O dia em que 150 quilos de vaca chegaram ao Prado

António Galapito veio de Londres, onde durante vários anos trabalhou com Nuno Mendes, para abrir em Lisboa o Prado. Numa antiga fábrica de conservas com ruínas romanas, cozinha aquilo que fizer sentido com o que houver em cada dia.

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António Galapito na sala do Prado Ricardo Lopes
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O Prado fica numa antiga fábrica de conservas Ricardo Lopes
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A carne no frigorífico do Prado Ricardo Lopes

Sentado ao nosso lado durante o Congresso dos Cozinheiros, António Galapito tira do bolso o telemóvel e mostra, orgulhoso, os enormes pedaços de vaca barrosã que recebeu no seu restaurante, o Prado, que acaba de abrir em Lisboa, junto à Sé.

“São 150 quilos, não cabia em lado nenhum”, conta, divertido. Acreditamos que não tenha sido fácil arrumar tanta carne. Até porque tínhamos passado pelo Prado uns dias antes e na câmara frigorífica já estava um porco enorme. Mas era precisamente este o sonho do António: trabalhar animais inteiros, aproveitando as várias partes de diferentes formas.

A ideia de ter um restaurante que serve todos os dias os mesmos pratos exactamente da mesma maneira aborrece-o. A inquietação criativa, que nele transborda num gesticular constante enquanto fala, não se compadece com essa forma de trabalhar. “Perguntam-me o que vai ser a carta, mas ainda não consigo dizer. Preciso de ver que carne posso comprar naquela semana, que peixe vai haver…”, explica.

Era disso que gostava quando trabalhava com Nuno Mendes na Taberna do Mercado, em Londres, e antes disso noutros projectos de Nuno, do Bacchus ao Viajante e ao Corner’s Room: experimentar produtos diferentes, ver o que dá. Foi durante as várias experiências de trabalho que teve em Londres que percebeu que o fine dining não era para ele. “Queria fazer uma coisa intermédia, que não fosse fine dining mas que desse grande importância ao detalhe.”

Mas, confessa, nunca tinha pensado em ter um restaurante próprio — até porque tem apenas 26 anos. “Pensava que ia trabalhar com o Nuno para sempre”, diz, a rir. E achava também que pelo menos tão cedo não iria voltar para Portugal — uma breve passagem pelo país já depois de estar em Londres não o entusiasmara. Até que chegou a proposta dos proprietários do aparthotel The Lisboans, amigos da namorada, Inês Pereira (que será a chefe de sala do Prado), para que ele viesse abrir o restaurante.

“Depois, em Dezembro do ano passado, viemos ver o espaço que na altura só tinha o tecto e as janelas, mas foi suficiente para nós”, recorda. Começou imediatamente a pensar que havia espaço para uma câmara frigorífica onde poderia pôr os animais inteiros (uma ideia de que gostava desde que trabalhou no Lyle’s de Londres, com James Lowe), que poderia trabalhar com o fogo, outra coisa de que gosta muito, onde poderia aplicar os princípios éticos e de sustentabilidade que considera importantes, e, por fim, onde poderia servir os vinhos naturais que o fascinam.

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Em Agosto deste ano regressou definitivamente a Portugal com Inês e, enquanto decorriam as obras, começaram o trabalho de identificação dos produtores com os quais queriam trabalhar e de perceber como seria a melhor forma de fazer os produtos chegar ao restaurante. Parece uma coisa básica, mas não é tanto assim, explica.

Sustentabilidade e comércio justo

Em Londres, nos primeiros tempos da Taberna do Mercado, tiveram muita dificuldade em conseguir produtos portugueses, mas a forma de trabalhar na capital britânica é muito diferente da de Portugal. “Lá eu fazia os pedidos à meia-noite e às nove da manhã tinha as coisas a serem entregues. Aqui temos que esperar pelo dia em que o fornecedor vem a Lisboa e traz o produto e organizar tudo em função disso.”

Mas não desanima, tudo há-de chegar, ao ritmo que tiver que ser. “Vamos ter uma carta que muda imenso, muito sazonal, com o que estiver bom”, resume. “Vamos servir os cortes que houver no dia, os peixes que estiverem mais gordos, da tainha à dourada de anzol e às línguas de bacalhau, muita comida de fogo, muito grelhado, muito fumado, muito cru, muitos pratos vegetarianos, alguns vegan e sobremesas muito simples.”

