Os vendilhões de apocalipses
Convém não confundir a crise com a doença crónica ou com os problemas estruturais.
Do alto desta coluna vos profetizo: estamos a aproximar-nos de um novo Grande Terramoto de Lisboa. Como demonstração, uma evidência: estamos a aproximar-nos de um novo Grande Terramoto de Lisboa desde que ocorreu o último, em 1755.
É impossível falhar nesta profecia, mais cedo ou mais tarde. Mas, precisamente: estamos a falar de mais tarde ou mais cedo? Estou a profetizar para daqui a cinco anos ou para daqui a quinhentos anos? Dizer que vem aí um novo Grande Terramoto chama a atenção mas não dá informação.
Nada compensa tanto no debate público como mercadejar em profecias pessimistas. O vendilhão de catástrofes na praça pública tem sempre garantida a atenção geral, mas quando a profecia não ocorre está toda a gente demasiado aliviada para reparar no erro. E quando finalmente ocorre outra crise qualquer, como fatalmente sucederá, o profetizador de desgraças poderá então, de qualquer forma, vir reclamar os seus créditos pela clarividência revelada.
Vem isto a propósito do atual momento económico e do aproveitamento político que ele suscita.
Vivemos nos últimos dez anos um colapso financeiro global e uma longa depressão económica. Na Europa, acrescentámos a isto uma crise existencial na UE e na sua moeda, o euro. É natural que estejamos perante estas memórias como o proverbial gato escaldado que da água fria tem medo. É dessa vulnerabilidade que se aproveitam os vendilhões de apocalipses que nos prometem o regresso da crise nacional, europeia ou global. Rui Rio prolonga o discurso do diabo alertando para uma futura subida de juros. Francisco Louçã faz títulos de jornal profetizando que “nos vamos aproximando de um novo colapso financeiro”. E tudo isto é certo, tão certo como estarmos a aproximar-nos de um novo Grande Terramoto como o de 1755.
Convém, porém, sermos rigorosos nos termos e nos prazos. Se entendermos “crise” a partir do seu sentido original — “crise” é uma palavra grega de origem médica, que significa o “ponto de viragem” em que o doente melhora ou piora consideravelmente — é notório que a crise do euro começou a encerrar-se a partir de 2015, quando ficou claro que nenhum país contemplava seriamente a hipótese de sair da moeda única porque se tornou evidente que as dificuldades da saída são maiores do que as dificuldades da reforma do euro. Isso não significa que os problemas crónicos ou estruturais do euro estejam resolvidos, bem pelo contrário. Mas convém não confundir a crise com a doença crónica ou com os problemas estruturais. Cada um destes momentos é diferente e exige terapêuticas diferentes.
Quanto aos prazos, vale a pena citar o célebre excerto de John Maynard Keynes. “O longo prazo é um guia enganador no que diz respeito aos nossos assuntos correntes. A longo prazo estamos todos mortos. Os economistas atribuem a si mesmos uma missão fácil demais e fútil demais se numa fase de tempestade não souberem dizer-nos mais do que 'com o passar da tormenta virá a bonança'.”
O mesmo poderá valer para aqueles que agora nos dizem: após esta bonança regressará a tormenta. A utilidade real do discurso político e económico está em dizer-nos o que fazer durante a tormenta e o que fazer durante a bonança, e não em levar-nos a agir durante a bonança como se estivéssemos na tormenta e vice-versa.
O problema é que o interesse público e o interesse político dos nossos vendilhões de apocalipses não são coincidentes. Para Rui Rio importa continuar a vender o medo de que governando a esquerda nos aproximaremos de uma nova bancarrota. Para Francisco Louçã interessa vender o medo de que com o colapso a aproximar-se é impossível reformar o projeto europeu a tempo. Nenhum dos dois arrisca muito ao fazer este tipo de profecia. Como tantas vezes vimos, pouco preço se paga por ter errado profecias no passado.