Alfredo Matos Ferreira, um arquitecto na sombra da Escola do Porto
Faculdade de Arquitectura do Porto acolhe terceira exposição sobre este arquitecto da geração de Álvaro Siza cujos arquivos foram doados ao Instituto Marques da Silva. Programa de evocação do arquitecto conclui-se em 2018 com o lançamento de dois novos livros, depois de Memória.
Na história da arquitectura em Portugal, será possível identificar, muito abreviadamente, a chamada Escola do Porto numa genealogia que, na segunda metade do século XX, passa por Carlos Ramos, Fernando Távora e Álvaro Siza, prolongando-se depois com Alcino Soutinho, Pedro Ramalho, Eduardo Souto de Moura, Nuno Brandão Costa, Camilo Rebelo… Mas é também possível ver a Escola do Porto, de uma forma mais horizontal, no grupo de meia dúzia de jovens estudantes de arquitectura na Escola de Belas Artes que, na década de 50, se reuniram na Sala 35 de um edifício da Praça da Liberdade, na Baixa portuense: Siza, Alberto Neves, António Menéres, Joaquim Sampaio, Luís Botelho Dias, Vasco Macieira Mendes e, o mais velho deles, Alfredo Matos Ferreira. Todos nomes que ficaram um pouco na sombra de Siza, e da própria história mais oficial da Escola do Porto.
É a obra de Alfredo Matos Ferreira (1928-2015), figura discreta e reservada, que agora vive o momento forte de um programa de divulgação lançado em Dezembro do ano passado na sequência da doação, pela família, dos seus arquivos à Fundação Instituto Marques da Silva (FIMS), a que seguiu, esta segunda-feira, a inauguração, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), da exposição Alfredo Matos Ferreira – Da condição da arquitectura como expressão e sentido do comum (patente até 2 de Fevereiro de 2018).
Com comissariado do professor e investigador Manuel Mendes, a vida e a obra do arquitecto têm vindo a ser revisitadas em seis momentos, entre os espaços da FIMS e agora da FAUP. O primeiro aconteceu há precisamente um ano com a apresentação da exposição Terra d’Alva, que teve “um carácter muito afectivo, muito ligado às origens do arquitecto em Trás-os-Montes”, e também “o propósito de desmontar certos estigmas da historiografia que o classifica como um produto do Inquérito [à Arquitectura Popular de Portugal]”, explica o curador.
Na mesma altura, foi lançado o livro Memória, concretização de um projecto autobiográfico que a morte de Alfredo Matos Ferreira interrompeu em 2015. Com prefácio de Siza e textos de Sérgio Fernandez e Victor Oliveira, esta publicação reúne desenhos, projectos e fichas de trabalho deste “cidadão-arquitecto”, como lhe chama Manuel Mendes.
A FIMS tem ainda patente na Casa-atelier Marques da Silva uma segunda exposição, Construir um paraíso perdido/ Por uma casa livre, que documenta o projecto (não concretizado) que Ferreira e Siza elaboraram entre 1961 e 1967 para uma habitação na Parede. “A ter-se construído, teria constituído uma das primeiras realizações de arquitectos portuenses na região de Lisboa”, nota o comissário.
A encerrar esta exposição, a 18 de Janeiro, será lançado o catálogo respectivo. O terceiro livro irá surgir ao longo de 2018, com Manuel Mendes a explicar o percurso e a obra de Alfredo Matos Ferreira, contemplando já as descobertas entretanto decorrentes da investigação que está a fazer sobre os arquivos.
Pela cidadania da arquitectura
“Alfredo Matos Ferreira era uma pessoa recolhida e reservada, que não gostava de se mostrar, e que tinha inclusivamente algumas desconfianças sobre o seu próprio trabalho”, explicou ao PÚBLICO Manuel Mendes, momentos antes da inauguração da exposição na FAUP. Mas o comissário e investigador não tem dúvidas em inscrever este nome no conjunto de arquitectos que fizeram a Escola do Porto, formada por várias fases e idades históricas. Ferreira e os restantes inquilinos da Sala 35 (como, mais tarde, de um novo escritório na Rua do Duque da Terceira, mais perto da Escola de Belas Artes) “fizeram parte de um grupo que sobretudo travou uma luta bastante importante pelo ofício e pela cidadania da arquitectura”, nota Manuel Mendes.