Nas carnes, a ideia é trabalhar com raças autóctones portuguesas e com aquelas que estejam em risco de desaparecer. “Claro que o porco preto não está em risco, mas vamos ter porque gosto muito”, diz, com um sorriso de miúdo. “Não quero é ter presas e secretos a toda a hora, há quando houver, e depois trabalhamos outros cortes. Nos legumes, queremos biológicos, a nossa filosofia é da sustentabilidade, mas não podemos dizer que somos 100% biológicos, porque no açúcar ou no óleo, nos produtos mais básicos, é muito complicado.”

Conseguiram, apesar disso, que o café fosse de comércio justo. “Fomos ver a três ou quatro sítios diferentes e fazíamos sempre essa pergunta. Optámos pelo que nos disse que sim. Era importante para nós. No século XXI são coisas importantes.”

Cortar no desperdício

Nos dias antes da abertura, António não escondia a impaciência por poder finalmente começar a cozinhar, mas ainda faltavam detalhes das obras que iam obrigando a adiar. Mas a equipa, tudo pessoas com que António tinha trabalhado em Londres, já estava ocupada na cozinha. “Encomendámos vegetais e estamos a criar bases, óleos de muitas ervas, umas bases de sorbet, uns pickles, uns fermentados, uns pós disto e daquilo, vinagres com vários sabores.” Não esperem é vê-lo a escrever receitas. “Há coisas que só vão dar para meia dúzia de pratos…”.

Num dos jantares-teste que fez para convidados apresentou, por exemplo, uma tosta de toucinho fumado e maçã florina, um prato de berbigão, espinafres, coentros e pão frito, um delicioso tártaro de barrosã com couve galega grelhada, outro prato de couve-coração, soro e nozes, um peixe espada preto com chagas e rabanetes, ou um peixe-galo com ovas, agrião e alfaces. Combinações surpreendentes, sem receio seja da gordura, seja da acidez, seja do amargo das ervas. Um conforto que, ao mesmo tempo, nos tira da nossa zona de conforto.

Quanto ao pão, fez uma parceria com Diogo Amorim, da padaria Gleba. “Não alterámos nada a receita deles, continua a ser 100% trigo barbela, a única diferença é que o nosso tem menos 300 gramas e mais meia dúzia de horas de fermentação. Não fazia sentido estar a fazer o meu pão quando o Diogo o faz muito melhor.” Serve-o acompanhado por uma manteiga fresca de cabra e por uma viciante gordura de porco preto batida, com alho e louro.

Ao fundo, na zona da garrafeira, espreitam as ruínas romanas que ficaram a descoberto depois de os proprietários do The Lisboans terem começado a fazer escavações neste espaço de uma antiga fábrica de conservas. “No início, isto só tinha a fachada e estava tudo coberto de vegetação”, conta António. Daí surgiu o nome Prado.

Do outro lado do hostel, na rua de cima, vai nascer, pouco tempo depois da abertura do restaurante, a Mercearia do Prado. “Aí vamos vender coisas a granel, marmeladas, uns fiambres de porco preto, porque faz todo o sentido. Se os legumes já não estiverem bem fazemos compotas, pickles, é tudo um ciclo, em que queremos cortar no desperdício ao máximo.”

O que pretende é que o Prado seja um sítio despretensioso, “em que não tens que pensar para vir aqui beber um copo ou comer um prato rápido e pagar 15 euros por tudo”. E que, mais do que um restaurante, seja um espaço onde as pessoas se encontrem e se sintam bem. “Venham só beber um vinho, bebam uma garrafa, ou duas ou três”, convida, com uma gargalhada.

Vinhos, só naturais

Maria Rodriguez é a sommelier do Prado e uma entusiasta tão grande quanto António Galapito dos vinhos naturais. Por isso, são só estes que é possível beber no Prado. Nas últimas semanas antes da abertura do restaurante, foram visitar vários produtores de vinhos naturais e voltaram muito satisfeitos por perceber que não só o número de pessoas a fazer os vinhos desta forma — com o mínimo de intervenção e o mínimo de sulfitos — está a crescer, como cada produtor tem várias referências, o que permite uma carta suficientemente variada.

Há também vinhos estrangeiros para quem quiser ficar a conhecer mais. “Temos a copo e a garrafa e vários perfis diferentes, com maior acidez, com mais corpo, mais clássicos, mais funky e rock n’roll”, descreve Maria, que quando veio de Londres esteve a trabalhar na Garrafeira Nacional para se familiarizar mais com o que se está a fazer em Portugal, depois de no passado já ter trabalhado com Leonardo Pereira no Areias do Seixo. 

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