A paixão como coisa ilógica, mortal

A Porta, da húngara Magda Szabó, é um dos mais belos e perturbantes livros publicados este ano em Portugal. A história impossível de duas mulheres, uma escritora e a sua criada, na sua impossibilidade de comunicar.

Foto
Magda Szabó constrói um livro que põe à prova cada leitor, obrigando-o a encarar-se na sua relação com o outro

Depois de ler A Porta, pode dizer-se, sem grandes hesitações, ser um dos mais belos romances europeus do século XX, da autoria de uma escritora sem mais obra publicada em Portugal. Magda Szabó, poeta, ensaísta, memorialista, romancista, uma húngara que nasceu há cem anos numa pequena cidade então parte do império austro-húngaro e morreu em 2007, com 90 anos.

Porque é que este livro produz um efeito tão perturbante e arrebatador em quem o lê?

Original de 1987, A Porta — vencedor do prémio Fémina para melhor romance estrangeiro em 2003, foi publicado pela D. Quixote em Portugal em 2006 numa tradução de Ernesto Rodrigues e adaptado ao cinema em 2012 por Iztvan Szabó  — centra-se na relação entre duas mulheres. A narradora, Magda, uma escritora com traços da própria Magda Szabo, e a sua desconcertante mulher-a-dias, a velha Emerence, “que, infelizmente era perfeita” e chegou até Magda e ao seu marido quando estes mudaram de casa e precisaram de ajuda nas tarefas domésticas. O regime comunista levantara a interdição e Magda podia voltar a escrever. “… a minha carreira, parada há dez anos, tomara outra direcção, e aqui, nesta nova morada, tornara-me escritora a tempo inteiro, com possibilidades acrescidas e inúmeras solicitações”, lê-se no início do livro, numa passagem que tem paralelo com a da própria Szabó, impedida de escrever e publicar durante os anos de domínio de Estaline.  

Emerence chega-lhe recomendada por uma conhecida e estabelece desde logo as regras em que se fundamentaria a relação com os patrões, sobretudo com a patroa: seria ela a decidir se fica ou não. “Não lavo roupa suja de qualquer um”, esclareceu aquela mulher “pouco faladora” que limpava várias casas do bairro, dona de uma energia interminável, que fugia da palavra política, desprezava a religião e chamava mandrião a qualquer ser que tivesse um trabalho que não exigisse esforço físico. Casos de Magda e do marido, um silencioso académico que parece inspirado no marido de Szabó, Tibor Szobotka, escritor e tradutor, entre muitos de James Joyce ou George Elliot. 

Emerence podia uma mulher da mitologia clássica, “a única habitante de um reino com uma só pessoa”. “Não lia jornais, não ouvia noticias. Não permitia que entrasse no seu mundo a palavra ‘política’, e nunca tinha uma lágrima, nem o coração a bater-lhe mais fortemente se acontecia, por acaso, dizer a palavra Hungria”. E se “todos confiavam em Emerence, Emerece não confiava em ninguém”; ninguém podia aceder ao seu mundo privado, a porta de sua casa era intransponível, o passado um mistério que Szabó vai revelando sabiamente a partir de uma frase de Magda logo no princípio de tudo. “Eu matei Emerence.”

São estas as palavras mágicas para o feitiço que irá crescer à medida que o romance avança e tomará conta do leitor. Magda, a escritora, escreverá essa relação, revelando parte da sua oficina de escrita; uma relação onde entram poucas personagens além de si própria e da criada, do marido, três velhas amigas de Emerence, um sobrinho longínquo, uma rapariga-mistério e um cachorro, que Magda e o marido encontram a morrer na neve numa noite de Natal e a que Emerence chamará de Viola, apesar de ser um cão. A chegada do cão e a doença do marido de Magda irão determinar a aproximação entre as duas mulheres e ao nascimento do que Magda designará de afecto. Foram precisos cinco anos, nos quais, com maior ou menor afinco Magda tentava furar o enigma Emerence conduzida pela força desse afecto improvável. “Segui-a com os olhos perguntando-me porque se agarrava a mim, quando era tão diferente dela, não percebia do que ela gostava em mim. Eu já escrevia, era ainda jovem, não analisara a fundo até que ponto a paixão é um sentimento ilógico, mortal, imprevisível, e, contudo, conhecia a literatura grega, que não representava mais do que as paixões, a morte, cujo machado cintilante é sustido pelas mãos enlaçadas do amor e da afeição.”

Uma mulher é o oposto da outra, uma e outra parecem não falar a mesma linguagem. É aí, nesse reduto onde a comunicação se assume como entrave, que Szabó joga a carta da sedução literária. Com Emerence e Magda a tactear por se entenderem em gramáticas à partida inconciliáveis, numa geografia doméstica criada pela autora de modo a explorar e aprofundar o íntimo ao mesmo tempo que revela a história de um país onde há um regime a definhar. Uma história que cruza com a tragédia pessoal de Emerence. “…qual poderia ser a memória da terra, quando recolhe tanto sangue, mortos, fracassos e sonhos…” Vale para a aldeia natal como para a país.

Socorrendo-se de clássicos como a Eneida, Medeia, a Bíblia, ou a filosofia de Shopenhauer, o cinema de E Tudo o Vento Levou, a poesia eslava. Magda Szabó constrói um livro que põe à prova cada leitor, obrigando-o a encarar-se na sua relação com o outro. Mas também com Deus, a política, a arte, a criação. Literária ou de carácter, com cada palavra a tentar ajustar-se a esse desajuste de que parece ser feita a paixão, intrinsecamente carregada de pathos, por vezes mortal, moldada por equívocos, viva nos silêncios, onde a agressão, como “em qualquer relação sentimental”, é sempre uma possibilidade. No sonho inicial de Magda, o sonho depois da morte de Emerence, há uma chave. A da porta de Emerence, a da verdade. Magda consegue-a. Valeu o quê?  

Correcção: Numa primeira versão deste texto era dito que este livro nunca tinha sido publicado em Portugal, no entanto foi editado pela Dom Quixote em 2006. 

Sugerir correcção
Comentar