Ruben Östlund, Palma de Ouro em Cannes: “Não devemos esquecer que somos animais...”

O Quadrado, Palma de Ouro em Cannes, é uma nova “experiência laboratorial” que quer colocar o espectador em xeque. Depois de Força Maior, o realizador sueco continua a desmontar implacavelmente as fachadas das expectativas sociais.

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Um dos objectivos desta cena era ver um público bem vestido confrontado com um artista — ao mostrar o filme em Cannes criou um segundo nível, com outra audiência bem vestida a olhar para uma audiência bem vestida...
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Ruben Östlund (n. 1974) não brinca em serviço. Quando o seu filme anterior, Força Maior (2014), fez parte da shortlist para as nomeações do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro, filmou-se, a si e ao seu produtor, a acompanhar em directo o anúncio dos cinco nomeados finais. Força Maior não fazia parte deles. Cinco minutos mais tarde Östlund tinha um ataque de pânico, mas continuou a filmar e deixou tudo no YouTube para toda a gente ver. Tem tudo que ver com a sua abordagem ao cinema – que ele define como criar experiências laboratoriais para confrontar o espectador, “encostar o espectador à parede e perguntar-lhe: ‘E agora?’” Como quem diz que não se deixa de fora desse desafio.

A história do YouTube decorreu no início de 2015 e, há seis meses, o sucessor de Força Maior, O Quadrado, saiu de Cannes com a Palma de Ouro atribuída pelo júri presidido por Pedro Almodóvar. A Palma de Ouro dividiu as opiniões, e isso não incomoda minimamente Östlund. “Estou muito habituado a isso”, diz ao Ípsilon, acabado de aterrar em Lisboa para uma viagem-relâmpago que o viu apresentar O Quadrado em antestreia no Lisbon & Sintra Film Festival (o filme chega às salas já esta quinta-feira). “Quando fiz a minha primeira longa-metragem, The Guitar Mongoloid (2004), metade dos críticos suecos disseram que era o pior filme sueco do ano, e a outra metade que era o melhor filme sueco do ano. Não vejo nenhuma razão para comunicar uma coisa com que toda a gente está de acordo. Para quê? De que é que serve repisar aquilo com que todos concordamos?” A unanimidade (crítica e de público) de Força Maior, história de família em crise durante férias na neve devido ao comportamento cobarde do pai, foi a excepção que confirmou a regra — “o filme consensual com o qual toda a gente podia concordar porque decorria no interior de uma família nuclear”.

As reacções a O Quadrado estão muito mais próximas do que Östlund esperaria, seguindo a queda em desgraça de Christian (Claes Bang), poderoso curador de arte num museu sueco. Tudo começa com o roubo do seu telemóvel e da sua carteira, que lança uma mecânica do desastre, filmada de modo escandinavamente metódico e inexorável, simultaneamente angustiante e inacreditável, com laivos de humor negríssimo. (Östlund não rejeita comparações a Michael Haneke, e admite gostar de Lars von Trier: “Talvez seja verdade que sou um pouco manipulador, mas também quero que as pessoas entrem nos meus filmes e gostem deles.”)

Através de Christian e da exposição que preside a todas as suas desgraças (precisamente num quadrado delimitado na praça à entrada do museu como um santuário de entreajuda), Östlund também questiona (com maior ou menor frontalidade e um prazer escarninho, paredes meias com o condescendente) a humanidade, a distribuição da riqueza, a nossa relação com o outro, o contrato social, a pressão do grupo. O mundo hiper-rarefeito da arte contemporânea em que tudo se passa, como o realizador insiste, é puramente um cenário como outro qualquer para esta nova experiência laboratorial, sociológica – mas que, para Östlund, não pode ser levada cem por cento a sério. “Muita gente diz-me que eu pareço querer castigar as minhas personagens, mas não entendo isso. Estou a fazer uma ficção! Não estou a castigar ninguém, nada disto é real. E através disto podemos investigar algo que nos leva ao conhecimento sobre nós próprios e sobre a sociedade.” Discurso directo de um cineasta que se descreve como “materialista e marxista”.

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A abordagem ao cinema de Ruben Östlund: criar experiências laboratoriais para “encostar o espectador à parede e perguntar-lhe ‘e agora?’” Maarten de Boer/Getty Images

A instalação do Quadrado existe na realidade desde 2014, quando a apresentou num museu sueco. Nessa altura, já tinha um filme em mente?
A ideia, na verdade, apareceu em 2011, quando fiz o meu filme Play, que era sobre miúdos que intimidavam e roubavam outros miúdos. Os assaltos que o inspiraram decorreram em pleno centro de Gotemburgo, onde moro. Embora houvesse muitos adultos à volta, ninguém fazia nada. A ideia do Quadrado era tentar criar um novo contrato social em que olhamos uns para os outros com confiança e responsabilidade. Depois de acabar a rodagem de Força Maior lembrei-me de criar esse local simbólico e de fazer um filme sobre essa ideia, embora não soubesse bem como.

A instalação foi uma espécie de prelúdio ao filme?
Sim. E ao mesmo tempo fomos convidados pelo museu de Värnamo, onde instalámos o primeiro Quadrado, que acabou por se tornar de algum modo um movimento – tornou-se um lugar que as pessoas usam para se manifestarem a favor de acções humanistas. Agora já há quatro – dois na Suécia e dois na Noruega.

