Rebecca Martin, uma cantora muito lá de casa

Orquestra de Jazz Matosinhos convidou a compositora e intérprete norte-americana para dois concertos, no Porto e em Barcelona. Uma experiência que permitiu abrir novas portas para a big band, diz Pedro Guedes, o seu director musical.

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Matilde Ramos/OJM
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É verdade que veio de Kingston, uma cidade cerca de 150 quilómetros a norte de Nova Iorque, mas foi em casa que Rebecca Martin pareceu continuar a estar, a receber os amigos, nos dois concertos com que se estreou, este fim-de-semana, na Península Ibérica: quinta-feira na Casa da Música, no Porto; no dia seguinte no Festival de Jazz de Barcelona. E também na masterclass que, pelo meio, realizou no Conservatório do Liceu na capital catalã.

E essa proximidade que a cantora norte-americana procurava com o público foi logo notada, numa Sala Suggia com a lotação preenchida quase em metade, quando no final da segunda canção pediu aos espectadores que se sentassem mais perto do palco.

Rebecca Martin foi este ano a convidada da Orquestra de Jazz Matosinhos (OJM) para o seu concerto habitual na Casa da Música e para a participação no Voll-Damm Festival Internacional de Jazz de Barcelona, que vai já na 49.ª edição, e onde é desde há quatro anos a orquestra residente.

“Convidámo-la pela sua voz profunda e interior, dotada de uma elasticidade incrível, e também porque nos interessa sempre enfrentar desafios que musicalmente nos abram outras portas e nos permitam crescer”, disse ao PÚBLICO Pedro Guedes, director musical da OJM.

Rebecca Martin trouxe, de facto, nesta sua estreia portuguesa em concerto – o ano passado tinha estado em Lisboa, mas como monitora numa escola de jazz de Verão – uma música de carácter mais intimista do que aquela com que a big band de Matosinhos costuma trabalhar.

O reportório apresentado nas duas cidades foi composto por uma dezena de canções, metade das quais compostas pela própria cantora, dois standards do cancioneiro popular norte-americano (como o célebre Kentucky babe), para os quais Pedro Guedes e Carlos Azevedo (e também o argentino Guillermo Klein) fizeram novos arranjos.

“Foi uma experiência muito intensa e rica”, disse a cantora ao PÚBLICO no final do concerto de Barcelona, lembrando que nunca tinha actuado com uma big band, e também que tinha chegado a Porto, no início da semana, “sem ter ouvido qualquer nota da música que iria cantar”. “Mas estava totalmente aberta e disponível, porque, mesmo sem nunca ter ouvido a OJM ao vivo, sabia que é uma banda muito conhecida e muito apreciada entre os músicos com quem trabalho”.

O convite da OJM a Rebecca Martin vem na sequência da vinda ao Porto (e a Barcelona) de outros músicos norte-americanos, como Mark Turner ou Kurt Rosenwinkel – e Pedro Guedes anunciou já que em 2018 será a vez de Peter Evans.

Uma banda cosmopolita

“A OJM é uma banda cosmopolita, que olha mais para lá do mar, para os Estados Unidos”, diz Joan Cararach, desde 2002 director artístico do Festival de Barcelona, realçando simultaneamente tratar-se de “uma big band de dimensão europeia, com projectos sempre novos e muito ambiciosos”.

“A orquestra tem uma ambição e um cuidado com a música contemporânea que raramente se vê em big bands fora do caso americano”, acrescenta Cararach, confirmando não existir actualmente em Espanha nenhuma formação com estas características. “Por aqui é muito difícil a vida do jazz, não há grande interesse”, nota o director, lamentando também que Espanha olhe para a música que se faz do outro lado da fronteira “por cima do ombro, quando Portugal é um país que tem uma orquestra modelo como a de Matosinhos”.

O concerto em Barcelona praticamente repetiu a sequência da actuação na Casa da Música. Numa sala bem mais pequena, também ocupada em cerca de metade dos seus 400 lugares, a OJM mostrou-se já bem mais entrosada com a música e a voz de Rebecca Martin. “Hoje [sexta-feira], senti-me mais confortável, mais livre, pois já conhecia melhor os arranjos, e tratava-se só de cantar”, disse a cantora no final da actuação em Barcelona, realçando, no entanto, a intensidade da experiência no Porto: “A primeira noite foi mais desafiadora, e foi bom chegar ao fim e sentir que tínhamos conseguido”. “Adorei os dois concertos, por diferentes razões”, concluiu, revelando estar disponível para regressar à Península. “Se o Pedro [Guedes] e o Carlos [Azevedo] pensarem em fazer um disco, virei logo a correr”.

