Como se faz um Vintage de 100 pontos?
Se um vinho recebe da crítica mundial 100 pontos em 100, isso quer dizer que esse vinho é perfeito, certo? Bom, a perfeição é algo subjectivo. Mas os Porto Vintage da Taylor’s, da Dow’s ou da Noval que nos últimos anos mereceram esta distinção estão lá perto. Porquê? A natureza do Douro dá respostas, mas os detalhes da perfeição devem-se a uma combinação imbatível entre a memória e a ciência.
David Guimaraens chegou ao final da vindima nas quintas da Taylor’s e da Fonseca no Douro e não esconde o seu optimismo. “Este ano foi muito parecido com os de 1945 e de 1863”, diz, recorrendo ao enorme manancial de memória histórica acumulada ao longo de várias gerações. A comparação não é inocente. Se a expectativa se cumprir, a vindima de 2017 dará origem a Porto Vintage condenados a tornarem-se lendários, como os de 1945 e de 1863. E se tudo correr pelo melhor, David Guimaraens (a grafia antiga do nome foi herdada do seu antepassado Manoel Pedro Guimaraens, um liberal nortenho que fugiu para Inglaterra em 1822), pode voltar a ser autor de um Vintage premiado com 100 pontos em 100 em publicações mundiais prestigiadas como a revista norte-americana Wine Spectator ou a Wine Advocat, do influente crítico norte-americano Robert Parker. Não seria a primeira vez: as duas marcas do grupo Fladgate têm, nada mais, nada menos, do que sete vintages produzidos entre 1927 e 1994 classificados com 100 pontos nas duas revistas – para lá do Scion, um Porto com mais de 150 anos envelhecido em casco.
Conseguir um vinho com 100 pontos em 100 não é apenas um prodígio em termos de perfeição: é igualmente uma façanha que muito poucas empresas ou regiões do planeta vinho conseguem obter. O que impõe uma pergunta lógica: como se consegue? A primeira resposta que a maioria dos viticultores e enólogos do vinho do Porto darão aponta para as características únicas do vale do Douro, onde o regime de chuvas é bondoso, onde o calor amadurece as uvas, onde o xisto permite que as raízes das videiras atinjam vários metros de profundidade, onde há vinhas centenárias, onde se cultivam dezenas de castas adaptadas à dureza do clima da região. Mas o sucesso do Porto Vintage ou as expectativas de um ano grandioso como o de 2017 não se justificam apenas pela natureza. Jamais haveria vinhos com 100 pontos se o Douro não fosse um lugar que acumulou séculos de um saber empírico que, nos últimos 40 anos, foi capaz de incorporar nas suas vinhas ciência, inovação, experimentação e desenvolvimento.
No seu discurso da rentrée política este ano no Algarve, o primeiro-ministro António Costa citou o exemplo do vinho como um caso de sucesso que se explica pela sua capacidade de se abrir à ciência. Tem razão. No caso do Douro, porém, a ciência mais avançada coexiste com um esforço para recuperar práticas ancestrais. António Magalhães, engenheiro viticultor, trabalha há 25 anos nas quintas da Taylor’s e admite que “o trabalho mais interessante da minha passagem pela empresa foi perceber o impacte das diferentes gerações da vinha no produto final”. Nuno Magalhães, professor jubilado da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e pioneiro na aplicação da vanguarda científica no Douro depois de 1980, subscreve esta tese ao afirmar que o novo Douro tem de manter um pé no futuro e outro no passado. Não só para continuar a fazer grandes vinhos; também para “recuperar o equilíbrio que foi perdido entre a vinha e os agricultores”.
Passado e presente e futuro fazem um tripé por natureza instável e incerto, ainda mais quando a base sobre a qual se sustenta se faz de botânica, de genética, de engenharia, de informática e de senso comum. Numa região que faz vinho há mais de 2000 anos, as singularidades do saber popular podem ser muito mais que caprichos. Por exemplo, o velho hábito de plantar na mesma vinha dezenas de castas diferentes (a prática nacional e internacional varia entre uma ou um pequeno conjunto de variedades) era já explicado em 1532 numa memória de Lamego com a necessidade de garantir produções estáveis; a alta densidade de plantas nos socalcos tradicionais ia muito para lá das preocupações com a quantidade. O suposto empirismo da velha viticultura não era tão empírico assim. A casta mais importante do Douro, a Touriga Franca (ou Francesa) resulta de um cruzamento entre a Touriga Nacional e a Mourisco feito na região; a Tinta da Barca foi “inventada” por um viticultor da zona do Pinhão há mais de 100 anos. “Nós lemos pouco as memórias dos séculos XVIII e XIX. Muitas vezes andámos a descobrir a roda”, costuma dizer António Magalhães.
