Há línguas quase extintas. Como as podemos salvar?
Em todo o planeta há línguas ameaçadas. Agora, uma equipa de cientista fez uma nova árvore evolutiva com algumas línguas do Sudeste asiático e do oceano Pacífico que devem ser preservadas. Também em Portugal há uma “quase extinta” que se tem procurado revitalizar.
Numa aldeia de Taiwan, existe uma língua que tem apenas 24 falantes, muitos deles já pessoas mais velhas. É o kavalan, considerado uma língua “quase extinta” e que ocupa o primeiro lugar de um ranking de línguas a preservar segundo um artigo na revista científica Royal Society Open Science. Construído por cientistas do Canadá, Reino Unido e da África do Sul, esse ranking é uma como árvore evolutiva para línguas de ilhas do Sudeste asiático e do oceano Pacífico. Indo até Portugal, também há uma língua que tem só 24 falantes fluentes. É o minderico, de Minde, distrito de Santarém, e pode ter tido origem no grupo socioprofissional dos cardadores e vendedores de mantas. “O minderico é uma língua ameaçada em Portugal”, que é como quem diz “a piação é uma do badelo a jordar para o canto da macainha no Jardim do Camões”.
Não há dúvida de que há muitas espécies de animais e plantas ameaçadas, assim como há muitas outras que já se extinguiram. Uma forma de percebermos como todas se relacionam e de obter informação sobre elas é através de árvores evolutivas. O conceito vem da biologia evolutiva, em que os ecólogos constroem essas árvores filogenéticas em forma de diagramas.
Tal como as espécies de animais e plantas, também há línguas ameaçadas. Segundo o artigo, das cerca de sete mil línguas hoje existentes desaparece uma língua a cada duas semanas. Ainda de acordo com o Atlas das Línguas em Risco da UNESCO, pelo menos 43% das cerca de seis mil línguas existentes estão em risco. Como se pode preservar essas línguas? Construindo árvores evolutivas das línguas, através de cálculos computacionais.
Os cientistas construíram então um ranking (ou árvore, se se preferir) de línguas a preservar através do EDGE, semelhante a uma métrica usada na biologia evolutiva. EDGE divide-se em “distintividade evolutiva” (ED) e “ameaça global” (GE). A primeira mede quão distinto é um idioma de outras línguas da sua família. “As línguas que têm poucos parentes são consideradas mais ‘especiais’ e têm mais pontuações de ED”, diz Nicolas Perrault, da Universidade de Oxford (Reino Unido) e um dos principais autores do estudo. Já a “ameaça global” calcula o quão provável é uma língua ficar extinta. “Inclui o número de falantes e quão novos são. A língua mais ameaçada tem maior pontuação de GE.”
A equipa considerou 350 línguas faladas em ilhas espalhadas no Sudeste asiático e no oceano Pacífico. “Hoje há mais de 1200 línguas austronésias, tornando-a uma das maiores famílias de línguas”, lê-se num comunicado. E por quê as 350 línguas? “Nos estudos de linguística histórica, é comum comparar o vocabulário básico de diversas línguas, uma vez que este vocabulário (que corresponde a palavras essenciais e muito frequentes no discurso) é mais resistente à mudança ou substituição”, explica Hugo Cardoso, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, que não fez parte do estudo. “Nestas 350 línguas, os autores tiveram em conta as respectivas palavras para o mesmo conjunto de 210 conceitos básicos, para determinar o seu parentesco e graus de afastamento.” Esta recolha já tinha sido publicada em 2009 na revista Science, por uma equipa da Universidade de Auckland (Nova Zelândia). Outras informações são da base de dados online Ethnologue, que tem o registo de mais de sete mil línguas.
Na “árvore”, cada língua vem acompanhada com uma pontuação e com um estatuto, como aqueles da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Vamos então à contagem decrescente do top 10. No topo está o kavalan, de Taiwan. Em 2000, tinha então 24 falantes e só é falada na aldeia de Sinshe. Está por isso classificada como “quase extinta”. “Tem havido esforços recentes para reanimá-la nas escolas, mas sem os fundos apropriados a aldeia não consegue formar professores de línguas”, lê-se no artigo.
Depois está o tanimbili, uma das três línguas mais ameaçadas da ilha de Utupua, das Ilhas Salomão. Está também “quase extinta”, tem menos de cem falantes e quase não está documentada. Ainda no top 3 está o waropen e, logo a seguir, o sengseng, ambas da Nova Guiné e faladas por menos de mil pessoas. A primeira está “em substituição” e a segunda está classificada como “ameaçada”. “O waropen não é falado por crianças”, avisa o artigo.
