As encruzilhadas de Jerusalém estão num palco de Almada
Num momento especialmente adequado, o clássico Nathan, o Sábio, “manifesto pela tolerância religiosa”, estreia-se em Almada. Um poema dramático dirigido por Rodrigo Francisco e localizado na cidade de todas as disputas.
Donald Trump anunciou por estes dias o reconhecimento institucional por parte dos Estados Unidos da América de Jerusalém como capital de Israel. E foi como se acendesse um fósforo junto do barril de pólvora que é a instável convivência entre povos no Médio Oriente. Dificilmente o director da Companhia de Teatro de Almada, Rodrigo Francisco, poderia ter acertado numa data mais necessária para a estreia de Nathan, o Sábio, claro e contundente texto que Gotthold Ephraim Lessing publicou em 1779 e que localiza em Jerusalém, em torno da relação entre as três religiões monoteístas no tempo do sultão Saladino (século XII). Francisco chama-lhe “um manifesto pela tolerância religiosa”.
Nathan, o Sábio é um projecto antigo da companhia e esteve prevista a sua estreia sob a direcção do encenador francês Bernard Sobel, a partir da presente tradução de Yvette Centeno. A sua apresentação inclui-se numa missão que Rodrigo Francisco acredita caber “às companhias de teatro e aos teatros nacionais de divulgar os principais textos da dramaturgia mundial no nosso país”. No caso de Nathan, o Sábio, trata-se mesmo de uma estreia nacional – de 9 a 17 de Dezembro no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, retomando de 12 a 28 de Janeiro –, precipitada, em parte, por uma polémica estalada na última edição do Festival de Almada, quando um protesto organizado pelo Comité de Solidariedade com a Palestina apelou ao cancelamento do espectáculo da companhia de dança israelita Kamea.
“Acho que se as pessoas pensassem sobre estes temas tendo em conta alguns dos princípios estabelecidos nesta peça”, acredita o encenador e director do Festival de Almada, “nomeadamente de que para além das religiões todos somos seres humanos, talvez o fizessem de outra forma”. De facto, aquilo que Rodrigo Francisco – que assumiu a direcção depois de gorada a hipótese de Sobel – entende que é proposto por Lessing, numa prática que estende a uma vocação natural no teatro, “é tentar perceber aqueles que pensam de maneira diferente da nossa”. “Temos de nos colocar problemas e debatê-los em seguida – mais do que tomar posições, muitas vezes apaixonadas e precipitadas. Creio que a vantagem dos clássicos é afastarem-nos do nosso tempo para que possamos pensar melhor sobre o presente.”
A parábola dos anéis
O enredo de Nathan, o Sábio resume-se de uma penada: Nathan é um judeu que vive com a sua filha adoptiva, Recha, numa cidade tomada pelo muçulmano Saladino. Numa das suas ausências de Jerusalém a fim de negociar especiarias e outros bens, a rapariga é salva de um incêndio por um jovem cruzado que a pede, depois, em casamento. E a partir daí, e do regresso de Nathan à cidade, instalam-se as dúvidas sobre a convivência entre os diferentes costumes e as três religiões, cujos laços de familiaridade Lessing tratará de demonstrar.
Rodrigo Francisco desconfia que Lessing terá escrito a peça para poder explanar e desenvolver a parábola dos anéis a que Nathan recorre quando questionado por Saladino sobre qual das religiões será a mais perfeita. A parábola da tradição árabe, e citada por Boccaccio em Decameron, incide sobre a origem comum de três anéis que um pai delega nos filhos, cada um ignorando qual será o anel verdadeiro, transmitido de geração em geração dentro da família. “O que diz o final da parábola é que o importante não é saber qual o verdadeiro anel e a verdadeira religião, mas sim que os três saibam ouvir qual foi a palavra fundamental de Deus: amai-vos uns aos outros. E se estão mais preocupados em discutir entre si em vez de amar e serem amados, então talvez a verdadeira religião seja o amor”, argumenta o encenador.
Contando com um elenco em que encontramos Luís Vicente, Maria Rueff, Guilherme Filipe ou Tânia Guerreiro, Nathan, o Sábio “é um espectáculo que não está muito na moda”, segundo o seu director, por insistir em preocupar-se com cenografias e figurinos. Graças a um dispositivo criado com o artista plástico Pedro Calapez, e que Rodrigo Francisco admite ser inspirado no trabalho do norte-americano Bob Wilson, são as pinturas que fornecem o cenário de uma peça em que não houve a tentação de mostrar personagens munidas de telemóveis ou outros artefactos da modernidade, apontando para um despojamento essencial para que “as palavras vivessem e não se tropeçasse na mobília”. Por respeito àquilo que o director da companhia entende ser “um poema dramático”.
Para que o debate tenha lugar, desde logo, no interior do próprio teatro, a Companhia de Teatro de Almada promove uma série de conversas todos os fins-de-semana, a começar este domingo, com a gravação ao vivo do programa radiofónico de Carlos Quevedo E Deus criou o mundo, com representantes das três religiões monoteístas. Para ver, ouvir, reflectir e levar para casa.