Uma ópera com perguntas difíceis

Estreia-se este sábado no Teatro de São Carlos, em Lisboa, uma nova produção da ópera de câmara The Rape of Lucretia, de Benjamin Britten, numa encenação de Luis Miguel Cintra. Uma obra que lança a pergunta: poderemos aprender com os erros da humanidade? Ou será mais cómodo ser irresponsável?

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Uma nova produção da ópera de câmara The Rape of Lucretia, de Benjamin Britten, numa encenação de Luis Miguel Cintra Miguel Manso
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The Rape of Lucretia foi estreada em 1946, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, no festival de Glyndebourne. O que Benjamin Britten propunha não era uma ópera confortável e consensual para os tempos de paz, mas uma séria reflexão sobre o mundo, a partir da velha história de Lucrécia. O libreto foi escrito pelo poeta pacifista Ronald Duncan, a partir da peça Le viol de Lucrèce, do dramaturgo francês André Obey. Britten escreveu uma ópera de câmara, experimental e inquieta, para repensar o género e levantar questões difíceis.

“Depois de Peter Grimes, Britten percebe que não pode continuar naquele formato, que inviabilizava tudo do ponto de vista prático”, explica-nos João Paulo Santos, responsável pela direcção musical desta produção, com quem falámos num dos ensaios antes da estreia deste sábado, às 20h, no Teatro de São Carlos, em Lisboa.

Para Benjamin Britten, era necessário criar uma ópera com poucos meios: “Então Britten propôs uma ópera para Glyndebourne em versão reduzida. Decidiu repensar a ópera e fazer de um modo diferente, reduzindo-a a 12 músicos com maestro, com solistas, mas sem coro.” Segundo João Paulo Santos, esta ópera de câmara “é uma espécie de ensaio-experiência para outras coisas que ele viria a fazer. Isso nota-se na forma como trata o tema e como o desenvolve. É completamente novo e diferente da atitude anterior, e deixa uma semente para as suas obras futuras”.

Pode tirar-se uma lição?

O compositor inglês tinha em mente vários cantores cúmplices e a voz de contralto de Kathleen Ferrier para o papel de Lucrécia. João Paulo Santos esclarece, contudo, que “todos os papéis estão ao mesmo nível, não há uns mais importantes que outros”. Até nisto a ópera de Britten era diferente. A proposta do compositor era contar uma história e ver o que poderia ela significar no seu tempo. “É uma reflexão que ele propõe”, diz João Paulo Santos. “Até que ponto o mundo exterior tem influência no privado? E, ao mesmo tempo, ele queria questionar se o horror da guerra tinha algum sentido ou se o poderíamos ter evitado. Pode tirar-se alguma lição?” O director musical sugere que essas questões têm de voltar a ser colocadas, mas agora “em Lisboa, não em 1946, mas em 2017”.

Fomos falar também com Luis Miguel Cintra, depois de mais um intenso dia de trabalho de montagem desta nova produção do Teatro de São Carlos. “O que não é costume, e tentámos fazer aqui, é misturar os assuntos: a dramaturgia não é separada do texto e da música”, diz o encenador. “Foi preciso analisar as características da música. Aprendemos imenso (e eu próprio também) nessa parte inicial com o João Paulo Santos, com um método raro e muito bom para os cantores. Aliás, eles cantam muitíssimo bem.”

 Para Cintra, esta é também uma obra com uma força política particular: “Num período de crise e mudança, com a Segunda Guerra Mundial, havia da parte de alguns artistas um sentido de responsabilidade. Um grupo de músicos amigos fizeram uma espécie de manifesto defendendo a acção política das artes e da música, com uma visão humanista, conscientes de que as artes tinham uma contribuição importantíssima a dar para a transformação do mundo.”

Inventar a felicidade

Luis Miguel Cintra considera que esta ópera tem uma posição clara: “A ópera é construída de propósito com um lado popular, com uma história exemplar, para exprimir um ponto de vista. Há uma ideia transportada por duas pessoas, que se chamam ‘coro feminino’ e ‘coro masculino’, indignadas perante os erros da humanidade e a irresponsabilidade. E contam a história de um erro.”

Apesar da intenção clara de propor uma reflexão política sobre a humanidade, esta ópera tem um lado ambíguo: “Tudo tem um sentido contraditório e ambíguo”, diz Luis Miguel Cintra. “A própria violação de Lucrécia... há violação ou não? Ela é moralizada e moralista, fiel a princípios em vez de inventar as suas próprias leis. Na ópera, Lucrécia não foi capaz de descobrir e reconhecer uma paixão diferente, à margem do casamento. Mas mata-se e aí viola-se a si mesma, faz um gesto contra a dignidade do ser humano.”

Contradições que pretendem conduzir os espectadores a uma reflexão mais profunda. “Há um hino final sobre a capacidade de se ser humano de se regenerar”, diz-nos o encenador. “Cristo encarnou essa capacidade regeneradora, mas como? De que maneira se transcende a si próprio?”

O que está em causa é, para Luis Miguel Cintra, “a possibilidade da humanidade de compreender, inventar, progredir e não estarmos sujeitos ou presos a ideologias”. Mas na ópera de Britten há também compaixão e amor: “É preciso uma ternura para reconhecer uma atitude paralela, uma utopia de mudança nas relações entre as pessoas. Uma felicidade inventada pelas pessoas e não um modelo preconcebido.” Para o encenador, “neste momento há uma espécie de destruição da capacidade de sonho, um desejo de estagnação, de comodidade, de conforto, de estar tudo previsto. Mas esta ópera propõe pensar de outra maneira.”

Para João Paulo Santos, esta ópera é o oposto de uma ópera verista: “Não é uma narrativa realista. É mais cinematográfico do que outra coisa. Há planos simultâneos, comentários, monólogos interiores, pára a acção. É extremamente interessante ver como Britten tentou tudo isso. Poderia parecer de excessiva seriedade, desagradável e agressiva, mas verdade é que é muito sensível.” Para o director musical, também a coesão do grupo foi essencial para a montagem desta produção: “O discurso em The Rape of Lucretia tende a fragmentar-se, mas é preciso manter o todo. Por isso o trabalho de conjunto que aconteceu aqui foi tão importante, com pessoas que se conhecem.”

Segundo Luis Miguel Cintra, esta é uma ópera experimental: “Era possível fazê-la num armazém, num barracão, numa encenação mais modesta, mas aqui estamos num teatro de ópera, dos mais bonitos que conheço. Aqui é difícil não fazer uma ‘bela imagem’. Quis não abdicar disso, mas ir pondo em causa essa bela imagem ao mesmo tempo, com processos como a iluminação à vista e tornar a música o mais clara possível. E reduzir a movimentação dos actores ao quase nada que está no libreto.”

Uma ópera-ensaio que levanta questões complexas mas que “deixa surgir um universo poético, imaginário”, como diz o encenador, que sublinha o lado de ensaio e tentativa que esta ópera tem: “No final da ópera diz-se ‘we tried’. E nós tentámos também. Gostava que isso estivesse presente aqui.”

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