O canto do cisne do falcão da austeridade
Para a vastíssima maioria dos portugueses, a governação da geringonça pode ter todos os defeitos e todas as virtudes mas não se assemelha em nada a “uma maioria radical comunista”.
Ficou famoso o exemplo que o escritor George Orwell deu daquilo que considerava ser “a escrita moderna no seu pior”. Era uma mistura de metáforas: “o polvo fascista acabou de cantar o seu canto do cisne”. Percebe-se o incómodo de Orwell: se o fascismo é um polvo, como é que pode cantar o canto do cisne? Debaixo de água? O mesmo se poderia dizer de uma águia que estendesse os tentáculos, um ovo da serpente que fosse preciso cortar pela raiz ou alguém que visse a ponta do iceberg no fundo do túnel. Uma metáfora correta não pode conter duas imagens incompatíveis entre si.
Há ocasiões, porém, em que é preciso desobedecer a Orwell, porque a mistura de metáforas não somente se justifica e perdoa como chega mesmo a impor-se. E um momento desses ocorreu anteontem quando Pedro Passos Coelho fez o seu último discurso como líder do PSD no encerramento de um debate sobre o Orçamento do Estado, naquilo que apenas pode ser descrito como tendo sido “o canto do cisne do falcão da austeridade”. O canto foi num tom de barítono, como Passos nos habituou; o conteúdo é que foi mais dissonante.
Ainda Passos estava no seu intróito e já tinha repetido três vezes as expressões “intenções propaladas” e “enunciados apriorísticos” sem que ninguém percebesse de que estava ele a falar. Na sequência, lá se entendeu que ele estava a desvalorizar aquilo a que chamou “os acordos do governo com as forças radicais comunistas”. Como nas metáforas de Orwell, o estilo de Passos caracteriza-se por uma mistura de registos de linguagem: na primeira parte pode estar a dizer algo com que toda a gente concorda mas ninguém consegue entender; na segunda parte consegue fazer-se entender mas ninguém fora da sua bolha ideológica pode concordar. E no entanto Pedro Passos Coelho insiste e amplifica o seu erro: mais à frente no seu discurso, não só o governo tem acordos com “forças radicais comunistas” como a própria maioria parlamentar é uma “maioria radical comunista”.
Passos podia estar a discursar num dia 27 de novembro, mas a sua atitude mental estava no 25 de Novembro. Só que mais ninguém o acompanha: para a vastíssima maioria dos portugueses, a governação da geringonça pode ter todos os defeitos e todas as virtudes mas não se assemelha em nada a “uma maioria radical comunista”. O próprio Passos parece, aliás, hesitar. Se numa frase critica os “radicais comunistas” pela “retórica da rápida reposição de rendimentos” já na frase seguinte os culpa por “negarem a realidade da austeridade violenta das cativações”. Logo depois, se os “radicais comunistas” se caracterizam por uma austeridade violenta, não se percebe porque também os critica por “elegerem como seu objetivo não a consolidação orçamental mas o aumento da despesa estrutural”. Em que ficamos? Pode criticar-se a maioria por ser radical comunista ou por fazer o mesmo que fazia Pedro Passos Coelho. O complicado é querer criticá-la pelas duas coisas ao mesmo tempo.
A confusão de Pedro Passos Coelho não é defeito; é feitio. Só por isso se explica que depois de ter arrasado com as opções económicas da maioria de esquerda acabe por dizer que “2017 só trouxe uma surpresa: a economia acelerou bastante mais do que o previsto” sem se dar conta que acabou de refutar o seu próprio argumento. A economia não acelerou apenas mais do que o previsto; cresceu mais do que a média da zona euro, sugerindo fortemente que menos austeridade significa mais crescimento.
É natural que Pedro Passos Coelho não tenha tido muitas ocasiões para fazer um bom discurso em matéria de Orçamento como líder da oposição. Afinal, vamos para três anos de maioria de esquerda e só houve três Orçamentos. No seu tempo como primeiro-ministro, ainda havia todos os debates dos Orçamentos retificativos para treinar.
Sendo assim, restam a Passos Coelho as “intenções propaladas”, os “enunciados apriorísticos”, a “maioria radical comunista” e sempre, sempre, aquela noção frustrante de que apesar de ter chegado em primeiro nas eleições isso não significa obrigatoriamente que se chegue a primeiro-ministro depois das eleições.
Poderíamos resumir a sua atribulação usando a linguagem da mistura de metáforas: como Maomé não foi à montanha, a montanha pariu um rato.