Josef Mengele devorou-se a si próprio

La disparition de Josef Mengele é um brilhante mergulho na intimidade de um monstro nazi, nos seus anos de fuga na América do Sul. Ao entrar no quotidiano, inicialmente ostensivo depois sórdido, do “médico” de Auschwitz, o autor explica como ele escapou à justiça dos homens durante 40 anos mas como foi castigado: devorando-se.

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O crânio de Josef Mengele mostrado aos jornalista em 1985 em Embu, Brasil Robert Nickelsberg/Liaison

O Anjo da Morte, como lhe chamam, exerceu um fascínio perturbante. Em Auschwitz, mais tarde quando conseguiu fugir e desaparecer e depois da sua morte, quando o mundo descobriu a ignomínia das suas actividades. O doutor Mengele, médico sinistro que inflingiu sem piedade os maiores sofrimentos a milhares de deportados nos campos da morte, em nome da experiência médica e do apuramento da raça ariana, era afinal um miserável e obscuro capitão das SS proveniente da burguesia bávara, cobarde, frio e obsessivo, e que se conseguiu esconder na América do Sul durante tantos anos depois do final da II Guerrra graças à acção conjunta do dinheiro da sua família, das cumplicidades locais, tanto na Baviera como nos países de acolhimento, da solidariedade dos exilados nazis e da complacência de governos como o de Perón na Argentina, mas também do Paraguai ou Brasil. Isso permitiu ao “médico” de Auschwitz viver alguns belos anos nas melhores condições, com estreias de ópera, jantares elegantes e soirées de deboche nos bordéis chiques de Buenos Aires.

O nome “Anjo da Morte”, o seu desaparecimento quase sobrenatural, as numerosas lendas que o rodeiam, hipnotizaram as pessoas e anestesiaram percepções. É elevado a encarnação maléfica demoníaca. Ou não. Olivier Guez recusa de forma vibrante esta transfiguração de Mengele, que segundo o autor é um homem como os outros, mais normal do que quereríamos que fosse, tragicamente humano, na verdade, que obedecia às ordens, que construía a sua pequena carreira, vaidoso e indiferente ao sofrimento que o rodeava. Até ao fim viu-se como executor de ordens, obediente e ao serviço da grandeza alemã.

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Olivier Guez, 43 anos, nascido em Estrasburgo, é escritor, jornalista, ensaísta JF

O grande interesse do romance de Olivier Guez (porque é um romance de não ficção, ou seja, muito fiel à realidade e abundantemente documentado) é que relata com precisão os protagonistas e os factos da fuga do criminoso de guerra como uma câmara de espionagem: o autor infiltra-se o mais possível perto de Mengele. Este vai meter-se, de forma inexorável, num longo caminho da cruz feito de solidão, de terror, de raiva e paranóia. Uma lenta queda começa nas várias quintas que o aceitaram esconder a troco de somas exorbitantes.

Doente e insomne, afunda-se. A sua decadência mental e física, o isolamento e abandono, o seu fim longe do seu país, entregue aos seus demónios em condições materiais sórdidas: tudo isto foi o castigo terrestre, aquele que a justiça dos homens não soube dar-lhe. Mengele acabou por se devorar a si próprio.

Na altura em que o mundo ocidental assiste ao ressurgimento dos populismos e à dissolução dos ensinamentos da paz forjados sobre as cinzas de milhões de vítimas da barbárie, Olivier Guez conclui assim a sua obra: “A cada duas ou três gerações, quando a memória se esvai e quando as últimas testemunhas dos massacres precedentes desaparecem, a razão eclipsa-se e os homens recomeçam a espalhar o mal”.

Olivier Guez, 43 anos, nascido em Estrasburgo, é escritor, jornalista, ensaista. Co-escreveu o filme “Fritz Bauer, un héros allemand” sobre o procurador que encontrou os traços Adolf Eichmann, o cérebro do Holocausto. Fascinado pelos períodos dos pós-guerras, expõe nesta conversa o seu método, a sua intenção literária. Este livro, de uma atmosfera cirúrgica e que soa como uma premonição, vinda do passado, acaba de receber o Prix Renaudot.

