Eduardo Prado Coelho para sempre

Dez anos após a sua morte, o ensaísta foi recordado pelos amigos na Fundação Calouste Gulbenkian. António Mega Ferreira recordou a sua “gigantesca alegria de viver”. Eduardo Lourenço disse que ele foi “a pessoa mais inteligente” que conheceu.

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JOSÉ CARLOS COELHO/ARQUIVO

Ao longo de quatro décadas, desde os anos 60 do século passado até à sua morte prematura em 2007, com 63 anos, o professor, ensaísta, escritor, crítico literário e cronista Eduardo Prado Coelho foi uma presença constante, (verdadeiramente) incontornável e criativa no debate cultural, político e de ideias que houve no espaço público português. O autor de O Reino Flutuante e de A Mecânica dos Fluidos, dois dos seus ensaios paradigmáticos, foi esta quinta-feira, homenageado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Eduardo, aqui e agora, intitulou-se a sessão havida no Auditório 3 (praticamente cheio), anunciada como “uma conversa entre amigos de Eduardo Prado Coelho”. A “conversa” foi, na verdade, escassa, sem dúvida por falta de tempo, limitando-se o moderador, Guilherme d’Oliveira Martins, a conceder, sucessivamente, a palavra a cada um dos intervenientes: Teresa Villaverde, António Mega Ferreira, João Pinharanda e Rui Vieira Nery.

Afirmando que o homenageado “está bem vivo connosco, por tudo aquilo que fez”, e que não conheceu “mais ninguém que estivesse tão atento ao debater das ideias e ao surgimento de tudo aquilo que fosse novo”, Guilherme d’Oliveira Martins concluiu a sua brevíssima introdução confessando a “emoção” de ver Eduardo Lourenço, “um companheiro tão presente nas peregrinações do Eduardo”, na “primeiríssima fila” do auditório. Apesar da sua alegada falta de gosto e de “jeito” para falar, Teresa Villaverde falou, entretanto, da sua dificuldade de lidar com a passagem do tempo, em particular quando se trata de pessoas que lhe são, ou foram, próximas – “Foi até uma surpresa verificar terem passado já dez anos” – e, havendo gracejado sobre essa estranha expressão corrente, “amigo pessoal”, recordou a sua amizade com Eduardo Prado Coelho: “As pessoas que tiveram a sorte de ser suas amigas sabem que ele era uma pessoa divertidíssima”, alguém que não falava só “de coisas muito sérias”. E, confirmando a quase proverbial atenção que o ensaísta dedicou sempre aos criadores emergentes, a realizadora reconheceu: “Há muitas coisas sobre o meu trabalho que eu percebi melhor lendo o que o Eduardo escrevia. Ele tinha uma coisa muito bonita, escrevia sobre as coisas de que gostava, queria partilhá-las com os outros. Daí a falta que nos faz hoje.”