O sistema de saberes antigos foi posto em causa quando Portugal beneficiou de um empréstimo do Banco Mundial para renovar e mecanizar as vinhas do Douro. Com essa mudança, o perfil da vinha e do vinho sofreu um abalo. Estávamos na década de 1980 e o vale assistiu a uma pequena revolução que mudou a face de 2500 hectares das suas vinhas. Em vez de uma multidão de castas, as novas vinhas foram plantadas com cinco variedades estudadas, entre outros, pelo recentemente chegado da Universidade de Montpellier João Nicolau de Almeida. Os muros de pedra desapareceram e em seu lugar nasceram os patamares ou as vinhas plantadas ao alto, que contrariavam as curvas de nível. Se nas vinhas antigas se plantavam entre 5500 e 6000 videiras por hectare, nos patamares cabiam apenas 2500 ou 2700. O modelo pensado para calcular a produção através de uma vinha alterou-se para o cálculo das produções de cada planta. Os porta-enxertos tradicionais foram trocados pelo “cibernético” R99, um híbrido talhado para chegar a esse fim. As podas mudaram e muitas castas ancestrais foram consideradas menores.
A busca pela modernidade provocou uma “mutação na viticultura tradicional”, diz Nuno Magalhães. Foi “um salto sem rede” porque desconhecia-se o “impacte que as novidades iriam ter na vinha e no vinho”, acrescenta. A abertura à ciência foi fundamental para minar vícios do arcaísmo, mas menorizara o saber tradicional. Hoje, acontece o contrário: a ciência tenta coexistir com o saber tradicional. O Douro contemporâneo que obteve em 2007 mais duas classificações com 100 pontos (as marcas Dow’s e Noval Nacional) e que em 2011 regressou ao cúmulo do juízo dos críticos da Wine Spectator (com o Noval Nacional, de novo, mas também com o Dow’s, eleito como o melhor vinho do mundo desse ano) é já o resultado desse esforço de equilíbrio. Hoje, como nunca, o Douro é um campo aberto à experimentação sustentada nos saberes antigos. A ciência, pode comprar-se; os saberes antigos não. Nem a natureza. Os grandes vintages são por isso a expressão de mundo exclusivo que é o Douro português.
A quinta do Junco, uma majestosa propriedade pouco acima do Pinhão, é um bom lugar para se dar conta desse reencontro com a memória. Os vinhos ali produzidos fazem parte do lote final dos Taylor’s clássicos, que juntamente com os Fonseca, os Dow’s, Graham’s e Noval são os mais procurados pelos apreciadores e coleccionadores de todo o mundo. Dos seus 82 hectares, 41 são plantados com vinha e desta área há 11 hectares de socalcos são anteriores à devastação da filoxera (um insecto) no final do século XIX. Aí, a dupla David Guimaraens/António Magalhães cuidam de cada videira centenária como se cada videira tivesse um nome próprio. Os muros históricos foram reconstruídos e no meio da biodiversidade da vinha há castas que são certezas e outras que ainda pairam no limbo da dúvida. Magalhães pegou em varas de duas variedades quase ignoradas, a Casculho e a Cornifesto, plantou-as em microblocos e aguarda que o tempo lhe dê respostas sobre o seu potencial real. Em outros casos, as castas foram preservadas apenas por zelo. “Há uma que nos intriga e só preservamos por dever: a Tinta Malandra”, justifica o viticultor.
Se a Taylor’s estuda estas castas antigas é por uma razão evidente: a criação de um Vintage de classe mundial é tão exigente que um pequeno aroma, um toque especial de tanino, ou um rasgo de acidez podem fazer toda a diferença. Na procura de um vinho quintessencial, no limiar da perfeição, com fruta, volume, estrutura, garra e potencial para resistir a décadas na garrafa, os detalhes contam. Manter as vinhas tradicionais, as castas tradicionais, com densidades de plantação tradicionais é fundamental para essa missão. Desde que as vinhas possam ser mecanizadas para aliviar a “penosidade do trabalho manual”, que as castas resultem de apurados processos de selecção clonal, que sejam tratadas com rigor científico para evitar a propagação de pragas, ou que a densidade não implique o recurso a produtos químicos para combater ervas ou infestantes.
Na Quinta do Noval, na estrada entre o Pinhão e Favaios, a procura dos grandes vintages na vinha parece mais simples. Perto da casa da quinta há um tesouro único que justifica não só os 100 pontos que vários vintages da casa conquistaram como a distinção conferida ao se Vintage de 1931, considerado pela Wine Spectator como o terceiro melhor vinho do mundo do século XX – a tentativa de escolher vinhos assim é arriscada, como é óbvio. Numa área de 1,7 hectares está plantada a vinha que faz o Noval Nacional. Aí, as suas seis mil videiras são plantadas no regime de “pé franco” – ou seja, sem os porta-enxertos americanos que se usam desde o final do século XIX para combater a filoxera. Zelar por esse jardim é uma das principais obras do enólogo António Agrellos: “Não mexemos em nada. Quando uma planta morre, vamos ao viveiro que temos ao lado e substituímo-la”, diz.
