“Viver à procura da redenção vai acabar por te matar”
O realizador Abel Ferrara, um dos convidados do Lisbon & Sintra Film Festival que termina este fim-de-semana, está em Lisboa e conversou com o PÚBLICO.
Abel Ferrara, 66 anos, é um dos cineastas em destaque na edição deste ano do Leffest – Lisbon & Sintra Film Festival, com uma retrospectiva praticamente integral. O realizador chegou a Lisboa esta sexta-feira para acompanhar os últimos dias do festival (sábado e domingo), ao longo dos quais o espectador ainda pode ver Alive in France e Piazza Vittorio (dois documentários recentíssimos) e títulos mais antigos como Linha de Separação/Dangerous Game, de 1993 (com Madonna e Harvey Keitel), e Vingança de Uma Mulher /Ms 45, do princípio dos anos 80.
Cineasta de Nova Iorque, cidade que abundantemente filmou, agora a viver em Roma, Ferrara é um cineasta do caos e do excesso, e das personagens caóticas e excessivas apanhadas entre a sua violência intrínseca e um desejo de redenção. Foi também – em Bem-vindo a Nova Iorque/ Welcome to New York, sobre o caso Strauss-Kahn – o autor de um dos filmes mais polémicos dos últimos anos, que, aliás, agora, em plena era Trump e sob o signo do caso Weinstein, tem uma ressonância muito mais ampla. Num cenário – um hotel com vista para a serra de Sintra — nos antípodas do típico habitat do cinema de Ferrara, o PÚBLICO falou com ele, numa conversa em que o movimentado espírito do cineasta abordou os temas mais diversos, de Donald Trump a Andy Warhol, passando pelo cristianismo e pelo budismo, de que Ferrara espera ter absorvido “as melhores partes”.
Então aqui está para uma retrospectiva da sua obra…
…ainda nem vi o programa… Que filmes é que vão mostrar?
Praticamente tudo, mas não tudo. Caça Grossa/Cat Chaser (1989), por exemplo, está de fora.
Ah, mas esse não conta [nota do entrevistador: Ferrara desentendeu-se com os produtores e afastou-se da montagem final]. Sabe que existe um “rough cut” desse filme, com a montagem que eu fiz antes de os produtores o terem destruído? Está nos Anthology Film Archives [em Nova Iorque].
Não sabia. Mas isso pode ser visto publicamente?
Bem, se for ao Anthology pode tentar…
OK. Mas o que eu ia frisar era o facto de estarmos num país europeu. Tenho a sensação de que é mais apreciado na Europa do que nos EUA.
Sim, mais ou menos… Há algum amor por mim na América, em Nova Iorque, sobretudo. Mas nos EUA não há coisas destas. Não fazem festivais que dêem esta importância a uma retrospectiva. Quando eu era novo, sim, agora não há. Toda a gente anda à procura da próxima moda, não há interesse em olhar para trás.
Agora vive na Europa, não é?
Em Roma, há dois anos.
E mudou-se porquê?
Quando andava a preparar o Pasolini, vivi muito entre Roma e Nova Iorque. E depois fizemos o Pasolini, eu conheci a Cristina, tivemos um filho… quer dizer, ela teve um filho… e foi assim. Mas foi bom para mim. Estava muito farto de Nova Iorque.
Essa mudança é interessante, porque nos seus filmes Nova Iorque é uma personagem, mais até do que um cenário, importante.
As pessoas de Nova Iorque, mais do que a cidade.
Lembro-me sempre daquele momento do filme que Rafi Pitts fez consigo [Abel Ferrara – Not Guilty, de 2002, inserido na série Cinéastes de Notre Temps] em que chegam a Union Square às tantas da madrugada e o Abel diz: “Dantes era aqui que acontecia tudo, e agora é um deserto…”
E agora ainda é pior… [ri-se]… O que se passa em Nova Iorque é que a cidade foi alvo de um take over corporativo, um take over internacional liderado por escroques internacionais, nomeadamente pelo escroque americano número 1 que se chama Donald Trump.
Como é a sua relação com a América agora? Com a política, com a sociedade?