Sem “fio condutor”, improvisando também, mas solidamente, António Mega Ferreira disse que a “última grande imagem” de Eduardo Prado Coelho acabava de ser-lhe sugerida pelo encontro com Nuno Júdice à entrada para o Auditório 3 da Gulbenkian, pois recordara-se, nesse momento, de uma festa em casa do poeta, com a qual haviam surpreendido o ensaísta no seu 60.º aniversário: “Qual é a imagem? Estávamos já todos reunidos lá em casa [de Nuno Júdice] e, quando a porta se abre, o Eduardo entra com uma expressão extraordinária, que é a de alguém que, por um lado, se sente ligeiramente incomodado com aquela homenagem e, por outro lado, com aquele ligeiro sorriso que ele tinha e que mostrava a enorme felicidade de encontrar uma série de amigos. Esta imagem de contenção marca muito a minha percepção da sua figura de intelectual.” Porquê? Mega Ferreira explicou: “Eduardo Prado Coelho foi, como ele próprio dizia, um tudólogo, interessava-se por tudo, e por tudo o que era novo; mas, ao contrário do que pensam alguns ignorantes, ele não se interessava pelo novo pelo novo, não era o último figurino; interessava-se pela carga potencial que o novo transportava em si em relação a um futuro que ele próprio não sabia se iria viver. Esta é uma vocação profundíssima de um intelectual completamente ancorado no seu tempo: o Eduardo era um homem completamente ancorado no tempo presente e tinha a ponta de um pé, que é o máximo que alguém pode aspirar, no futuro. Para ele, o novo era a ocasião de exercer uma qualidade que ele tinha e que era a abertura ao mundo. Daí o apoio que dava aos novos criadores e, sobretudo, aos novos escritores. Dir-me-ão: mas ele enganou-se! É evidente que, nalguns casos, o juízo muito positivo que fez sobre os primeiros livros de alguns escritores não teve continuidade, mas isso foi por culpa dos autores. O Eduardo não tem culpa nenhuma. Os autores é que não estiveram à altura da expectativa!” E sublinhando que Prado Coelho “estava presente em toda a parte, não era um rato de biblioteca encerrado na sua torre, era mundano, sim, porque era gregário e respirava cultura”, o escritor Mega Ferreira talvez tenha até surpreendido o auditório com uma divagação astrológica: “O Eduardo tinha uma relação com a vida que era contida, externamente – e nisso era pouco carneiro, de signo obviamente –, mas extremamente exaltante, tinha a capacidade de se deslumbrar por dentro e de partilhar, mas de partilhar sotto voce. Nunca foi alguém que gritasse do alto de uma tribuna qualquer verdade efémera, como todas as verdades são.” E concluiu: “Havia no Eduardo uma gigantesca alegria de viver. E é por isso que ele nos faz falta. Há tanto tempo. Há tantos dias. Desde sempre. E para sempre.”

Impondo-se a si próprio “não falar do Eduardo, mas de Eduardo Prado Coelho”, coube a Ruy Vieira Nery recordar a “intervenção cívica” do intelectual nas políticas culturais públicas após o 25 de Abril de 1974. Reconhecendo não ser fácil a tarefa, o historiador e musicólogo defendeu que só uma visão de conjunto permitirá um juízo adequado, pois no percurso de Prado Coelho “há princípios de fundo, que são estáveis, e depois há uma capacidade, que era única, de olhar para a mudança e de reflectir em função dessa mudança”. Abordando a actividade de Prado Coelho enquanto gestor cultural, “que foi episódica, mas importante nesses episódios” e a sua “intervenção permanente como observador activo na esfera política”, Vieira Nery afirmou que aquele sempre reflectiu sobre a cultura, “não como valor autónomo, mas na sua relação com a vida colectiva”. Daí a reivindicação de uma responsabilidade do Estado no “mercado” da cultura, para salvaguarda do “direito à fruição cultural” constitucionalmente consagrado, que passaria pela defesa do património mas, também, pelo “apoio à criação permanente como fonte de novo património”. Neste sentido, o ensaísta “foi um arquitecto, embora discreto, da ossatura das políticas culturais democráticas”. E enquanto “colunista de combate”, a reflexão sobre as políticas culturais esteve sempre presente, ainda que implicitamente, nos seus textos. Vieira Nery sublinhou ainda a maneira “sofisticada” como Prado Coelho defendeu o papel de Portugal enquanto “parceiro cultural à escala global”, dizendo que, nesse sentido, “ninguém, desde Eduardo Lourenço, esteve tão atento ao que pode ser a identidade portuguesa como presença activa no debate internacional”.

E foi precisamente o autor de O Labirinto da Saudade quem encerrou a “conversa”, de maneira certamente não prevista pelos vários poetas, artistas, intelectuais, escritores e editores presentes, pois Guilherme d’Oliveira Martins, não desperdiçando o facto de o filósofo estar sentado na primeira fila do auditório, passou-lhe a palavra. Não o fazer, lembrou o moderador, “seria um bocadinho estranho”. Eduardo Lourenço não se fez rogado e afirmou isto: “Ele [Eduardo Prado Coelho] foi a pessoa mais brilhante e mais inteligente que eu conheci em toda a minha vida.”

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