Doce, docemente, a caminho do Sul
Cristina Castro acaba de lançar o segundo livro da série A Doçaria Portuguesa. Depois do Norte, é o Sul que percorre agora, dos tradicionais doces de maçapão algarvios até aos muito mais modernos pastéis de Al-Madan, de Almada.
Doces ricos e doces pobres, nascidos nos conventos ou fazendo-se passar por conventuais, chamados de delícias ou maravilhas ou até pileques, mexericos, farrobitos, pontos de açúcar, mãos experientes, histórias que se perdem no tempo, figos, amêndoas, alfarroba, açúcar e muitos, muitos, ovos.
Depois de ter lançado um primeiro livro sobre o Norte de Portugal, Cristina Castro guia-nos agora, docemente, pelo Sul do país. Com fotografias de Gonçalo Barriga, ilustrações de Ana Gil, prefácio de Maria de Lourdes Modesto e edição de Carlos A. Pereira, A Doçaria Portuguesa – Sul já está à venda.
É o segundo volume do que a autora descreve como “um extenso trabalho sobre a história e a actualidade da doçaria portuguesa” (deverão sair pelo menos mais dois), que se prolonga no site No Ponto, com vídeos que mostram a confecção de muitos destes doces. Não são incluídos os doces, mesmo que tradicionais, que só se fazem em casa. O critério de Cristina foi ter apenas aqueles que se encontram à venda — o que faz com que o livro possa ser (também) um roteiro para quem quiser percorrer o país na rota da doçaria.
No prefácio, Maria de Lourdes Modesto sublinha que aqui encontramos a história “não fantasiada” de cada doce. E essa é uma das grandes virtudes do trabalho de Cristina Castro: uma pesquisa séria e rigorosa, num universo que, por falta de fontes fidedignas, nem sempre é fácil de trabalhar.
Comecemos então a viagem. Nisa é a primeira paragem, para conhecermos os bolos dos tabuleiros e a primeira personagem destas histórias, Antónia Manteiga, “uma das protagonistas da doçaria de Nisa”. E estes bolos dos tabuleiros têm já uma característica que vamos encontrar em vários doces do Sul (mas também do Norte, porque, diz Cristina, é difícil estabelecermos fronteiras): o uso da massa do pão.
“O bolo de massa do pão é muito comum no Alentejo e no Algarve, mas também vi muita doçaria popular no Norte que acredito que inicialmente seria feita com massa de pão”, explica. “A doçaria dos folares, do pão podre, do pão doce, provavelmente tem toda a mesma raiz, que é o aproveitamento do pão. As pessoas juntam outras coisas como forma de enriquecer um pouco o pão do dia-a-dia para uma ocasião especial.”
Uma das especialidades de Antónia Manteiga, de Nisa, são “os bolos das festas de Alpalhão, tradicionais da Páscoa, oferecidos pelos padrinhos aos afilhados, como acontece com o folar”. E também uma série de bolos mais pequenos que “integravam os chamados tabuleiros de casamento, repletos não só daqueles doces, mas também de doces grandes, como pães-de-ló e tortas” e que se ofereciam aos padrinhos dos noivos.
Seguimos viagem, mas paramos já na terra seguinte, Marvão, porque os pastéis de castanha são pretexto para falarmos de outro fenómeno que se tem verificado em algumas localidades: o aproveitamento de produtos locais na doçaria, muitas vezes com o incentivo das câmaras Municipais, que organizam concursos, desafiando os doceiros locais a apresentarem as suas criações.
Foi o que aconteceu em Marvão, onde dois chefs da Escola de Hotelaria de Portalegre, Cristiano Louro e Luís de Matos, criaram um pastel a partir da castanha Marvão-Portalegre, um produto com denominação de origem. O resultado, descreve Cristina, é “um creme de castanha muito aveludado, muito lustroso, que inclui ovos, canela, açúcar e erva-doce, bem como uma massa fina e rectangular”.
“Estes desafios das câmaras são uma coisa recente”, diz a autora. “Houve uma época, nos anos 1940 e 50, em que surgiram muitos doces novos, que eram apresentados como doçaria conventual. Foi uma altura em que as pessoas começaram a ter mais dinheiro, apareceram pequenos negócios. Mais recentemente, são as câmaras que criam concursos com a preocupação de ir buscar o produto local e os doceiros locais”.
Esses doces mais recentes entram no livro desde que se tenham tornado uma referência na cidade ou vila onde são feitos. Outros que entusiasmam Cristina são as broas e os pastéis feitos com bolota, em Estremoz, por Isilda Ameixa, “uma alentejana com boa mão para a doçaria”, criadora da marca Dom Alentejo e “uma das figuras da reabilitação gastronómica do fruto”.
