre de Kim Jong-il, em 2011. Casado com a irmã de Kim Jong-il, era o enviado especial para a China e tinha supervisionado as “zonas económicas especiais” criadas por todo o país.

Em Dezembro de 2013, foi expulso do Politburo e acusado de arquitectar um golpe em frente às câmaras de televisão. “Jang teve um sonho tão infantil”, disseram os media estatais, acrescentando que Jang esperava que as suas reformas "lhe trouxessem reconhecimento estrangeiro”.

Jang foi atingido "dezenas de vezes" pro disparos de uma arma anti-aérea e os seus restos mortais destruídos com um lança-chamas, de acordo com os serviços secretos da Coreia do Sul – uma versão dos acontecimentos que ninguém confirmou.

“Ditador do desenvolvimento”

A partir dessa altura, o culto de personalidade de Kim começou a ser mais bem trabalhado. No dia do afastamento de Jang, o jornal oficial norte-coreano, o Rodong Sinmun, divulgou uma canção dedicada a Kim Jong-un e intitulada Não conhecemos nada a não ser a ti. Seguiram-se outras.

No ano seguinte, Kim ordenou uma revisão aos manuais escolares para que se centrassem na idolatria e incluírem imagens de armas nucleares e mísseis, de acordo com o Instituto para a Estratégia de Segurança Nacional.    

A campanha de idolatria atingiu um ponto alto em 2016, centrando-se na cultura pop e na juventude: Kim escolheu um grupo pop feminino, a Moranbong Band, para realizarem uma série de concertos e peças de teatro que apelavam a que se fosse leal ao líder, enquanto a Brigada de Choque, um grupo de jovens, produziu mais de 1200 poemas e outras obras literárias.    

“Ele ligou a sua legitimidade à melhoria da situação económica do país”, diz John Delury, da Universidade Yonsei, em Seul. “Kim Jong-un quer tornar-se o ditador do desenvolvimento”.   

Apresenta-se como um portador da abundância. Em 2015, quase metade das vezes em que foi fotografado foi em fóruns económicos, segundo os dados do Ministério da Unificação de Seul. Só este ano, e à medida que as suas armas iam sendo testadas, motivando respostas enfurecidas por parte dos Estados Unidos, é que aumentou as suas aparições em contexto militar.

No funeral do pai, e atrás de Kim Jong-un, estava, chorosa, a sua irmã mais nova de 28 anos, Kim Yo-jong. No mesmo dia de Outubro que Kim afastou os últimos dois conselheiros que “herdou” do pai, ele incluiu-a no Politburo. Kim Jong-chol, o irmão mais velho, vive uma vida pacata em Pyongyang, onde toca guitarra numa banda, segundo o embaixador Thae.

Lee Su-seok, investigadora no Instituto para a Estratégia de Segurança Nacional, diz que Kim foi inteligente a consolidar o poder e a garantir a sobrevivência: “Penso que Kim Jong-un tem dado bom uso ao sistema vigente, fortalecendo a sua base e o regime ditatorial de uma forma muito perspicaz”. 

Os observadores dizem que o ano novo não pode ser uma continuação dos meses que se passaram - quando as sucessivas sanções não travaram o líder de Pyongyang, e a escalada na retórica belicista entre Kim e Trump enervou o mundo.

Nada garante que não surjam mais testes - e, por isso, há quem arrisque dizer que em 2018 alguma decisão será tomada sobre a Coreia do Norte. Que tipo de decisão - muito depende do que Kim quer para 2018.