Estou envolvido e interessado. Vivo em Itália, mas aquele é o meu país. E é um país triste, quer dizer, a liberdade é uma coisa por que tem de se lutar todos os dias, e toda a gente tem de se manter politicamente ligada e activa. Não pode haver apatia. Se houver, acontece isto: tipos destes chegam ao poder. E… para se liderar um país, tem de se exprimir compaixão, esperança, o sonho daquilo que a humanidade pode ser. Não se pode incentivar os piores instintos. Não é bom. Temos de estar firmes, toda a gente tem de estar firme. Quando o Obama foi eleito pela primeira vez, as pessoas tomaram muita coisa por garantida, começaram a viver numa ilusão. Não pode ser. Mas, enfim, até estou sobretudo a falar sobre mim próprio.
Só passaram três anos, mas Bem-vindos a Nova Iorque [filme directamente baseado no caso Strauss-Kahn] ressoa agora de maneira diferente e mais vasta. Estamos talvez mais atentos à ligações entre o poder e o dinheiro e aos abusos que daí advêm…
O poder, o dinheiro e a dependência do sexo…
A sua obra está cheia de personagens masculinas perturbantes, violentas, abusadoras – por exemplo a personagem de Harvey Keitel no Tenente sem Lei [1992]…
Outro viciado…
São figuras que tentou conscientemente explorar, que lhe interessam de modo especial?
Sim… Quer dizer, não sei sobre que mais fazer filmes… A redenção é um confronto diário… Eu agora sou budista, portanto, digo que é um assunto que se negoceia a cada inspiração. Temos de ser vigilantes e conscientes para viver uma boa vida, por oposição a uma vida primitiva. Está no ADN dos homens, vêem uma rapariga gira e “uau”! Mas não somos homens das cavernas, já não somos. Não há o direito de ir com uma moca trazer a miúda para fora da caverna. Temos de viver uns com os outros, ter compaixão uns pelos outros.
Não foi budista a vida toda, há muito imaginário e muito ideário cristão nos seus filmes.
Mas também há muito imaginário budista no cristianismo. O budismo apareceu uns quinhentos ou seiscentos anos antes do cristianismo, e tenho a certeza de que é uma filosofia a que Jesus Cristo esteve exposto. A gente encontra a espiritualidade onde a encontra, o budismo é uma filosofia, o cristianismo é uma religião, e eu espero ter absorvido as melhores partes de cada uma… [gargalhada].
“Redenção” é outra coisa que as suas personagens procuram muito – por exemplo, e para citar outro dos meus preferidos, o Matthew Modine de Sentiste a Minha Falta?/The Blackout [1997]…
Mas não se pode procurar a redenção. Encontra-se, reconhece-se, não se procura. Não é um momento mágico. Ou pode ser, mas tem de te conduzir ao momento seguinte – porque senão não acaba, não se põe fim à procura, e viver à procura da redenção vai-te matar e fazer-te sofrer a ti e aos que estão à tua volta.
Que é justamente uma coisa típica das suas personagens: sofrem e trazem sofrimento…
Pois, exactamente… Porque estão iludidos, porque querem muito uma coisa… Sabe, é preciso ver o mundo com clareza. Aquilo que me atraiu no budismo, e certamente por eu ser católico, é que o budismo diz que não estamos no mundo para sofrer. Compro essa ideia. E, portanto, se estamos a sofrer, é porque estamos iludidos. Se estamos a sofrer, precisamos de reavaliar o modo como estamos a viver. Toda a ideia do karma repousa nisto: tudo o que vai acontecer no futuro depende da tua próxima respiração ou do teu próximo pensamento. Se nos focarmos nisso, nas nossas acções, a probabilidade de nos magoarmos ou magoarmos alguém diminui. Mas, quer dizer, a certeza que eu tenho é que não vimos ao mundo para nos matarmos e violarmos uns aos outros.
Um dos seus primeiros filmes, Driller Killer (1977), é sobre um assassino, mas também é um olhar muito irónico sobre o art world nova-iorquino da altura. Quão envolvido esteve nesse mundo?