Como é que organizou o seu trabalho?
Há dez anos que trabalho sobre os pós-guerras, quer seja na Europa, na Alemanha ou na América do Sul, portanto não descobria todas estas questões trabalhando sobre Mengele. Tinha escrito “L’Impossible Retour, une histoire des juifs depuis 1945» [O Regresso Impossível, a história dos judeus desde 1945], onde contava a história dos judeus na Alemanha depois da guerra e, sempre em espelho, a relação dos alemães com o seu passado, seja a nível político ou simbólico, mas também de ponto de vista judicial. De seguida escrevi [com Lars Kraume] o argumento do filme “Fritz Bauer, un héros allemand” [Fritz Bauer, um herói alemão], onde se contava como esse grande procurador tinha colaborado com a Mossad, pois é ele que lhes dá a informação da presença de Eichmann na Argentina. E ao trabalhar na preparação do filme, li muito sobre a Argentina dos anos 50 e nesse momento “cruzei-me” várias vezes com Mengele. Disse a mim próprio que ainda havia alguma coisa para fazer relativamente aos nazis na Argentina. Toda a gente sabe que muitos nazis partiram para a América do Sul, mas não se sabe grande coisa, é pouco nítido. Nem tudo tinha ainda sido dito. Existe uma grande bibliografia, mas aqui não conhecemos muito bem o contexto sul-americano. Pensei que havia uma história para contar. Mengele não foi preso, não foi julgado, e morreu velho em 1979. Então existe este mistério: por que razão nunca foi ele preso? Depois há também todas as histórias que se contava sobre ele (por exemplo, as aldeias de gémeos que teria criado), tudo isso é uma treta. Faltava-me separar o verdadeiro do falso. E depois há a questão mais filosófica: é verdade que ele não foi julgado, mas terá ele sido castigado em algum momento? O que é que a vida lhe reservou? Quem é o “Mengele após Mengele”?   

Que tom quis dar ao texto? Como classifica o ambiente estilístico do livro?
Queria qualquer coisa seca, áspera, tensa, não era necessário que o livro fosse uma zona de conforto para o leitor. Nenhum desvio, nenhuma grande demanda onde o autor se coloque em cena, nada de metáforas, nada de grandes descrições. Realmente qualquer coisa muito seca, como a dissecação de Josef Mengele na América do Sul.

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Josef Mengele, à esquerda, seguido de Rudolf Hoss, comandante de Auschwitz, de Josef Kramer, comandante de Belsen, e de um oficial alemão não identificado Universal History Archive/Getty Images

Encontrou, na bibliografia e nos relatórios de entrevistas, matéria suficiente para reconstituir com precisão as conversas, os estados de espírito, os acontecimentos do dia-a-dia? Ou teve que entrar no campo da ficção?
Não existe diálogo no livro, ou somente discurso indirecto. Não coloquei as personagens a dialogar. Não tinha vontade de as fazer viver dessa maneira. É talvez a minha paixão por Thomas Bernhard [dramaturgo austríaco] que me levou a ter vontade de usar esse tipo de narração. Depois, na bibliografia encontra-se mesmo assim muita coisa. Vou dar-lhe um exemplo. A ligação entre Mengele e Gita Stammer [mulher do casal húngaro que durante vários anos o albergou na sua fazenda no Brasil]. Pelo que pude ler, tiveram uma relação. Onde, quando, como, durante quanto tempo, em que condições, ninguém jamais o saberá. Pelo que a partir do momento em que tenho 95 por cento de certeza que existiu uma ligação confirmada por diversas fontes, aí o romancista apodera-se da matéria e vai “inventar”, entre aspas, as condições dessa ligação.    

Ou seja, teve mesmo que entrar na ficção…
Sim, claro, porque a vida de Mengele na América do Sul é totalmente de romance, a sua comitiva é de romance, a sua família é incrivelmente de romance, e consegui recolher muitas informações. Depois há também uma formatação que é ainda romanesca.

Existia já uma quantidade de obras e de estudos “sobre a pista de Mengele”. O que acha que trouxe de novo? A forma de romance permite tapar lacunas ou abrir novas vias?
O meu modelo foi “A Sangue-Frio” de Truman Capote, onde, após ter acumulado enorme quantidade de informações, ele escreveu um objecto literário sublime que ninguém contesta que seja literatura. É um romance verídico ou um romance de não-ficção. Foi o que tentei fazer. Um romancista tem mais liberdade do que um historiador ou um ensaísta. Um historiador necessita de uma carta ou um arquivo que confirme cada uma das suas frases. Eu tenho a minha própria objectividade, depois de ter lido imenso, após ter passado tanto tempo com Mengele, tinha a minha própria opinião sobre o seu perfil psicológico, mas tudo isso suportado por factos concretos. A partir do momento em que coloquei Mengele no título, tinha uma responsabilidade directa com os leitores. Senão teria que criar uma personagem de ficção completa ou contar uma outra história. Aí está a vantagem do romancista para desenhar o retrato do criminoso em fuga. Durante toda a segunda parte brasileira Mengele já não é de todo um actor da história, ele esconde-se, e isso fornece um cenário fechado que é uma matéria literária formidável.   

