O Alentejo “está a acordar” mas com alguma “superficialidade”
Portugal devia ter anunciado ao mundo a sua história com o vinho de talha há muito mais tempo, defende Virgílio Loureiro.
Há vinte anos que Virgílio Loureiro vinha falando com paixão sobre o vinho da talha – mas eram poucos os que davam ouvidos a este professor do Instituto Superior de Agronomia hoje aposentado. “Antecipar o futuro faz-nos passar por lunáticos”, ironiza perante a recente onda de entusiasmo com esta forma de fazer vinho, herdada dos romanos.
“Felizmente que o Alentejo está a acordar, mas com mais superficialidade do que eu gostaria”, comenta. É muito importante, diz, distinguir “vinho da talha e vinho feito em talha, é uma diferença como do dia para a noite”. Critica, por exemplo, quem coloca as talhas em câmaras frigoríficas para controlar a temperatura quando “frio artificial era algo que não existia há dois mil anos”. Ou quem estagia em barricas de carvalho os vinhos saídos da talha, “misturando o mundo mediterrânico com o germânico”.
Chegámos tarde à onda de vinho de talha que se espalhou pelo mundo “desde que há vinte anos a Geórgia anunciou que fazia vinho há oito mil anos”. Portugal, diz Virgílio Loureiro, devia ter percebido então que tinha um trunfo: no Alentejo nunca se tinha deixado de fazer vinho da talha desde há dois mil anos.
Mas o país demorou a entender que tinha que contar essa história única e fá-lo hoje quando “até a Nova Zelândia e a Austrália já fazem vinho da talha”. E com outro problema, que Virgílio Loureiro identifica: “Continuamos a vender vinho barato. Com a história e a cultura do vinho que temos não devíamos ter como factor de competitividade o preço baixo.”
Há, actualmente, doze produtores certificados como vinho da talha, mas há outros, que por razões diferentes não têm certificação, a fazer também vinhos com esta técnica, afirma Luís Pedro Amorim, director do laboratório da Comissão Vitivinícola Regional do Alentejo (CVRA). Perante o novo interesse na talha, a CVRA decidiu, em 2010, criar a certificação para “criar algumas regras antes que se banalizasse o termo”.
Para obter a certificação, o produtor tem que anunciar a intenção de fazer vinho da talha nesse ano e este é depois apreciado por um painel de avaliadores. “Excepcionalmente, é dito aos avaliadores que se trata de vinho da talha, porque ele tem características que não seriam admitidas noutro tipo de vinho, nomeadamente a cor nos brancos, com uma oxidação maior, que noutros seria considerado um defeito.”
Um dos grandes produtores do Alentejo, a Herdade do Esporão, decidiu em 2014 lançar-se na “recuperação e interpretação desta tradição alentejana”, com a construção da Adega dos Lagares, que recupera outra técnica ancestral, a construção em taipa, e que, explica a enóloga Sandra Alves, é a “incubadora” dos futuros vinhos do Esporão.
A talha dá a um enólogo “uma lição de humildade”, afirma Sandra Alves: “Todo o processo é manual, moroso e os riscos de deterioração parecem acrescidos à luz do conhecimento actual; as práticas são ancestrais e temos de confiar e acreditar que resultam.”
E há mercado para este vinho? “Claramente que sim”, responde Catarina Santos, directora de marketing e comunicação do Esporão. “Verifica-se um crescente interesse, nomeadamente em países com maior cultura vínica (Estados Unidos, Japão, Escandinávia)” e da parte de “consumidores que valorizam vinhos com carácter vincado, que utilizam técnicas ancestrais de pouca intervenção […] com um perfil mais elegante, menos extraídos e concentrados e com alguma rusticidade”. Acredita, por isso, que a talha “veio para ficar”.
Talhas a Norte do Tejo?
Curiosamente, apesar de ser o Alentejo que se associa sempre a este tipo de vinho, na Bairrada, por exemplo, Filipa Pato está a fazer um vinho em talhas, a que chama “ânforas” para distinguir das alentejanas.
Não estando obrigada às regras da certificação, retira o vinho do barro no final de Outubro, deixando-o depois estagiar novamente nas talhas até à colheita seguinte. Interessou-lhe perceber como é que uma casta da Bairrada, como a Baga (ou Bical, no caso do branco) se comportava em barro. O resultado? “É a mesma Baga mas com muito mais pureza de aroma e taninos mais macios.”
Além disso, “Bairrada vem de barro, e os romanos também terão feito vinho aqui, apesar de a tradição não se ter mantido como no Alentejo”, diz. “E se as uvas gostam tanto dos solos argilo-calcários, porque é que se faz vinho em madeira e não em barro?”.
E o que diz Virgílio Loureiro, o estudioso do vinho de talha, sobre a possibilidade de este se fazer fora do Alentejo? “Os vestígios de dolia [talhas] a Norte são muito escassos, enquanto a Sul são omnipresentes.” Por outro lado, o Sul não tinha árvores boas para a tanoaria, mas tinha “excelente barro”. Acredita por isso que a Norte do Tejo essa produção terá sido “esporádica”.
Lembrando que também produtores como Dirk Niepoort ou Vasco Croft fazem vinho de talha a Norte do Tejo, Virgílio Loureiro considera-o contudo, “vinho feito em talha, por mais respeito que todos tenham (e têm) pelo processo romano”.
Porque, defende, “só no Alentejo há uma verdadeira alma mediterrânica” e “é preciso ir a uma taberna de uma aldeia alentejana para perceber o que é ‘vinho de talha’, com um ritual de consumo que pouco difere do symposium grego (nas conversas, na música, nos petiscos de origem vegetal e nos jogos tradicionais). A norte do Tejo, como já dizia de forma magistral o grande Orlando Ribeiro, a cultura tem mais alma atlântica, pois em vez de música polifónica ouvem-se gaitas de foles e em vez de talhas há tonéis”.