Uns 70 ou 80 quilómetros em direcção a Espanha, o grupo Symington segue os passos da ciência num campo experimental da sua Quinta do Ataíde, no vale da Vilariça. Nesse terreno, estão plantadas 53 castas destinadas a servir de balão de ensaio à equipa liderada pelo viticultor Fernando Alves. “Queremos conhecer melhor o seu ciclo vegetativo, o seu mecanismo fisiológico e a sua adaptação às mudanças climáticas”, diz Fernando Alves. Depois, os ensaios permitirão ainda verificar a “simbiose” entre as castas e diferentes porta-enxertos. O campo de Ataíde tem uma réplica no Pinhão apenas com castas do Douro, o que permitirá estudar o comportamento de cada variedade em ecossistemas distintos. É afinal a continuidade de um campo montado na Quinta da Lêda, da Sogrape, nos anos de 1980 pelos académicos Antero Martins e Nuno Magalhães. Os 197 clones aí trabalhados foram adoptados pela maioria dos produtores nacionais e estão na origem da revolução da viticultura que se seguiu. “Introduzimos aí modelos de genética quantitativa, que ainda hoje é uma inovação a nível mundial”, diz Nuno Magalhães.
Todas as grandes empresas mantêm nos dias de hoje uma relação de enorme proximidade com a vinha – o que não acontecia outrora. “Uma grande parte das empresas acolheu laboratórios de experimentação”, confirma o professor da UTAD. Conhecer as videiras é o primeiro passo para se conhecer o vinho. No grupo Taylor’s, por exemplo, sabia-se na Primavera do ano passado que as suas vinhas albergam 1.2 milhões de videiras, das quais 270.608 tinham mais de 70 anos ou que 338.745 tinham menos de 15 anos. No grupo Symington, por altura do “pintor” (quando a cor escura chega aos bagos das castas tintas), são produzidas imagens aéreas com infravermelhos nos 1050 hectares geridos pelo grupo, “uma espécie de TAC que nos permite avaliar a saúde interna das folhas e o vigor das plantas”, diz Fernando Alves. Cada imagem encaixa-se depois num sistema de georreferenciação, o que permite à equipa de viticultura tratar pequenas zonas onde haja problemas de nutrição ou doenças nas videiras. No Noval, a dimensão da tarefa é menor, mas “é normal que em véspera da vindima andemos pela vinha fora a ver as videiras uma a uma e a decidir quais são os cachos que ficam fora do lote final”, diz António Agrellos.
Todo este conhecimento é fundamental também para determinar com precisão a data da colheita. Decidir o dia em que se apanham as uvas no perfeito estado de maturação é uma tarefa ciclópica para empresas que, como a Sogrape ou os Symington têm várias propriedades ao longo das encostas do Douro. Muitas vezes, na mesma propriedade tem de haver datas de vindima diferentes, porque as parcelas junto ao rio amadurecem mais cedo em virtude de “a temperatura média mais alta e de índices de precipitação mais baixos”, diz António Magalhães. Na Quinta do Junco, comprada pela Taylor´s em 1998, o desnível varia entre os 200 metros e os 480 metros, o que pode fazer toda a diferença. E para tornar o exercício da previsão rigorosa do momento da colheita ainda mais labiríntico, acrescente-se que o ciclo das videiras nas zonas do Baixo Corgo, junto à Régua, é muito diferente do que se regista nas zonas semiáridas do Douro Superior, junto a Foz Côa.
Quando as equipas de enologia e de viticultura marcam as datas da vindima, em tese já sabem para onde vão as uvas da zona A da vinha B. Há décadas que as grandes empresas e enólogos experimentados como David Guimaraens, Dirk Niepoort, Luis Sottomayor (da Ferreira), Charles Symington ou António Agrellos conhecem o potencial de cada “terroir” sob a sua gestão. Cada lote de cada vinho é vindimado separadamente, enviado para os vários centros de vinificação que as empresas têm espalhados pelo Douro, e trabalhados no lagar. Fazer um vinho do Porto de classe superior exige uma atenção especial para se conseguir extrair das uvas o máximo da cor, dos aromas de fruta e também dos taninos, a base estrutural do vinho que há-de garantir a sua consistência e longevidade. Para esse efeito, a pisa das uvas é crucial. Em algumas adegas, as empresas instalaram robots que fazem a pisa mecânica; mas para os lotes superiores, todo este trabalho continua a ser feito pela pisa humana, mais cara mas que garante a melhor extracção dos componentes essenciais para o vinho.