Em quinto lugar ficou o magori da Papuásia-Nova Guiné, que está “quase extinta” e tinha menos de cem falantes em 2000. Logo a seguir está a xârâcùù, da ilha de Nova Caledónia, que tem cerca de seis mil falantes e está “quase ameaçada”. Na lista seguem-se o irarutu, que está “ameaçado”, e o mor, os dois da Indonésia. O top 10 encerra-se com o engdewu e o tanema, das Ilhas Salomão. A última tem apenas um falante.
De um segredo nasceu uma língua?
“A construção de árvores linguísticas mais abrangentes permitem preservar as línguas, o que pode ser proveitoso para linguistas, antropólogos e historiadores”, considera em comunicado Jonathan Davies, da Universidade de McGill (Canadá) e coordenador do trabalho. Para Hugo Cardoso, este método é “interessante” do ponto de vista prático. “Ajuda a priorizar os esforços de conservação. Mas pode ser um pouco controverso porque significa que podemos abandonar e não dar tanta atenção a outras [línguas]”, nota. “As línguas ameaçadas são de comunidades que estão a passar por algum problema. Pode dar-se o caso de uma língua estar ameaçada e, por não ser distintiva, não ser uma prioridade.”
Hugo Cardoso investiga línguas crioulas de base portuguesa, nenhuma delas consta deste estudo. Já trabalhou com o crioulo de Diu, de Cochim e de Cananor (Índia) e agora estuda o crioulo do Sri Lanka. Há ainda outras duas variantes da Índia, a de Damão e Korlai, e o crioulo em Malaca e em Macau. Todas estão ameaçadas e uma já desapareceu: o crioulo de Cochim, em 2010. “Antes disso, já tinham desaparecido muitas outras variantes, entre as quais as de Bombaim, Mangalor, Negapatão ou Meliapor (Índia), a de Batávia (actual Jacarta, Indonésia), o que se falou em Timor e em muitos outros lugares da Ásia”, avisa. O investigador diz que há várias razões para tantas línguas estarem ameaçadas, como a diminuição das populações, por migração e a pressão de outras línguas com estatuto oficial e mais influência na educação ou na administração.
As línguas faladas em Portugal não estão no estudo, mas podemos ver o seu estatuto no Ethnologue. O português tem o estatuto de “nacional”, enquanto o mirandês (na zona de Miranda do Douro) é “regional”. Depois há o barranquenho (de Barrancos), que está “ameaçado”, ou o caló (a variedade do romani falado na Península Ibérica pelos povo cigano) “em desenvolvimento”. “E alguns resquícios de ladino ou judeu-espanhol. Essas são mesmo as mais conhecidas”, destaca Vera Ferreira, responsável pelo Arquivo de Línguas Ameaçadas na Universidade de Londres.
Há ainda uma que está “quase extinta” e tem ocupado mais tempo a Vera Ferreira. É o minderico. De acordo com os registos escritos, como cartas pessoais e registos de igreja, surgiu no final do século XVII e no início do século XVIII. “Nessa altura, para existirem registos escritos, era porque a língua era falada”, frisa Vera Ferreira, que a estuda desde 2000, depois de lhe terem oferecido um glossário. Agora é directora do Centro Interdisciplinar de Documentação Linguística e Social (CIDLeS), em Minde. “Uma das hipóteses defendidas pela comunidade de falantes é que o minderico surge como um sociolecto, uma língua de um grupo socioprofissional, nomeadamente dos cardadores e vendedores de mantas de Minde”, conta. “Desde o século XVI que as mantas de Minde são conhecidas, num período em que o rei mandou criar materiais e têxteis para o exército.”
As mantas começaram depois a circular pelo país. “Esse trabalho manteve-se até ao século XX, com os homens a frequentar os mercados e a vender mantas. Então, para poderem falar do preço que queiram fazer às mercadorias em frente de estranhos, criaram construções linguísticas próprias.” Os homens passaram a língua às mulheres e elas transmitiram-na aos filhos. Passou assim para toda a população.
Nos últimos tempos, nomeadamente durante a elaboração do dicionário de minderico, surgiu uma outra hipótese. “Fizemos uma análise etimológica de cada lexema e conseguimos reproduzir alguns deles e datá-los para o século IX, X e XI, o que é um período longe da indústria das mantas”, diz Vera Ferreira. “Se temos lexemas que nos levam ao século IX, X e XI, é muito provável que, sendo esta uma bacia moçárabe e o minderico tem influências do moçárabe, a língua já existisse localmente. Mas o que ficou na memória das pessoas foi o seu uso como vertente comercial e de secretismo.” Além disso, há só cinco palavras relativas à produção têxtil. As restantes são para vivências do quotidiano, comida, transportes ou doenças.
Vai um “joão da garota”?
