Ainda sobre a decisão de deslocalizar o Infarmed

Não vislumbro nenhuma boa razão para alterar o que tem funcionado bem nos últimos 25 anos.

A decisão de deslocalizar a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, Infarmed, I.P. de Lisboa para o Porto apanhou todos de surpresa, incluindo as entidades reguladas, os colaboradores internos e externos do Infarmed e o seu Conselho Diretivo.

As justificações que têm vindo a público não colhem pela falta de racionalidade e de consistência. O argumento de que seria vantajoso ter no mesmo espaço geográfico a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e o Infarmed I.P. não é suportado em nenhum tipo de evidência, a começar pelas atribuições consignadas nas respetivas leis orgânicas. Seguramente que todas as pessoas de bom senso aceitarão que não é a distância física de 300 Km que impede as duas entidades de colaborarem, particularmente num tempo em que não há distância quando falamos de tecnologias da comunicação e informação.

Tem também sido argumentado que o Infarmed tem de estar junto da indústria farmacêutica e esta está no Norte. Não negando a importância do sector farmacêutico nacional, recordo que o Infarmed regula outras áreas e entidades igualmente importantes e que grande parte da sua atividade se desenvolve a nível europeu e que os principais clientes são a indústria farmacêutica internacional. Por outro lado, ainda ninguém demonstrou que o facto de o Infarmed ter estado sedeado em Lisboa desde a sua criação impediu ou limitou o desenvolvimento do sector farmacêutico nacional. Estou em crer que para a indústria farmacêutica nacional ou internacional (e suspeito que também para os laboratórios localizados no Norte) é completamente indiferente se a Agência Nacional do Medicamento se situa em Lisboa ou no Porto!

Não vislumbro, assim, nenhuma boa razão para alterar o que tem funcionado bem nos últimos 25 anos. Pelo contrário, existem vários argumentos contra a mudança anunciada, e apresentarei apenas dois.

Uma tal alteração na vida da instituição em causa, por muito programada e faseada que seja, terá sempre impacte negativo na sua atividade de regulação, que se quer atenta, permanente e eficaz. Terá impacte significativo na atividade de avaliação a nível internacional, colocando em risco uma atividade altamente especializada e rentável para o país. A perda de capacidades e competências se, como parece, muitos dos colaboradores optarem por não acompanhar a instituição, demorará pelo menos uma década a recuperar, para atingir o nível de especialização e de treino que atualmente se verifica.

Do ponto de vista financeiro, será necessário um investimento considerável para replicar no Norte o que já existe no Sul. Veja-se o exemplo do Laboratório de Comprovação de Qualidade, indispensável para que o Infarmed I.P. possa cumprir a sua missão, e cuja construção e apetrechamento custou ao erário público muitos milhões de euros, mesmo a preços de 1999. Fica em Lisboa? Vai ser construído um novo no Porto?

Independentemente dos desenvolvimentos que venham a verificar-se após esta tomada de decisão, e espero que o bom senso se imponha e que a mesma seja revista, são já evidentes consequências negativas.

Em primeiro lugar, foi criada uma enorme instabilidade junto dos colaboradores do Infarmed. Quem conhece bem a instituição sabe que são colaboradores muito competentes, dedicados, que desenvolveram competências ao longo de anos de experiência prática no terreno, a nível nacional e internacional. Na verdade, o principal capital do Infarmed são as pessoas. São elas que todos os dias contribuem para que o Infarmed hoje detenha um elevado capital de credibilidade a nível do sistema europeu do medicamento. Acreditar que são facilmente e rapidamente substituíveis mostra um profundo desconhecimento da realidade.

Depois, a intempestividade da decisão e a ausência de justificações credíveis para a mesma não contribuem para dissipar na opinião pública o sentimento de que o Infarmed começou a ser usado como prémio ou moeda de troca em negociações políticas mais ou menos opacas. Até ao momento, o poder político tem respeitado sempre a independência e autonomia técnica do Infarmed. A par da demonstração inequívoca de transparência nas decisões, a independência técnica é um atributo fundamental na atividade de uma autoridade reguladora com intervenção numa área tão complexa e tão sensível para a saúde dos cidadãos, como é a área do medicamento e dos produtos de saúde.

Embora seja difícil avaliar o impacte da decisão a nível internacional, é preciso ter presente que uma das áreas de grande importância na atividade do Infarmed é a avaliação de pedidos de entrada de medicamentos no mercado europeu. Desta atividade resulta a entrada nos cofres do Estado de algumas dezenas de milhões de euros anualmente. Portugal detém hoje o 4.º lugar no ranking europeu como Estado-membro de referência na avaliação de procedimentos de autorização de medicamentos fruto, em grande parte, da visão estratégica desenvolvida ao longo de anos e também da qualidade da sua avaliação técnico-científica. Os clientes do Infarmed são essencialmente laboratórios da indústria farmacêutica internacional. Num contexto fortemente competitivo, quaisquer dúvidas sobre a capacidade do Infarmed poder continuar a assumir os seus compromissos ou sobre a qualidade da avaliação pode deitar a perder “a galinha dos ovos de ouro”.

Finalmente, a decisão, particularmente na forma e no contexto em que foi tomada, veio acirrar ainda mais a disputa entre Norte e Sul, nos aspetos mais negativos que a mesma tem revestido. Sou a favor da descentralização. Posso ter dúvidas sobre a melhor forma de a fazer. Mas uma coisa é certa: não é desta forma, seguramente.

O grande problema das decisões intempestivas e irrefletidas, como tudo leva a crer aconteceu neste caso, é que uma vez tomadas são difíceis de remediar, pelo menos sem um enorme custo para todas as partes envolvidas e sem algum sofrimento para as pessoas que, mais tendo contribuído, acabam por ser as mais lesadas.

Infelizmente temos em Portugal vários exemplos recentes do que acabo de afirmar. Pena é que tenhamos tanta dificuldade em aprender!

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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