Depois de o mosto começar a fermentar, acontece o momento mágico do vinho do Porto: a adição de lotes de aguardente vínica que trava a transformação do açúcar natural em álcool e conserva o carácter doce e frutado dos grandes Porto. No processo produtivo destes vinhos, esta, como todas as etapas da vinificação, é razoavelmente simples de fazer e os enólogos fazem-no de uma forma mecânica. O mais importante para eles vem a seguir. Quando, depois de um repouso de alguns meses nas adegas, os diferentes lotes de vinho novo começarem a ser estudados e combinados até se apurar a fórmula final que no prazo mínimo de três anos vai chegar às mesas dos consumidores. É nesse momento de criação que os enólogos vestem a pele de alquimistas, definindo uma base para o vinho, procurando detalhes que o engrandeçam, acrescentando pormenores que sejam capazes de criar uma identidade – um estilo, como se diz no sector – para cada uma das marcas.
Neste capítulo, António Agrellos é um homem feliz. O melhor do Douro, incluindo a sua enorme diversidade, encontra-se no Noval. À sua mão estão vinhos mais maduros que vêm das vinhas junto às margens do rio Pinhão, há vinhos mais frescos das zonas altas, há vinhos com singularidades resultantes de uma maior ou menor exposição a poente. E há também a vinha onde nasce o Noval Nacional, o vinho que de alguma forma pode ser considerado como o ex-libris dos vintages contemporâneos. As condições dessa vinha plantada em 1924, de onde saem no máximo 3000 garrafas por cada vindima, permitem que todos os ingredientes dos grandes Vintage estejam presentes. Numa prova recente de Vintage de 1963 com todas as grandes marcas de vinho do Porto, o Nacional destacava-se pela sua potência e pela sua singela juventude.
Escolher lotes finais também não é grande problema para Charles Symington ou para David Guimarães. Na maior parte dos anos, eles limitam-se a refinar uma fórmula que herdaram dos seus pais. Por exemplo, sabe-se que os vinhos da Quinta da Ribeira são a base dos Vintage da Dow’s, por definição mais austeros, poderosos e estruturados. Ou que Vargellas é o solar dos grandes Taylor’s. Sabe-se também que as vinhas velhas garantem “complexidade, personalidade e individualidade”, enquanto as vinhas modernas, plantadas depois de 1980, garantem “intensidade de fruta e de cor”. Quando partirem para a criação dos lotes finais da vindima de 2017, os enólogos sabem ainda pelas suas notas de vindima (ou pela memória) que uma vinha produziu uma paleta de aromas, que outra acrescentou um toque de fruta especial, que uma terceira adicionou uma acidez fina que também ajuda ao envelhecimento.
Quando David Guimaraens acompanhava a recta final das vindimas na Quinta da Terra Feita, em meados de Setembro, cada um dos lagares vinificados e entretanto metidos em cascos ou em cubas de inox tinha já um bilhete de identidade atribuído. No mundo estratificado das vinhas e dos vinhos que produz, Vargellas, com os seus 11 hectares de vinhas muito velhas, em alguns casos com 110 anos, tem um lugar especial – até porque dão origem a um produto próprio da casa, o Vargellas Vinha Velha. Esta vinha belíssima instalada no dorso da montanha já no Douro Superior, produz vinhos com uma forte componente floral que explicam a elegância e a graça dos Vintage da Taylor´s. Mas a esta componente, David sabe que tem de acrescentar vinhos de Terra Feita, uma propriedade junto ao Pinhão, que acrescentam ao produto final estrutura, músculo e profundidade.
Saber se 2017 vai ser um grande ano Vintage é para já um pequeno mistério. A forma como o ano decorreu, a condição dos mostos no lagar e, principalmente, a memória, dizem que sim. Saber se 2017 vai ser um ano extraordinário como 1863, 1894, 1912, 1931, 1945, 1963, 1977 ou 2011 é ainda um mistério insondável. Tudo depende da forma como os vinhos evoluírem e permitirem aos enólogos a aplicação das suas artes de alquimistas. Aconteça o que acontecer, quando os Vintage deste ano chegarem ao mercado (os preços variam, mas as edições recentes apontam sempre para valores acima dos 60 euros por garrafa) o que estará á disposição dos apreciadores será muito mais do que um vinho. Os grandes Vintage são uma poderosa síntese de um país antigo que persiste em usar memórias e saberes tradicionais, mas que os adapta com uma abertura à ciência que aplica a genética na selecção clonal, os laser no desenho das vinhas, a robótica nos lagares, a georreferenciação no tratamento das videiras ou a microbiologia no estudo dos mostos. Por muito que tenha uma data recente, um Vintage de 100 pontos acaba sempre por ser também uma distinção das gerações que, por intuição ou senso comum, fizeram o Douro que hoje existe.