Nas vésperas da chegada do Papa houve acordo para regresso dos rohingya
Birmânia e Bangladesh disseram ter um plano para o retorno dos refugiados. Papa Francisco chega segunda-feira à Birmânia, uma das mais delicadas viagens do seu pontificado.
A Birmânia e o Bangladesh anunciaram a assinatura de um acordo para permitir o regresso a casa de centenas de milhares de muçulmanos rohingyas que cruzaram a fronteira para escapar à onda de violência provocada pela intervenção do Exército birmanês no estado de Rakhine – denunciada por organizações de defesa dos direitos humanos e pela comunidade internacional como uma operação de limpeza étnica daquela minoria.
A assinatura do acordo – do qual não foi divulgado nenhum detalhe concreto, nem em termos de datas, nem de procedimentos para o retorno dos refugiados – antecede a chegada à Birmânia do Papa Francisco, que no domingo será o primeiro pontífice a visitar o país onde 90% da população de 51 milhões é budista e os católicos formam a minoria dos cristãos (cerca de 700 mil).
Antes de deixar o Vaticano, o Papa reviu a sua agenda para acrescentar dois encontros ao programa preparado para a cidade de Rangum, onde celebrará uma missa campal: um com o general Ming Aung Hlaing, o poderoso chefe do Exército nacional, e outro com representantes das várias religiões presentes na Birmânia: budistas, hindus, muçulmanos e baptistas. Francisco reunirá também com a conselheira de Estado e líder de facto do Governo, Aung San Suu Kyi, na capital Nepiedó.
Será uma das viagens diplomaticamente mais delicadas do pontificado de Francisco. “Tenho uma grande admiração pelo Papa e as suas capacidades, mas penso que alguém o devia ter desaconselhado de fazer esta visita. Ele arrisca ou comprometer a sua autoridade moral, ou pôr em risco a população cristã daquele país”, escreveu o influente analista do Religion News Service, Thomas Reese.
A “delicadeza” da missão de Francisco fica patente nos conselhos que recebeu do cardeal de Rangum, Carles Bo, que pediu ao Papa para evitar sequer pronunciar a palavra “rohingya” nos seus encontros oficiais, para não criar um incidente diplomático. Tanto Suu Kyi como o chefe Exército da Birmânia desmentem que a sua campanha militar no estado de Rakhine, em Agosto, tenha constituído uma “limpeza étnica”. Mas ainda esta quarta-feira, o secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, ameaçou o país com sanções para punir “atrocidades horrendas” cometidas pelo Estado contra os rohingya.
O Papa já por duas vezes alertou para o sofrimento da minoria rohingya a partir do Vaticano, condenando a sua perseguição e apelando ao reconhecimento dos seus direitos. Numa mensagem em vídeo divulgada antes da chegada a Rangum, Francisco diz que a sua esperança é que a sua visita possa contribuir para a “reconciliação, perdão e paz”, encorajar a harmonia e cooperação e “aprofundar os valores do evangelho de dignidade para todos os homens e mulheres”.
Da Birmânia o Papa segue para o Bangladesh, onde vai reunir com um pequeno grupo de refugiados rohingya, no âmbito de um encontro inter-religioso pela paz, em Daca.
Segundo a BBC, o Governo do Bangladesh, para onde fugiram cerca de 600 mil pessoas desde o mês de Agosto, descreveu o acordo firmado com o país vizinho como “um primeiro passo” para a solução da crise dos rohingya. Antes da última vaga de violência, já mais de 400 mil rohingya tinham procurado abrigo no Bangladesh: a pressão estava a aumentar sobre Daca para travar o fluxo e impedir que os refugiados se tornassem residentes permanentes.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Bangladesh admitiu que os dois países ainda estavam a “ultimar” os detalhes do acordo, e estimou que num prazo de dois meses os refugiados poderiam ser reenviados para a Birmânia. “Estamos prontos a recebê-los de volta assim que for possível, mal o Bangladesh nos faça chegar os seus registos”, garantiu à Reuters um responsável do Ministério do Trabalho, Imigração e População da Birmânia, referindo-se à documentação que os rohingya tiveram de preencheram para obter o estatuto de refugiados.
No entanto, as organizações internacionais duvidam que existam condições de segurança para o regresso daquela população, alvo de perseguição e discriminação pela Birmânia, que não os reconhece como seus cidadãos. A Amnistia Internacional, que denunciou o “sistema de apartheid” praticado pela Birmânia contra os rohingya e acusou o Exército nacional de crimes contra a humanidade no estado de Rakhine, manifestou a sua perplexidade e preocupação pelo acordo negociado não ter contado com a participação das Nações Unidas ou outras agências internacionais. “Não há nenhuma garantia de que se trata de um repatriamento voluntário e de acordo com os critérios internacionais”, reagiu a Amnistia, sublinhando que os refugiados “não podem ser forçados a regressar a casa”.
Para os rohingya no Bangladesh, não existem dúvidas nenhumas: como escrevia a BBC, não querem voltar e “estão aterrados” com a perspectiva de serem repatriados para a Birmânia. “Não confio no Governo birmanês”, resumia à Reuters uma refugiada identificada apenas pelo primeiro nome Narusha, agora instalada no campo de refugiados de Kutupalong. “Só aceitamos voltar se deixarmos de ser perseguidos e pudermos viver a nossa vida tranquilamente como os budistas ou as outras minorias étnicas”, disse Sayed Hussein àquela agência.