Você recorre frequentemente ao facto histórico como trama ou objecto dos seus livros. Por quê?
Sou obcecado pelos pós-guerras. No plural: 1914-1945 forma um período completo que é o suicídio da Europa. Há 85 milhões de mortos na Europa nesse período. É alucinante. E creio que ainda hoje vivemos nesse após. Estamos talvez na fase 2 ou na fase 3, mas penso que a Europa não consegue recuperar rapidamente de um tal trauma. Basta ver a quantidade de produção literária, cinematográfica, audiovisual, etc., sobre a guerra e o que se seguiu a ela. Assim, considerando que estamos sempre aí dentro, a fronteira entre a História e o presente é extremamente ténue. E vê-se bem na história de Mengele que ele entra na nossa modernidade. Por exemplo, enquanto ele escuta as suas peças de música clássica no gira-discos no seu terraço – aí está o velho nazi que escuta a sua música clássica –, quando vira as costas e vai embora, os adolescentes vão para lá ouvir Beatles. Eis o encontro com a nossa época. Mengele morreu em 1979, os seus restos mortais são descobertos em 1986, quando estamos já no tempo presente. À escala da História é apenas um grão de areia. Sim, interesso-me pela História, mas não escrevo sobre a Idade Média. Creio que a nossa Europa contemporânea é em larga medida constituída pelo que se passou entre 1914 e 1945.

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Wolfgang Gerhard, alegadamente Josef Mengele, ao centro, entre amigos numa fotografia tirada em data desconhecida nos anos 70 Bettmann

Por que razão pode Mengele ser uma personagem de romance? O tema é delicado. Não se corre o risco de se dissolver o Mengele histórico naquele do romance, de fornecer contornos da verdade tão frágil e cruel, mais nebulosa, menos tangível, tornando-a ficção no tempo de um livro?
Desde já, não ficciono o Mengele de Auschwitz. Depois, conto a sua vida na América do Sul à minha maneira mas não atraiçoo a verdade histórica. Em terceiro lugar, invento bastante menos do que tudo aquilo que foi escrito sobre Mengele durante muito tempo. Não é por ter a palavra “romance” por baixo que se transforma numa ficção completa. É uma técnica literária [o romance de não-ficção] para contar uma história verdadeira.
Será que os contornos do Mengele de romance são mais fluidos? Não tenho essa ideia, o retrato que faço do homem e da sua cobardia é importante: eu queria mostrar que Mengele era um homem. Detesto quando se apresenta os nazis como marcianos, ou monstros, “o Anjo da Morte”, essas expressões – isso é bastante mais fácil e não é olhar de frente a verdade. E Mengele é um excelente exemplo da mediocridade do mal, que vai ainda mais longe que a banalidade do mal. Era muito importante mostrar quem se escondia por trás dessa personagem do mítico “Anjo da Morte”. Não tenho a impressão de que os seus traços sejam muito mais fluidos, na medida em que respeito a verdade histórica, não faço dele um herói, não há a menor empatia com a personagem, não estou dentro da sua cabeça, ponho-me antes ao lado dele e persigo-o como um detective para mostrar a sua ruína.

Diz-se que o «Anjo da Morte» exercia, e talvez ainda exerça, um fascínio sobre o público. Será que o escritor e também investigador que você é também se sentiu fascinado por ele? De que forma o mal pode fascinar o escritor? E o público?
Há um mistério Mengele: por que é que ele não foi apanhado e onde é que ele se escondeu durante todos esses anos? O livro responde a isso, existem outros livros, evidentemente, e não tenho a certeza de que muita gente tenha lido as biografias de Mengele publicadas nos anos 80, que são as melhores; digamos então que Mengele se tornou o símbolo da barbárie nazi. Apesar de não ser mais do que um médico entre centenas de médicos, é um simples capitão das SS, não é, por exemplo, um Heydrich [Reinhard Heydrich, conselheiro próximo de Hitler e um dos planificadores do Holocausto]. O que ele fez em Auschwitz enquanto médico é uma traição quádrupla: há as experiências, há a triagem no cais de chegada [dos comboios de prisioneiros], há a falência absoluta das elites alemãs, o horror do que foi feito em nome da Alemanha, e depois há a sua fuga, donde o mito que foi mantido por, entre outros, Simon Wiesenthal [“caçador de nazis”]. Pessoalmente não tenho nenhum fascínio por ele, pelo que não utilizo a expressão “Anjo da Morte” no livro, excepto quando há outras personagens que a usam. Recuso esse fascínio.   