Mas se, fora de Estremoz, os doces de bolota fazem sucesso, na terra ainda há algum preconceito em relação a um fruto que sempre foi visto como comida de animais. Cristina elogia, contudo, a imaginação destes doceiros. “Nos anos 1940 e 50, o que aparecia era sempre pastel de feijão, pastel de amêndoa ou de chila, ou amêndoa e chila juntas.” Agora a criatividade é muito maior.
Também a moda de fazer doces com alfarroba é relativamente recente, afirma Cristina. “É uma coisa talvez dos anos 90. Antigamente, as pessoas usavam a alfarroba, mas não para a doçaria que conhecemos hoje.” Em Alzejur, por exemplo, pela mão de Pedro Cabral e Filipe Carvalho, que criaram as delícias de Aljezur, nasceram vários biscoitos e tartes que usam a batata-doce, produto que na zona tem grande qualidade, e que se cruza com amêndoa, figo, laranja, alfarroba.
Num país pequeno como Portugal, a história da doçaria não pode ser muito estanque, sublinha Cristina. “O que acontece é que as tradições foram-se perdendo nuns sítios e mantiveram-se noutros, tanto na doçaria popular como na conventual. E por determinadas regiões serem ricas num ingrediente, o doce ganhou ali características diferentes e evoluiu.
Veja-se o caso das alcomonias de Grândola. Este é um daqueles doces que obrigam a investigadora a procurar nos livros referências que ajudem a explicar a sua origem. O nome é de origem árabe e, segundo o dicionário de Adalberto Alves, citado por Cristina, significa “o temperado com cominhos”, referindo-se a “melaço ou bolo temperado com cominhos e erva-doce”. Outros dicionários apontam o mesmo caminho.
Acontece, no entanto, que as alcomonias de Grândola são feitas com pinhão e não com cominhos. A primeira referência que Cristina encontrou do uso do pinhão é de 1935, num livro português de receitas doces com mel. Por outro lado, o doce tem a forma de um losango, o que o liga à doçaria árabe, que muitas vezes usa formas geométricas. Curiosamente, no Brasil encontramos os pés-de-moleque, também chamados de alcomonias e que levam farinha de milho, melaço e amendoins.
Alcácer do Sal é igualmente uma zona rica em pinhão e, por isso, aí encontramos as pinhoadas, os barquinhos ou os copinhos de pinhão. Mas, apesar dos esforços das câmaras para manter vivos estes produtos tradicionais, o pinhão é muito caro e os doces vendem-se menos que outros, feitos com produtos menos nobres.
Sagrado e profano
Poderíamos pensar que a influência dos árabes se sentia apenas no Algarve, mas o facto é que a vamos encontrar em doces que viajaram até outras regiões do país. Certo é que no Algarve há grande tradição de usar maçapão, muito apreciada também pelos árabes, e que nesta região são recheados com fios de ovos ou ovos-moles.
“É uma massa [feita de amêndoa moída em casca, açúcar e claras de ovo] muito fácil de moldar, parece quase plasticina, por isso a decoração vê-se sempre onde há maçapão. Os árabes também fazem animais, legumes.” Outra tradição ancestral algarvia, e que explora igualmente a arte da decoração, são os queijos de figo e outros doces feitos de massa de figo esmagada e amêndoa.
Para Cristina, o difícil é, frequentemente, estabelecer se um doce é ou não conventual. Os vídeos que coloca no site No Ponto chamam, por vezes, a atenção de alguém que a contacta com alguma informação — e algumas já se revelaram muito úteis. Mas em muitos casos as fontes escasseiam e quem poderia contar a história já morreu.
“Há muito pouca coisa escrita, está tudo muito disperso. Na doçaria popular, é acreditar no que as pessoas dizem, tentar encontrar a pessoa mais antiga que ainda esteja viva.” Por isso, quando tem dúvidas prefere dizer que é um doce “tipo conventual”. “Só gosto de dizer que é conventual se encontrar uma receita escrita de um convento”, explica.
“E mesmo assim podemos dizer que eram feitos, agora, dizer que foram criados no convento, já é diferente. Algumas destas receitas vêm nos livros mais antigos da corte e mesmo da Europa. As tortas de Guimarães, por exemplo, toda a gente sabe que foram feitas pelas clarissas até à extinção do convento. Mas são iguais aos sfogliatelle ricce, de Nápoles. Foram as clarissas que as inventaram em Guimarães?”
No primeiro volume de A Doçaria Portuguesa, Cristina escreve que “a receita da torta de Guimarães consta nos livros de receitas antigos de duas ilustres famílias vimaranenses, Freitas do Amaral e Sampaio da Nóvoa”. Dado que a aristocracia sempre teve relações próximas com as instituições religiosas, “é frequente ficarmos sem saber se foram inventadas por freiras e depois dadas a conhecer a famílias nobres ou se foi o inverso”.
