Metade dos jovens médicos admite emigrar quando já for especialista
Médicos do Norte, inquiridos num primeiro grande estudo sobre a sua carreira, estão insatisfeitos com longas jornadas de trabalho e com a falta de perspectivas de progressão na carreira. Estudo vai ser alargado ao resto do país.
Sair ou ficar no Serviço Nacional de Saúde (SNS), eis a questão. Uma questão que cada vez mais se coloca aos jovens médicos, que estão genericamente insatisfeitos com os horários prolongados, as deficientes condições de trabalho e a falta de expectativas de progressão na carreira. O descontentamento atinge níveis de tal forma elevados que metade dos médicos a fazer a formação na especialidade admite a possibilidade de emigrar no final do internato, indicam as conclusões de um estudo que esta segunda-feira vai ser divulgado.
Intitulado A carreira médica e os factores determinantes da saída do SNS, este que é o primeiro grande estudo da classe sobre este fenómeno baseou-se em inquéritos a três grupos distintos de profissionais inscritos na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos (OM) - especialistas, jovens ainda fazer a especialidade e médicos que já abandonaram o serviço público.
Independentemente do grupo etário e da condição profissional, os resultados preliminares provam que é transversal a insatisfação com o SNS por diferentes razões, com o excessivo número de horas de trabalho semanal à cabeça. Globalmente, mais de dois terços mostraram-se insatisfeitos ou muito insatisfeitos com o SNS. O único aspecto em que a maior parte dos 2283 médicos dos três grupos que responderam ao questionário online se mostram globalmente satisfeitos é no relacionamento com os colegas.
"O SNS não tem sido competitivo"
Mas é entre os mais novos que as perspectivas em relação ao futuro se apresentam sombrias: cerca de quatro em cada dez afirma que não espera continuar no SNS depois de terminar o internato de especialidade e metade considera a possibilidade de emigrar para exercer medicina no estrangeiro. Apenas um em dez afirma que irá com certeza continuar no SNS e que nenhum valor o fará sair de Portugal.
“Há um desencontro entre o funcionamento do SNS e as necessidades e expectativas dos médicos, que são o seu capital mais valioso”, sintetiza a coordenadora deste trabalho de investigação, Marianela Ferreira, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que realizou o estudo em colaboração com a Secção Regional do Norte da OM. “Não tem havido incentivos para fixar os médicos, o SNS não tem sido competitivo”, lamenta.
Apesar de ser voluntária, esta amostra "é robusta e consistente”, acentua a investigadora, que nota que o universo deste trabalho correspondeu aos 13.801 médicos inscritos na OM/Norte (cerca de 27% do total nacional). O estudo vai ser agora alargado às outras duas regiões do país (Centro e Sul), adianta o bastonário da OM, Miguel Guimarães.
O que é comum à maior parte dos inquiridos é a apreciação negativa de variadas dimensões de funcionamento do SNS, como as longas jornadas de trabalho, as oportunidades de progressão na carreira e a remuneração, ainda que os graus de descontentamento variem consoante os grupos. Como seria de esperar, os médicos mais novos e os que optaram por sair do SNS (essencialmente para a emigração) foram os que se revelaram mais insatisfeitos.
Foi para tentar esclarecer com rigor as razões que justificam a saída do SNS que a investigação (a orientação coube à socióloga Alexandra Lopes, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto) incidiu também sobre os médicos que já abandonaram os hospitais e centros de saúde públicos.
Os resultados indicam que, neste grupo, a maior parte reformou-se (43,4%), um terço foi trabalhar exclusivamente para o sector privado e uma minoria (7%) emigrou. Por que saíram então estes profissionais do SNS? Genericamente porque estavam insatisfeitos com a remuneração oferecida, mas também com a falta de perspectivas de progressão na carreira e de participação na tomada de decisão. Mas a falta de tempo disponível para a família, amigos e actividades sociais de lazer foi a razão mais invocada.
Como seria de esperar, os médicos que emigraram foram os que evidenciaram níveis mais elevados de insatisfação em quase todas as dimensões, mas é particularmente notório o seu desencanto com as oportunidades de progressão na carreira.
Também o número de horas de trabalho por semana é grande fonte de descontentamento para a maioria - que diz que ultrapassa o que está estipulado, situação muitas vezes agravada pelo não cumprimento dos períodos de descanso compensatório.
"Temos grupos etários em contextos completamente distintos, mas é transversal a insatisfação face à estagnação da carreira médica", afirma Marianela Ferreira.
Metade ganha menos de 3 mil euros brutos
Os médicos ganham muito dinheiro? A crer nos resultados deste estudo, as remunerações (e aqui são considerados apenas os salários dos especialistas) são em média bem inferiores, por exemplo, às dos magistrados e dos professores catedráticos. Quase metade declarou ganhar menos de três mil euros por mês brutos e apenas 7,9% disse auferir mais de cinco mil. Não foram, todavia, levados em conta aqui os rendimentos provenientes das horas extraordinárias que muitos médicos fazem no serviço público.
Seja como for e apesar de ser causa relevante de insatisfação, a remuneração não é elencada como a dimensão que mais conta para o descontentamento, sublinha Marianela Ferreira. “Não é sobretudo por razões económicas que os médicos ponderam deixar o SNS”, frisa.
Entre os especialistas, os médicos em cargos de chefia são uma minoria e para a generalidade dos clínicos a carreira está estagnada. Confessando-se “uma admiradora, uma fã deste grupo profissional de élite, que tem um poder enorme, mas trabalha muito por vezes até à exaustão”, a investigadora lamenta que a carreira médica seja "desvalorizada” e avisa que, se este cenário não se alterar, “a continuidade do SNS pode estar em causa”. “Não podemos desperdiçar estes recursos altamente qualificados”, sustenta.
Marianela Ferreira, autora do livro Sair Bem - em que analisou os trajectos profissionais de médicos e enfermeiros -, recorda que, quando começou esse trabalho, quase 99% dos médicos inquiridos recusava a hipótese de reforma antecipada.
Um cenário bem diferente do actual, por razões que não se prendem com o facto de os médicos não apreciarem o SNS, mas com as mudança das regras da aposentação e a degradação das condições de trabalho. “Eles enfrentam um dilema muito grande entre a vontade de continuarem a ser médicos e a vontade de sair do SNS, face à instabilidade e às más condições”.