A culpa é do tesoureiro
João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem era José Sócrates e até agora não reportaram coisa alguma.
O final da semana passada foi marcado por dois acontecimentos bizarros, e muito típicos de uma certa indignidade que polui o espaço público português há demasiado tempo: o ataque aos tesoureiros da Raríssimas e à jornalista Ana Leal por falhas deontológicas no exercício das suas denúncias; e a sentença do caso Bárbara Guimarães-Manuel Maria Carrilho, onde a juíza declarou para a posteridade que uma mulher que se diz independente não apanha do marido sem abandonar o lar e não anda pelas revistas cor-de-rosa a dizer que se sente feliz quando colecciona nódoas negras. Esta espécie de moralismo descabelado e de exigência extrema dirigida aos queixosos e aos denunciantes, considerando inadmissível que não tenham denunciado melhor e se queixado com mais competência, mostra duas coisas: 1) uma lastimável compreensão da natureza humana, e 2) um enorme talento para proteger trafulhas, agressores, corruptos e ladrões.
Comecemos pelo caso Raríssimas noticiado pela TVI, mas deixando para próxima oportunidade as acusações à jornalista Ana Leal por ter violado a vida privada do pobre secretário de Estado e por não ser capaz de reconhecer o que é “alta-costura”. Prefiro centrar-me nas acusações aos tesoureiros que deram a cara na reportagem. Segundo João Galamba e Daniel Oliveira, tais senhores tiveram um comportamento vergonhoso: fizeram as denúncias com vários anos de atraso e quando já lá não estavam. Escreve o cronista do Expresso, protegendo de caminho o ministro Vieira da Silva: “A Assembleia Geral só poderia conhecer esses abusos se o tesoureiro os reportasse. Esperou seis anos, em que colaborou com a trafulhice, para o dizer. Não à Assembleia Geral, como era seu dever, mas à TVI.”
Eu diria, só para começar, que João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem era José Sócrates e até agora ainda não reportaram coisa alguma — e tanto que teriam para nos contar. Olhar para um caso destes e concluir que o tesoureiro esteve mal é o mesmo que olhar para a prisão de Totò Riina e declarar que os arrependidos que o entregaram não deviam ser mafiosos. Quando Galamba e Oliveira optam por criticar as pessoas que deram a cara para fazer uma denúncia em vez de criticarem os que nunca viram nada, ou se viram nunca se atreveram a abrir a boca, estão a escolher o seu campo — o que não chega a ser surpreendente, mas não deixa de ser triste.
O caso Bárbara-Carrilho é distinto, na medida em que a presunção de inocência foi feita para os tribunais: se a juíza achou que não existiam provas inabaláveis para condenar Carrilho há que respeitar e aguardar pelo recurso. Contudo, certas afirmações que constam da sentença, como “Bárbara Guimarães é uma mulher destemida e dona da sua vontade, pelo que não é plausível que na sequência das agressões tenha continuado com o marido em vez de se proteger a si e aos filhos”, são de tal forma ignorantes do que é a violência doméstica e a pressão social de uma figura pública que fazem duvidar da sua sensatez.
O que aqui temos, em última análise, são dois casos de hiper-moralismo de bancada. Uma juíza que considera, do cimo do seu púlpito, que a tão independente Bárbara Guimarães não podia levar nas trombas e calar. E dois políticos comentadores que afirmam, à forcado, que se o tesoureiro da Raríssimas fosse um verdadeiro macho teria enfrentado a senhora Paula há muitos anos. Esta gente tem uma de duas coisas: ou uma enorme coragem ou uma imensa lata. Eu voto na lata.