Nós e os neandertais, uma relação de avanços e recuos

Por causa do rio Ebro, a reprodução entre os neandertais e os humanos modernos ocorreu a ritmos diferentes no Sudeste da Península Ibérica e no resto da Europa. É a conclusão de um artigo científico que tem como principal autor o arqueólogo João Zilhão.

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Gruta Antón (Espanha), onde se estudaram materiais de neandertais até 37 mil anos João Zilhão

Hoje já não restam dúvidas: fizemos guerra e amor com os neandertais, outra espécie humana. Mas se a ciência ainda não conseguiu descrever como aconteceram mesmo essas relações, os cientistas realçam agora que foram complexas. Num artigo na revista científica Heliyon, que tem como principal autor João Zilhão, conclui-se que há uma diferença de cerca de três mil anos no cruzamento dos neandertais e da nossa espécie entre o Sudeste da Península Ibérica e o resto da Europa. Num congresso em Lisboa, o arqueólogo lembrou agora que nem sempre tratámos bem estes nossos antepassados.

Esta quarta-feira ao fim da tarde, o pequeno auditório do Museu Arqueológico do Carmo (em Lisboa) esteve cheio para ouvir João Zilhão na sua maior especialidade: os neandertais. Era esse o tema da conferência inaugural do II Congresso da Associação dos Arqueólogos Portugueses, que decorre até domingo: Neandertal”. Neste tema tão abrangente, João Zilhão avisou: “Vou avançar com alguns desenvolvimentos recentes dos nossos antepassados em resultado da actividade arqueológica em que estive envolvido.”

Começou pelo início de tudo: a descoberta do primeiro fóssil de um neandertal numa gruta no vale de Neander, na Alemanha, nos finais do século XIX. Depois, foram aparecendo mais exemplares. Na altura, eles foram encarados como “aquilo que já não somos” e não como “nossos antepassados”, disse João Zilhão. Acrescentou depois ao PÚBLICO: “Na maior parte do tempo foram tratados como os brutos que nós não somos.”

Esta noção passou para o público em geral. O arqueólogo deu como um dos exemplos o filme The Neanderthal Man (1953), em que um professor universitário descobre um elixir mágico para transformar as pessoas em neandertais e ele próprio provou desse líquido. Acaba por transformar-se numa “besta com institutos assassinos” e encurralado numa gruta por cowboys, que o matam. “É perigoso um professor universitário ter certas ideias sobre os neandertais”, brincou João Zilhão, agora na Universidade de Barcelona. A audiência riu-se.

Avançando no tempo (e nas várias teorias): o arqueólogo introduziu os geneticistas nesta história. Por exemplo, referiu que os neandertais que descobriu, já neste século, que tinham a forma moderna do gene FOXP2, o que lhes conferia a possibilidade de terem fala e linguagem. Contudo, a arqueologia também foi inimiga dos neandertais e elaborou “hipóteses falsificáveis” para mostrar que eram diferentes de nós, e que não teriam tecnologias sofisticadas (como o sílex) ou objectos de adorno pessoal.

“A maré começa a mudar com uma série de descobertas”, nota João Zilhão. E fala da sepultura de uma criança com cerca de 25 mil anos que ficaria conhecida como “Menino do Lapedo” no abrigo do Lagar Velho, em Leiria. “Nas características anatómicas do esqueleto concluía-se que ela apresentava uma mistura com traços de neandertais e de modernos [a nossa espécie]. A equipa que o estudou [da qual faz parte] atreveu-se a expressá-lo.”

Mais descobertas do género vieram ao de cima, como no sítio de Pestera cu Oase nos montes Cárpatos (Roménia). Esta “mistura” entre neandertais e humanos modernos acabou por ser mesmo confirmada quando, há uns anos, foi sequenciado o genoma do neandertal. Agora que já com dois genomas de elevada qualidade descodificados sabe-se que temos no nosso genoma 2 a 4% de neandertal. Também as provas arqueológicas se foram amontoando, como vestígios dos recursos aquáticos e das lareiras usados por esta espécie, que surgiu há cerca de 400 mil anos na Europa e no Médio Oriente e se extinguiu há 28 mil anos na Península Ibérica.

Uma barreira no Ebro

No novo artigo científico, João Zilhão e cientistas espanhóis, alemães, austríacos e italianos sugerem que o processo de cruzamento dos neandertais com os humanos modernos não foi estável, mas feito de avanços e recuos. “Chama-se à atenção para esta coisa de os neandertais viverem na Eurásia e ter havido um processo [de cruzamento] longo, complexo e arrastado ao longo de milhares de anos, durante o qual em determinadas zonas continuaria a haver populações de neandertais, noutras populações misturadas e outras, ainda, habitadas por neandertais e populações misturadas. Pode ter havido situações deste tipo, com avanços e recuos”, descreve o arqueólogo. 

O artigo baseia-se em escavações em três sítios arqueológicos no Sudeste de Espanha, muito próximos entre si: Gruta Antón, Finca Doña Martina e Abrigo de La Boja. Através da datação em radiocarbono ou da estratigrafia, percebeu-se que há materiais de neandertais com até 37 mil anos nesses sítios. Depois, concluiu-se que o cruzamento entre a nossa espécie e os neandertais tem uma diferença de três mil anos entre as zonas do Sudeste da Península Ibérica (aconteceu há 37 mil anos) e o resto da Europa (ocorreu entre há 42 e 40 mil anos). Por que é que os humanos modernos chegaram mais tarde a esta parte da Península Ibérica? Por causa da geografia do rio Ebro (em Espanha), entre outros factores, o que foi uma barreira à migração que teve de ser ultrapassada. 

Com tudo isto, João Zilhão diz que nos últimos 30 anos o estudo da evolução humana nesta região da Europa teve avanços, mas ainda é preciso descobrir e analisar novos sítios arqueológicos. “Aqui está a chave de muitos problemas da evolução humana na Europa.” E como a sua especialidade tem sido os neandertais, o arqueólogo terminou assim a apresentação no congresso: “Neanderthals R Us”, ou, como quem diz, os neandertais somos nós. 

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