O livro mais importante que li este ano
O que mais impressiona em Contra a Barbárie é a clareza moral da revolta de Klaus Mann.
Um dia encontrei esperando por mim um envelope num local onde eu iria ter uma reunião. Destinatário, era eu. Remetente, não constava. Lá dentro, vinha um livro: Contra a Barbárie. Autor, Klaus Mann.
O apelido é conhecido: trata-se do filho do célebre escritor Thomas Mann (e sobrinho de outro romancista importante, Heinrich Mann). Klaus Mann era um jovem jornalista e escritor quando os nazis subiram ao poder na Alemanha, em 1933. Contra a Barbárie é uma recolha de escritos dispersos seus que vão desde o início dessa década até à derrota da Alemanha nazi na II Guerra Mundial. O que mais impressiona neste livrinho é a clareza moral da revolta de Klaus Mann, não só contra o fascismo mas também contra as ambiguidades da geração mais velha de intelectuais alemães.
Um exemplo é o da discussão entre Klaus Mann e o escritor austríaco Stefan Zweig, muito mais famoso então e agora. Uma das razões porque Zweig é um escritor tão procurado hoje é pela história da sua fuga e oposição ao nazismo, em nome de um cosmopolitismo democrático europeu, até ao suicídio em 1942 em Petrópolis, no Brasil. O que muitas vezes não se sabe é que Zweig demorou tempo até encontrar a sua voz na oposição ao nazismo. Quando os nazis se aproximaram do poder, com um bom resultado em 1931, Zweig viu com alguma compreensão a “revolta contra a lentidão” da política europeia — nas áreas do desarmamento e do perdão de dívidas à Alemanha — que tinha motivado algum do voto em Hitler, nomeadamente entre os jovens. É aí que Klaus Mann escreve uma carta magoada ao seu ídolo literário, criticando integralmente o nacional-socialismo, desmontando a hipocrisia das suas críticas à “política europeia” (então de Genebra e da Sociedade das Nações) e repudiando a sua própria geração. Dois parágrafos apenas:
“As coisas em Genebra evoluem devagar, horrivelmente devagar. Nós seríamos os primeiros a saudar qualquer política mais radical — radical num sentido positivo. Mas como é que se pode considerar simpático um radicalismo que vai ao ponto de se opor ao pouco que a geração anterior conseguiu construir? O Senhor, Stefan Zweig, diz: ‘O ritmo de uma nova geração revolta-se contra o do passado.’ Se fosse só isso! Mas parece-me, pelo contrário, que os mais jovens pensam que o ritmo dos mais velhos levaria a uma catástrofe demasiado devagar. Eles querem que a sua querida catástrofe e a ‘batalha logística’ com que os seus histéricos filósofos sonham cheguem mais depressa. Tem alguma lógica apelar a uma guerra revanchista e a um banho de sangue por o desarmamento não ser decidido mais depressa? É pura perversidade. E eu recuso toda e qualquer forma de perversidade em política.”
“Por isso, Stefan Zweig, repudio perante si a minha própria geração, ou pelo menos aquela parte dela que o Senhor veio desculpar. Qualquer aliança entre nós e essas pessoas não é, sequer, imaginável; elas seriam, aliás, as primeiras a repelir, à paulada, qualquer aproximação nossa. A psicologia permite-nos compreender tudo, até as pauladas, mas eu não quero praticar esse tipo de psicologia... Devo afirmar — embora isso vá frontalmente contra a minha honra de escritor — que o fenómeno de neonacionalismo histérico não me interessa. Considero-o pura e simplesmente perigoso. É nisto que consiste o meu radicalismo.”
O livro, publicado em Portugal pela Gradiva, vale desde logo por essa carta (embora as reportagens sobre a Alemanha derrotada sejam também extraordinárias). Mas por que razão é o livro mais importante que li este ano? Basta os excertos acima para entender que há tantas diferenças como semelhanças entre a realidade que ele descreve e a nossa. Não é, pois, por ser um livro que “tem lições para o nosso presente” que ele me interessa principalmente. É antes por ser um livro que não foi escrito para o futuro mas para o seu próprio tempo, trazendo todas as dúvidas, certezas e raivas de alguém que dá tudo por salvar a civilização em que acredita. E isso é mais vivo do que o livro de um escritor a tentar entrar no Panteão. É por essa razão que Contra a Barbárie, que se lê no tempo de uma viagem de autocarro, é ainda hoje um documento imperdível.
Klaus Mann lutou pela derrota do nazismo e sobreviveu para a ver chegar. Em 1949, num hotel em Cannes, suicidou-se — como fizera durante a guerra o ídolo a quem tivera de criticar, Stefan Zweig.