Esta circulação de receitas entre as famílias aristocráticas europeias leva-nos de regresso ao Alentejo e a outro doce muito curioso, o manjar branco. A receita, conta Cristina, aparece já no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, do século XV, e fazia-se por toda a Europa. “A grande diferença para os nossos dias é que agora o manjar-branco não tem galinha, mas sim leite, farinha de arroz e açúcar em ponto cabelo.” Colocado numa travessa com a ajuda de uma colher, forma gomos, que, depois de ir ao forno tostar, podem-se tirar separadamente.
“Era muito comum por toda a Europa, não há livro que não tenha uma receita de manjar-branco. Acredito até que não devia ser uma receita, mas sim uma técnica para dar consistência a um molho.” E se o manjar-branco que hoje encontramos em Portalegre já não leva a carne de galinha desfiada, o mesmo não acontece com outro doce, o manjar das Chagas, que se pode provar em Vila Viçosa, na Pousada D. João IV, situada no antigo Real Mosteiro das Chagas de Cristo. Este, da família dos manjares brancos e dos reais, continua a levar carne, neste caso a de coelho.
Tal como no Norte, também no Sul a religião está presente e, mais do que isso, utiliza a doçaria como forma de fazer chegar a Deus e aos santos os pedidos dos homens. “Em zonas diferentes do país encontrei doces que são usados para fazer pedidos ao mesmo santo, com a mesma intenção e tudo”, descreve a autora. E depois “há as fogaças, que são todo um mundo” (e que são também outro exemplo de um doce que vem do pão).
Mas se há o sagrado, há igualmente o profano. Num dos locais que visitou para a edição sobre o Norte, Valpaços, assistiu à confecção do bolo-podre de Santa Maria. No momento em que os bolos entraram no forno, as mulheres que os fizeram e todas as pessoas que estavam nas proximidades juntaram-se para darem umas boas gargalhadas. Se não o fizessem, garantiram a Cristina, os bolos não sairiam cheios e bojudos. Ficavam “monos”.
Em alguns casos, são tradições mais antigas do que a religião cristã, acredita Cristina. “Provavelmente vêm de práticas ligadas ao fazer o pão. Começa sempre com o pão, o doce é uma coisa que vem depois.”
O projecto de Cristina segue agora para o Centro do país e para as ilhas, em busca de mais doces, mais doceiros e mais histórias. Para irmos seguindo no site No Ponto, enquanto esperamos pelos próximos livros.
De onde vem a sericaia?
Convento das Chagas de Cristo, em Vila Viçosa? Ou Convento de Santa Clara, em Elvas? Ambos? Ou nenhum? A origem do doce alentejano conhecido como sericaia não é fácil de estabelecer. “A origem oriental da sericaia é uma possibilidade com muitos adeptos e há razões para isso”, escreve Cristina Castro. “Na primeira década do século XVII, Fr. João dos Santos, missionário na Índia, relata a história de uma mulher que, querendo matar o bispo português de Malaca, fez-lhe um ‘manjar de leite e assucar, a que na Índia chamam Syricaya (que é um comer muito excelente) e deitou-lhe dentro peçonha.” Ou seja, o doce existia em Malaca na época. Mas Cristina cita, por outro lado, Adalberto Alves e o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, segundo o qual “ciricaia”, “sericaia” ou “siricaia” são palavras portuguesas vindas do árabe “sirâ ‘kayya”, que significa “acção do ferro quente”. Conventual, oriental, árabe? Ou uma história mais complexa que pode não excluir qualquer destas possibilidades?
O renascer da farinha torrada
A mais antiga referência que Cristina Castro encontrou à farinha torrada data de 1693 e revela-se na terceira edição de A Arte da Cozinha, de Domingos Rodrigues. Aí a farinha torrada é usada para “estilicídio”, ou seja, para curar doenças respiratórias. Há alguns anos, a Câmara Municipal de Sesimbra decidiu recolher testemunhos de quem ainda se lembrava do consumo de farinha torrada, usada sobretudo no século XIX para combater a fome e como medicamento para os mais pobres. “Fazia-se aproveitando os restos de farinha e o forno ainda quente de cozer o pão. Frequentemente, usava-se só farinha e açúcar. Os pescadores levavam pedaços dessa farinha torrada para o mar para recuperar forças e matar a fome”, escreve Cristina. Com leite e açúcar, resultava numa papa que se dava às crianças — uma tradição que se encontra também na Madeira e nas Canárias.
Hoje, à farinha torrada juntam-se outros ingredientes, espalha-se num tabuleiro e vai ao forno, sendo depois cortada em quadrados. Assim, recuperando uma memória antiga, nasceu, a partir de 2009, a marca “farinha torrada de Sesimbra”.