Nola Darling e os seus amantes: Spike Lee foi para o Netflix

O realizador expandiu e actualizou She's Gotta Have It, o seu filme de estreia lançado em 1986, para uma série do serviço de streaming sobre a Brooklyn de 2017. O resultado? Um dos melhores trabalhos de Lee dos últimos anos.

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DeWanda Wise, a nova Nola Darling de She's Gotta Have It DR

Os Bons Amantes. Assim se chamou em Portugal She’s Gotta Have It, o primeiro filme de Spike Lee, que saiu em 1986 e transformou o realizador de Brooklyn numa das maiores forças a ter em conta no mundo do cinema independente norte-americano. Foi aí que tudo começou para o autor de obras como Não Dês BroncaMalcolm XPassadores ou A Última Hora.

Centrado em Nola Darling, uma mulher independente a viver em Fort Greene nos anos 1980, a querer ser artista e a alternar entre três pretendentes homens (e uma mulher), o filme ainda não mostrava Lee em pico de forma, mas já dava indícios daquilo em que o realizador se viria a tornar nos anos que se seguiram.

Passados 30 anos, Spike Lee pegou no filme, manteve a história na mesma zona de Fort Greene original, que agora é altamente gentrificada, e transformou-o numa série do Netflix. Esta expansão inclui as mesmas personagens e algumas das mesmas histórias, mas com actores diferentes. E agora é a cores, em vez do preto e branco original. Não é a primeira pessoa a fazer isso neste serviço de streaming: ainda este ano, Justin Simien expandiu Dear White People, o seu primeiro filme, para uma série altamente influenciada por Lee.

O genérico de She's Gotta Have It, a versão em série, arranca com a contagem do início de Raspberry Beret, o clássico de Prince – o músico é, aliás, homenageado na série –, para depois passar para Notorious B.I.G., ao vivo, a dizer “where Brooklyn at?”. Logo, a seguir, são mostradas imagens de habitantes de Brooklyn em todo o seu esplendor e diversidade, sejam pré ou pós-gentrificação.

A série, que é dos trabalhos recentes mais urgentes e brilhantes de Lee, passa-se em 2016 e reflecte todas as mudanças que aconteceram entretanto, da gentrificação ao entendimento de questões sexuais (esta Nola assume-se como poliamorosa e pansexual), passando pelo movimento Black Lives Matter. As personagens são as mesmas: Nola é agora interpretada por DeWanda Wise e não Tracy Camilla Johns, Mars Blackmon, a personagem icónica que o próprio Lee interpretou no filme original, é agora Anthony Ramos, do musical Hamilton, e passou a ter origem porto-riquenha, enquanto os outros amantes de Nola, Greer Childs e Jamie Overstreet, são agora Cleo Anthony, de Transparent, e Lyriq Bent, de Saw.

E, em vez de se cingir à visão que um homem de 60 anos terá sobre uma jovem artista e a sua sexualidade, Lee pede ajuda a pessoas que a compreendem um bocadinho melhor. A série tem produção executiva de Tonya Lewis Lee, esposa de Spike desde 1993, que o convenceu a virar-se para a televisão – à Rolling Stone, o realizador disse que não via televisão. Mas não é a única mulher que surge por estes lados: nos créditos podem ver-se, tanto como produtoras quanto a assinar guiões de episódios, nomes como Lynn Nottage, a dramaturga que escreveu Ruínas, a peça sobre mulheres na guerra civil do Congo que ganhou um Pulitzer em 2009 e foi encenada no ano passado no Teatro S. Luiz, em Lisboa; Joie Lee, a irmã de Spike, que até faz de mãe de Nola na série;  Essa Davis, actriz de House of Cards; bem como a argumentista Radha Blank.

Essa colaboração dá-nos uma Nola Darling mais tridimensional do que a do filme. É uma personagem que não é definida apenas pela sua sexualidade, que lida com temas como a aceitação do corpo das mulheres negras numa sociedade que passa a vida a dizer que estas não são suficientemente bonitas. O resultado é mais pungente e credível do que seria se fosse só o realizador a escrever. 

É que sempre houve alguns problemas no tratamento de mulheres nos filmes feitos sozinhos por Lee. O próprio até admitiu, em 2014, que não devia ter incluído a cena do filme original em que Nola é violada. Na série há um incidente de assédio que se transforma em agressão e funciona como catalisador para a arte de Nola, que começa a colar posters anti-assédio verbal nas ruas (inspirados pelo trabalho da vida real da artista Tatyana Fazlalizadeh, que trabalhou na série). O assédio perfaz uma boa parte da temporada. A série ter saído nesta altura, em que o mundo, e especialmente Hollywood, começam a prestar alguma atenção a estas questões, torna tudo ainda mais pertinente.

Esta nova Nola tem muito de Spike Lee, que assinou a realização dos dez episódios da série. Tal como o realizador, a personagem assume-se cinéfila, adora Akira Kurosowa, tem um pai músico (Bill, o pai de Spike, que é contrabaixista, assinou a música do filme original, cujo tema principal é usado no genérico e é o toque de telemóvel de Nola) e tem discussões sobre filmes que giram à volta de Denzel Washington não ter ganho o Óscar em 1993 por Malcolm X (um filme de Lee), e este ter ido, e vez disso para Al Pacino por Um Perfume de Mulher (foi uma compensação, diz ela, pelos dois primeiros filmes da saga PadrinhoSerpico e especialmente Um Dia de Cão – um dos filmes favoritos de Lee). 

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