Estava lá, completamente. Isso era Nova Iorque, 1977, eu vivia do outro lado da rua da Factory, conhecia o Andy [Warhol] só de o ver pela janela. Invadíamos a Factory, ocupávamo-la. Não tínhamos dinheiro, éramos “desperados”, mas aqueles tipos estavam lá todos, o Basquiat, o Keith [Haring], e era fácil… Envolvimento total. Éramos novos, zangados, pedrados…
Quando vi 4.44 – Último Dia na Terra, pensei que era menos um filme sobre o fim do mundo do que uma carta de despedida a essa Nova Iorque…
Sim, sim… Sabe, esse filme foi mais uma maneira de contar um dia na vida. Um dia na minha vida, na vida da Shanyn [Leigh, actriz do filme], que era a minha namorada. Mas percebo o que está a dizer. O fim do mundo, o fim de Nova Iorque… Sim, sim.
Os seus actores são sempre presenças muito singulares. Têm sempre qualquer coisa, na maneira de estar em cena, que é ao mesmo tempo muito livre e muito tensa, muito cerrada. Como é que trabalha com eles? Como é que se consegue que o Harvey Keitel, por exemplo, faça aquilo que faz no Tenente sem Lei?
Eu não faço nada de especial, quer dizer, somos todos profissionais, eles são actores profissionais, estou sempre a contar que eles tragam alguma coisa. Não é uma coisa que possa ser discutida, resulta da confiança e do respeito entre todos. Esse filme foi a primeira vez que trabalhei com Harvey e… quer dizer, tem de se criar um ambiente seguro e confortável, porque todos sabem que vamos à procura do ouro, e que queremos todos dar o melhor de nós próprios. Ao fazer um filme tenho muita coisa na cabeça, mas os actores é com o que me preocupo menos, porque confio neles. E o Harvey… aposto que você nunca o viu a não ser magnífico, ele é sempre magnífico. Quando revejo esse filme, não vejo a personagem, vejo-o a ele. Willem [Dafoe] no 4.44 é a mesma coisa. Ou a Lili Taylor [em Os Viciosos/The Addiction].
Mas às vezes improvisa mais do que noutras, não? Um filme como New Rose Hotel, com aquela estrutura estranhíssima, cheia de repetições…
Depende do que está no argumento, depende de como o argumento está construído… Por acaso em New Rose Hotel havia um argumento, mas eu filmei directamente a partir das páginas do conto do William Gibson. Era uma história de sete páginas, e eu tentei ficar o mais próximo possível delas. Portanto, é um caso em que, sim, passei um pouco por cima do argumento.
Começámos por falar do caso infeliz de Cat Chaser. Tem outros casos semelhantes?
A essa escala não. Aí, o filme que eu queria fazer foi totalmente destruído. Em Fear City/Nova Iorque, 2 Horas da Manhã o final foi destruído também, ou mais ou menos… Mas, sabe, isto são coisas que uma pessoa só deixa acontecer uma vez. Sim, Cat Chaser fugiu-me do controlo. Mas não voltei a deixar que isso acontecesse.
Quando vejo o Driller Killer, não consigo deixar de pensar nele, talvez estupidamente, como uma resposta underground ao Taxi Driver de Martin Scorsese…
…olhe que por acaso isso não anda muito longe da verdade…
…mas onde queria chegar com isto é ao facto de serem ambos italo-americanos, com fundo católico, nova-iorquinos, mas passarem ideias da cidade, e até ideias de cinema, muito diferentes, quase como se não houvesse comunicação.
Conheço mal o Martin, mas temos uma boa relação, ele é um homem muito gentil. Mas não temos muito em comum, de facto... Ele é mais velho uns anos, talvez seja isso. Não sei, nunca convivemos muito, por alguma razão. Talvez por os realizadores não serem pessoas de andarem por aí a confraternizar uns com os outros, a sair à noite, etc. No meu caso, é dos actores que me sinto próximo. O Christopher Walken, agora o Willem Dafoe… são meus amigos. É dos actores que sou amigo e são os actores que são meus amigos.