O filme parece levar a sua estética de provocação ao espectador um passo adiante do que fez anteriormente.
Acha que sim?… Talvez… [pausa] Gosto de levar as pessoas a pensar e para as provocar é muito eficaz dar a volta ao consenso para levar as pessoas a perguntar: “E agora?” As minhas personagens são um bocado ratinhos de laboratório, estão lá para mostrar uma situação que nos pode levar a perceber algo.

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Já em Força Maior elas pareciam estar perdidas nos enormes labirintos do hotel…
[Risos] Exactamente.

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E aqui é a mesma coisa. Como quando estão a olhar fixamente para o ping do telemóvel roubado.
Acho que isso vem de eu próprio olhar para essas situações e perguntar-me o que faria nelas. Há um lado de estímulo intelectual, e ao mesmo tempo uma descarga de adrenalina. Mas, repare, as pessoas conseguem olhar para a violência sem problemas nenhuns. Assim que entramos numa questão moral desconfortável, não conseguem lidar com isso...

Como na cena do espectador com síndroma de Tourette, em que o dilema passa do palco para o público?
[Risos] Essa cena foi inspirada por algo a que eu próprio assisti quando fui ao teatro em Estocolmo. Eu estava sentado na parte de trás da plateia e de repente há alguém que bate palmas e faz “ch”. De repente, toda a gente pensa: “O que foi aquilo?” E um pouco mais à frente a pessoa volta a bater palmas e faz “aaaaah”. Na verdade, essa pessoa era conhecida do pessoal do teatro, porque costumava ir assistir a peças. Davam-lhe luvas para não fazer tanto barulho e avisavam os actores: “Hoje está cá o senhor do Tourette.” Era um teatro estatal e ele tinha todo o direito de ver uma peça, mesmo sofrendo de uma deficiência. Achei uma maravilhosa lição de tolerância e uma manifestação das fronteiras da tolerância: ele está a dar cabo da experiência para os outros, ou devemos aceitá-lo, apesar de testar a nossa tolerância?

É legítimo perguntar-lhe se acha que essa tolerância está ligada ao conforto material. Christian tem dinheiro, guia um Tesla, mora num apartamento luxuoso... E quase não dá pelos pobres que povoam a cidade.
Não creio na verdade que as pessoas mais ricas sejam as mais intolerantes [pausa]. Mas talvez tenha razão, porque agora estou a fazer-me a pergunta. [sorri] É verdade que uma pessoa se habitua ao conforto de um hotel, de um voo, etc. Quando nos habituamos a que alguém tome conta de nós, tornamo-nos um pouco mais ignorantes. Mas pensei sobretudo no modo como representamos os pobres no cinema, que é muito sentimental e não é forçosamente verdade: os pobres são mais solidários uns com os outros, etc. Não quis retratar os pobres de um modo sentimental, nem criticar as classes altas. Acho apenas que todos nos comportamos de acordo com a posição que temos na sociedade, ao longo de uma hierarquia económica. Pensamos em nós próprios como indivíduos livres, independentemente do contexto em que vivemos, mas a verdade é que estamos completamente dependentes desse contexto. Quando vejo um pedinte na rua, sinto-me impotente. Sei que não consigo ajudar esta pessoa. Posso talvez dar-lhe algum dinheiro, mas é uma ajuda a curto prazo… E esse é um problema que não estamos a discutir ao nível da sociedade. Na sociedade escandinava, o Estado não estava a tomar conta das pessoas mais vulneráveis, reduziu tudo ao nível do indivíduo, o que não tem nada que ver com a tradicional sociedade social-democrata escandinava. E habituámo-nos muito rapidamente a pensar: “Dou ou não dou? E isso faz de mim uma pessoa boa ou uma pessoa má?”

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Quis questionar a correcção política?
Para mim a correcção política não é forçosamente má.

Mas passa o filme a desmontá-la.
Porque adoro dilemas! Se tiver duas opções e nenhuma delas for fácil, dou por mim encostado à parede. Por exemplo, a cena em que uma pedinte no café pede dinheiro a Christian. Ele diz: “Não tenho dinheiro, mas posso comprar-lhe algo para comer.” E ela responde: “Ciabatta de galinha!” Uma pedinte que se recusa a estar numa posição inferior, que não aceita o seu papel de pedinte, cria um problema. Estou sempre a preparar armadilhas às personagens. Como a sociologia, que é maravilhosa, porque está sempre a preparar armadilhas aos seres humanos, e, quando falhamos, diz-nos: “Veja o modo interessante como falhou!”

A cena da performance ao jantar é central para o filme, porque questiona a fronteira entre a civilização e o primitivo. É esse o equilíbrio que procura, entre a experiência laboratorial e a espontaneidade da reacção?
Não devemos esquecer que somos animais, com instintos e necessidades – que estão constantemente em luta com a cultura em que vivemos e com as expectativas que temos enquanto pessoas civilizadas. É nesse conflito que acontecem coisas interessantes. Um dos objectivos dessa cena era ver um público bem vestido confrontado com um artista e mostrar o filme em Cannes em concurso criava um segundo nível, com outra audiência bem vestida a olhar para uma audiência bem vestida... Mas se se lembrar da introdução em off à performance, “Você vai ser confrontado com um animal selvagem”, essa introdução sublinha a razão pela qual ficamos paralisados quando estamos com medo: somos animais sociais, de grupo. E não querermos ser os mais fracos que vão ser levados pelo predador.

Christian é alguém que acaba por sair desse grupo…
Penso que ele está aprisionado, como estamos todos. Mas, se soubermos quem somos, então podemos procurar desfazer esse efeito, procurar alterar o nosso comportamento.

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