Trabalhar longas semanas neste contexto pesado teve influência no seu estado mental, e isso alterou-o? Ou, pelo contrário, você trabalhou com o mesmo distanciamento de um cientista (ia dizer de um médico…)?
Isso pesou no início, quando ataquei verdadeiramente a sua biografia e o médico nazi nos campos de concentração. A partir do momento em que compreendi como iria contar esta história, a sua derrota, e como este homem era tão pequenino, e talvez o facto de nunca ter sentido a menor empatia com ele, isso permitiu-me sentir-me como um marionetista. O nome de Mengele causa um sentimento de pavor, como uma aranha, ou qualquer coisa infecta nesse nome, naquilo que ele evoca. Mas a sua ruína, e a partir do momento em que compreendi quais eram os seus traços, permitiu-me tornar-me este marionetista.

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Josef Mengele no Brasil na década de 70, o segundo à esquerda, entre amigos não identificados e Elsa Gulpian de Oliveira, a empregada com quem teve um romance Robert Nickelsberg/The LIFE Images Collection/Getty Images

Qual é a sua opinião pessoal, na medida do conhecimento que tem sobre o assunto, sobre o que se descobriu graças a si: a família, o círculo mais íntimo, os amigos, os cúmplices de todo o género, a Argentina, etc.? A inacreditável facilidade com que todos aceitaram, anulando toda a empatia e toda a compaixão pelas vítimas de Mengele?   
Primeiro: que é evidente que o nazismo não morreu em 1945. Segundo: que sem dinheiro ele não teria ido muito longe. Terceiro: que, no fundo, ninguém verdadeiramente perseguiu os nazis após a guerra.

O que iria fazer sofrer mais Mengele no fim da sua vida – e o cúmulo da ironia para quem trabalhava sobre genética, filiação, raça – é o seu próprio filho. E também o facto de ter tido como últimas companhias mulheres não-arianas (uma húngara e uma brasileira, ainda por cima ambas pouco submissas). E o facto de ter sido privado do seu trabalho. Acha que Mengele recebeu na América do Sul um castigo pelos seus crimes? Que de alguma forma pagou, como numa roda de karma, pelo mal que infligiu?
Estou convencido de que se tivesse sido preso e julgado pelos alemães ele safar-se-ia. Já tinha escapado à incerteza que o roía durante 20 anos. Com os meios da sua família ele teria tido os melhores advogados da Alemanha. Depois, teria adoptado a linha de defesa de Eichmann, “uma ordem é uma ordem, e para além disso eu salvei vidas” (com efeito, ele não enviava directamente toda a gente para as câmaras de gás), e que não passava de um simples capitão. A sua família poderia vê-lo, a sua segunda mulher... Penso que ele se teria safado muito melhor se tivesse sido preso pelos alemães. Ele não teria tido que viver com essa paranóia, essa angústia que o engolia todos os dias.

Já com os israelitas teria sido diferente. Muito diferente. Eles ter-lhe-iam feito pagar caro, muito caro, num processo como o de Eichmann. Teria certamente sido condenado à morte.
Em parte, sim, ele foi castigado. Mengele autodevorou-se. Talvez seja esse o tema do livro. Como Mengele se autodevorou. Corroeu-se, corroeu-se. Sozinho. Porque no final ele era muito pouco procurado. Ele só foi verdadeiramente procurado durante três ou quatro anos. Em 30 anos isso não é nada. Mas nos anos 50 ele persuadiu-se de que por trás de cada palmeira da savana brasileira se escondia um agente da Mossad. E isso constitui uma matéria literária fascinante.  

O seja?... Os ataques de paranóia, de demência? Do monstro que se volta contra si próprio?
O espaço fechado. A loucura. É preciso compreender que Mengele não é um aventureiro, é o filho de grande burguês e depois da guerra ambicionava ser professor na universidade. Fui a todo o lado. Descobri uma das fazendas no Brasil, onde ele passou dez anos. A não ser para uma estadia em viagem, você percebe o inferno que isso é para um burguês europeu. É um inferno: a humidade, o calor, os bichos, os mosquitos, as cobras…  

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