O minderico ainda se falou em Mira de Aire e Serra de Santo António, que pertenciam administrativamente a Minde. Agora, na Serra de Santo António já não há falantes e em Mira de Aire restam quatro. Ao todo, são 24 os falantes fluentes de minderico, o mais novo com 45 anos. Depois, há 150 falantes activos que misturam o português e o minderico na conversação diária, assim como mil falantes passivos, que entendem a língua mas não a falam. E há ainda 50 neofalantes, entre os sete e os 45 anos, fruto do trabalho do CIDLeS. É o caso de Rita Pedro, responsável pelo grupo de revitalização linguística do CIDLeS. Com 34 anos, nasceu em Minde, mas os pais são de Leiria e de Fátima e não lhe transmitiram esta língua. Aprendeu-a depois em aulas para adultos.
“A comunidade falante utiliza o minderico em actividades culturais ou quando vêm personalidades a Minde. No dia-a-dia misturam o português com o minderico, o que basta para dar sentido à frase”, conta. Os falantes fluentes usam o minderico em família e, na presença de outras pessoas, o português. Por exemplo, em minderico, se querem um café pedem um “joão da garota”, dão o bom-dia com “planeta cópio”, uma boa noite com “fusca cópia”, um olá com “alé”, um obrigado com “lince” e, para perguntar a alguém como se chama, dizem “como foste jordoada?”.
O minderico é considerado uma língua e não um dialecto, uma vez que este é uma variedade regional de algo definido como língua-padrão. “Uma língua é uma variedade linguística, à semelhança de um dialecto, mas adquiriu poder económico, político e social e, com isso, prestígio. A distinção entre língua e dialecto pressupõe sempre uma decisão política”, esclarece Vera Ferreira. “O minderico foi-se afastando do português, criando características próprias morfossintácticas a nível gramatical, que o tornaram uma entidade autónoma, como outra língua qualquer.”
Em 2011, o minderico foi reconhecido com o código ISO 639-3 DRC, que é atribuído a todas as línguas reconhecidas como tal. Mas, em Portugal, não é reconhecida a nível nacional. Para Vera Ferreira, isso pode dificultar iniciativas futuras, mas um tal reconhecimento também pode ser um “presente envenenado”. “O mais importante para qualquer língua é o que se faz com que ela sobreviva. O que a mantém são os falantes e a transmissão intergeracional. Se isso não acontecer, a língua desaparece”, considera.
Rita Pedro partilha da mesma opinião: “Mesmo ameaçado, o minderico está vivo e, como qualquer outra língua, tem necessidade de evoluir.” Para o manter vivo, já se promoveram aulas nas escolas locais, aulas para adultos e fizeram-se materiais didácticos de acesso livre como um reconhecer de texto (a aplicação Poio) e um dicionário em papel e digital. Depois, há toda uma vida cultural em minderico. Há o grupo de teatro Boca de Cena, que tem peças como A Cabiçalva (A Sardinha) e As Mindricas (As Mulheres de Minde). Ou, na música, uma banda que até já participou em 2014 no Liet International (uma espécie de Festival da Eurovisão para línguas ameaçadas), a Bandalheira. [Em 1982, o cantor e compositor Pedro Barroso dedidou-lhe uma canção, a que chamou A piação dos ninhou].
E, já agora, uma árvore evolutiva é uma forma de se preservar uma língua? “Sim, sem dúvida”, responde Vera Ferreira e frisa que é costume fazerem-se estes rankings. “Uma avaliação dessas só reflecte a realidade se tiver em conta diversos factores, como a realidade genética da língua, a realidade sociocultural, a transmissão intergeracional e a presença da língua nos meios de comunicação, na literatura e redes sociais.”
Nicolas Perrault acrescenta que “preservar uma língua é um processo difícil”. “Isso só é possível nalgumas comunidades que estão interessadas em preservar as suas línguas nativas. Antes que aconteça [a extinção], o ideal é compilar materiais pedagógicos, como gramáticas, listas de vocabulários e fazer gravações.”
Agora, Nicolas Perrault vai reunir informação de outras 865 línguas, para outro trabalho. “Este estudo pode ser expandido para outras famílias de línguas”, assume. “As línguas de Portugal podem ser incluídas em estudos futuros por investigadores interessados em línguas indo-europeias. Mas não está nos nossos planos.” E faz questão de apelar: “As línguas são a faísca de um povo, carregam as culturas e, ao extinguirem-se, perdemos conhecimentos únicos sobre a história humana e a evolução das próprias línguas. O seu desaparecimento é uma perda para a humanidade, para o saber e a ciência.”
Poderíamos também fazer um apelo em minderico, que é a tradução em português do título deste artigo: “Um podê das do badelo está a encolher os mirantes. Como as jordar terrantezas?”