Entre os 17 músicos que desta vez integraram a OJM percebia-se também que o desafio tinha sido ganho, mesmo se havia opiniões diferentes sobre onde tinha corrido melhor. Gileno Santana (trompete e fliscorne), o luso-brasileiro que, com 29 anos, é o delfim da banda, admite que no segundo concerto estavam “mais seguros”. “Mas, não sei se foi por ser no Porto, gostei mais da reacção do público lá”. Já Andreia Santos (trombone), a única mulher nesta formação, sentiu que a banda “estava mais relaxada” em Barcelona, “e isso notou-se na própria música, as coisas fluíam de outra forma”.

André Fernandes, guitarrista convidado – como tem acontecido por diversas vezes desde há dez anos – para estes concertos da OJM, disse ter-se divertido nos dois palcos. E, como os outros músicos ouvidos pelo PÚBLICO, manifestou a satisfação pela experiência de trabalho com Rebecca. “Foi óptimo. É muito fácil trabalhar com ela; fala pouco, mas diz as coisas certas na altura certa, e sabe fazer com que o grupo se molde à sua música, que é muito frágil e sensível”.

Andreia Santos também destacou o novo desafio que a cantora norte-americana trouxe à orquestra. “Nunca tínhamos tocado com uma cantora deste género”, diz a trombonista, referindo a diferença relativamente à recente parceria da OJM com Manuela Azevedo (Clã). E dá como exemplo Cycle 5, uma composição original de Kurt Rosenwinkel a que Rebecca Martin acrescentou a letra (e para a qual Carlos Azevedo fez agora os arranjos), tendo ambas as versões sido interpretadas pela formação de Matosinhos. “Ver o mesmo tema tratado em interpretações completamente diferentes foi muito interessante”, nota Andreia Santos.

Gileno Santana acha igualmente que com Rebecca Martin a orquestra foi levada a “trabalhar de maneira diferente”. “Isso notou-se até na nossa sonoridade, um som mais ‘melo’ e não tão brilhante como o costume; foi uma experiência muito boa”, resume o trompetista (que paralelamente ao seu trabalho com a OJM está a desenvolver o projecto Ciranda com a jovem acordeonista Inês Vaz, e cujo primeiro single, com a participação de Vitorino, deverá sair no início de 2018).

Regresso a Barcelona

Realçando a importância que a presença no Festival de Jazz de Barcelona tem para a ambição ibérica da OJM, Pedro Guedes diz que a continuidade dessa relação, que tem sido patrocinada pelo Consulado de Portugal na capital catalã, está sobre a mesa.

Joan Cararach confirma esse interesse por parte do festival. Mas não ilude a preocupação com a situação política que a Catalunha vive actualmente. “Vivemos um momento complicado; vamos ver como é que as coisas vão evoluir”, diz, referindo-se às eleições marcadas para 21 de Dezembro. O próprio festival deste ano tem sofrido já com a agitação política e social na região. “Há manifestações, cortes de estradas, e isso afecta o dia-a-dia das pessoas, que muitas vezes não saem à rua porque não sabem se podem regressar a casa tranquilamente ou não”, acrescenta o director do festival, que tem registado um abaixamento na procura dos concertos.

De resto, os jornais El País e El Periódico noticiavam na sexta-feira uma perda de 4,7% dos visitantes em Barcelona em Outubro.

Mas o festival – que já recebeu nomes tão diversos como Diana Krall, Tomatito, Fred Hirsch ou Maceo Parker – continua. E, até ao final do ano, vai receber o português Rui Massena, com um quarteto de cordas do Conservatório do Liceu (5 de Dezembro), a diva norte-americana Barbara Hendricks com o seu trio (15 de Dezembro, no icónico Palácio da Música Catalã), ou os Harlem Gospel Choir a cantar Beyoncé (19 de Dezembro), depois da sua passagem por vários palcos portugueses.

O PÚBLICO viajou a convite da Orquestra de Jazz Matosinhos

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