“Esta gente fez arquitectura de uma forma natural, lutando pelo reconhecimento do seu trabalho e do estatuto respectivo”, acrescenta, realçando a circunstância de todos eles se reunirem à volta de “um arquitecto portentosíssimo, o Siza, de quem todos reconheciam e elogiavam as qualidades”.
Historicamente, todos, à excepção de Alfredo Matos Ferreira, acabariam a trabalhar no escritório de Fernando Távora, figura central, ao lado de Carlos Ramos, na renovação do ensino da Arquitectura nas Belas Artes. Certamente devido ao facto de ser mais velho e de ter outras condições económicas, Ferreira viria a estabelecer-se sozinho, e só mais tarde, já nos anos 70/80, é que se tornaria sócio do atelier de Távora – com quem trabalhou, por exemplo, no Solar do Vinho do Porto, na Régua, na Pousada de Santa Marinha da Costa, em Guimarães, e em projectos em Braga.
Antes disso, Alfredo Matos Ferreira colaborou com outras figuras de referência da arquitectura do Porto, como Mário Abreu, seu primo, e Arménio Losa. Em nome próprio, assinou em 1959 o projecto de uma habitação multifamiliar no Porto (na actual Rua do Arquitecto Marques da Silva, antiga Rua da Friagem), que Manuel Mendes considera ser um dos edifícios mais marcantes da centena de projectos que assinou – e onde Álvaro Siza acabou também por habitar: “Constitui, sem dúvida, um contributo destacado à evolução arquitectónica então em curso, em torno à vigorosa renovação da Escola de Belas Artes”, escreveu o arquitecto.
De Viana a Trás-os-Montes
A exposição agora patente na FAUP começa com a maqueta do projecto de urbanização de Viana do Castelo oriental (1995), que não chegou a ser utilizado pela autarquia, e com quatro retratos que Siza fez em 1959 do jovem arquitecto. Prolonga-se depois por quatro capítulos que abordam a formação, o ensino (Alfredo Matos Ferreira foi professor na ESBAP entre 1976 e 1998), e mostram desenhos e projectos também documentados com fotografias – como as que testemunham a sua intervenção no projecto SAAL, no bairro portuense da Lapa, em 1974-76, e que ele chegou a considerar “a obra mais importante da [sua] vida”.
O “coração” da mostra Alfredo Matos Ferreira – Da condição da arquitectura como expressão e sentido do comum está na sala em meia-lua com plantas e projectos dispostos como se fossem os dedos da mão, a testemunhar a sua colaboração com os vários arquitectos com quem trabalhou, mas também aventuras individuais como a participação no concurso para a Ópera da Bastilha, em Paris, e principalmente a atenção que sempre deu à sua Trás-os-Montes natal e familiar, entre Moncorvo e Barca d’Alva, para onde projectou a sua primeira “Casa do Feitor” e instalações agrícolas e turísticas para quintas da região.
Manuel Mendes sustenta que a presente exposição tem mais de 90 por cento de materiais e informação inéditos relativos a Alfredo Matos Ferreira, testemunhando “uma obra de resistência, de liberdade criativa, e que nunca foi seguidista nem relativamente ao Movimento Moderno nem ao Inquérito [à Arquitectura Popular em Portugal]. Apesar da sua discrição, Alfredo Matos Ferreira sempre quis ser ele próprio, ter a sua voz própria, sem reverência a ninguém”, atesta o curador e investigador.
Notícia corrigida: a exposição na FAUP está patente até ao dia 2, e não 3 de Fevereiro.