O poder de contaminação de Yvonne Rainer
A influência da coreógrafa americana manifesta-se no trabalho de diferentes gerações de artistas portugueses, como Vera Mantero, Diana Policarpo e João dos Santos Martins.
Desde 1997 que Serralves tem feito, de forma continuada, um levantamento do trabalho e do legado da geração da Judson Dance Theater e de alguns dos artistas que gravitavam em redor do colectivo. Não só através da apresentação dos seus trabalhos, muitas vezes com a presença dos protagonistas, como dando espaço a recriações, adaptações e retransmissões das suas peças activados por gerações actuais de performers e coreógrafos. Steve Paxton, Yvonne Rainer, Simone Forti, Charlemagne Palestine, Robert Rauschenberg, Trisha Brown Dance Company, Elaine Summers, Deborah Hay, Robert Morris e Babette Mangolte são os nomes dessa época que já estiveram sob o foco da programação da instituição (alguns deles passaram também por outros espaços como a Culturgest, em Lisboa). Um exercício importante para compreender a dança que se faz hoje, para fixar uma memória e herança tantas vezes difusas e efémeras, e para pôr em perspectiva o raio de influência desta geração.
O regresso de Yvonne Rainer, agora com a apresentação do seu trabalho coreográfico na primeira pessoa e com os seus bailarinos, é mais uma investida nesse sentido. No seu caso, interessa perceber como é que a sua obra contamina, directa e indirectamente, gerações diferentes da dança portuguesa. E como essa influência se alastra a outras áreas da produção artística contemporânea – o que está em sintonia com o próprio posicionamento interdisciplinar de Rainer, coreógrafa, escritora, activista e cineasta.
Para Diana Policarpo (n.1986), artista e compositora que trabalha entre Inglaterra e Portugal nos territórios das artes visuais, som, instalação, performance e escultura, o rasto deixado por Rainer na performance e na sua conceptualização é quase omnipresente, seja de um modo consciente ou inconsciente. “Vemos a coreografia de Rainer quando vemos movimentos de pedestres, gestos e pautas gráficas, trabalho em improvisação, repetição, onde o dia-a-dia assume importância na performance.” A artista portuguesa destaca ainda a abertura referencial cultivada pela coreógrafa, a lógica de sobreposição de discursos e linguagens que podem não estar conectados entre si. “Fui bastante influenciada por essa ideia de justaposição de coisas que não combinam originalmente.”
O facto de Yvonne Rainer ter estado mais de vinte anos afastada do trabalho coreográfico faz com que a sua influência na dança contemporânea não seja tão óbvia como a dos colegas da Judson Steve Paxton e Trisha Brown, lembra Vera Mantero (n.1966), nome central da Nova Dança Portuguesa, movimento que veio revolucionar a dança nacional no final dos anos 80 e nos anos 90. “Quando eu vim ao mundo como criadora ela já tinha deixado a dança”, nota Mantero, que viu Brown em Lisboa na década de 80 e que colaborou com Paxton. Contudo, a artista e coreógrafa portuguesa sente-se “muito próxima de uma série de coisas” que Rainer “propôs e lançou no mundo” – e que acabaram por ter uma influência indirecta no seu pensamento artístico.
“Ela menciona o facto de ter tido muita sorte em ter encaixado numa geração, o que é algo que eu e as pessoas da minha geração sentimos muito. Isso cria uma energia especial”, diz. “E as misturas disciplinares que ela abraçou e lançou, e nós também. Eu, o Francisco Camacho, o João Fiadeiro, e não só, fomos muito por aí.” Vera sublinha ainda a importância da dança política e próxima da realidade estimulada por Rainer. “No Manifesto do Não que ela escreve, diz não aos clichés, não ao virtuosismo, não ao fingimento, não ao heroísmo… A minha geração já não podia aguentar mais esse tipo de coisas. Ela escreveu isto nos anos 60, nós não lemos, mas toda a nossa conjectura e aquilo que íamos vendo – que indirectamente já tinha recebido essas influências – levou-nos naturalmente para necessidades parecidas.”
No caso de João dos Santos Martins (n.1989), um dos mais valiosos bailarinos e coreógrafos da nova geração da dança portuguesa, a influência de Rainer é bastante directa e significativa. No final do mestrado que tirou na ex.e.r.ce, em França, João participou num workshop orientado pelos coreógrafos Xavier Le Roy e Christophe Wavelet em que se propunha trabalhar a partir de Continuous Project – Altered Daily (1969-70), uma das peças paradigmáticas de Rainer. “Foi muito transformador para mim a sensação de estar a activar um processo que é em si a possibilidade de um trabalho. O facto de os elementos de discussão, de construção, de dúvida, de experimentação serem eles próprios os elementos que constituem a obra em si.” Uma operação que introduz outras problemáticas na “lógica tradicional de fazer dança ou de trabalhar com um grupo”, nota João. “[Esta peça] tenta desfazer as relações de poder entre coreógrafo e bailarinos. São ideologias democráticas de como pensar o labor artístico.”
Para o coreógrafo, essa experiência “foi tão marcante” que em 2015 fez Projecto Continuado, peça que é “uma ressonância” do processo de trabalho de Continuous Project – Altered Daily. “Mais do que o resultado final, interessava os materiais que usávamos, os jogos-acção com almofadas, a justaposição de referências e de modos de operação em cena. O pensar em conjunto e redefinir as fronteiras de autoria.” Também Vera Mantero e Diana Policarpo referem a importância dessa dinâmica laboratorial e desse sentido de comunidade. “Estabelecer procedimentos, tarefas, investigações, ir configurando, em vez de partir para o trabalho com uma ideia concreta de como vai ficar no final. Há uma indeterminação à partida”, enuncia Vera. “A extensão da minha colaboração com outros artistas e músicos, mas também com profissionais de outras áreas e activistas, está bastante próxima das ideias de Rainer em relação às questões de autoridade, poder e entrega”, assume Diana, que diz encontrar “inspiração” no “trabalho profundamente político e feminista” de Yvonne Rainer.
João dos Santos Martins assinala ainda o papel importante que os museus, agora a prestarem cada vez mais atenção à dança, têm tido no “reaparecimento e reinteresse” na obra de Rainer, cujos registos existentes são poucos. Nesse sentido, Vera Mantero considera que esse trabalho de resgate da memória “e de passagem do saber” deveria também ser posto em prática por instituições públicas em Portugal como a Escola Superior de Dança, incluindo o reforço da formação teórica e prática sobre o legado de Yvonne Rainer e de toda a Judson Dance Theater.