Até que mundos digitais nos levará o efeito da Rainha Vermelha?
Presidente do Instituto Superior Técnico (IST), Arlindo Oliveira lança sexta-feira, às 18h30 no IST, a versão portuguesa do seu livro Mentes Digitais – A Ciência Redefinindo a Humanidade, já editado pela MIT Press. Este é um excerto dessa reflexão sobre o futuro da inteligência artificial.
Somos constituídos por átomos criados no Big Bang, há 14 mil milhões de anos, ou nas explosões de estrelas distantes que ocorreram durante milhares de milhões de anos após esse evento, que assinalou o início do tempo. Sempre que respiramos, cada um de nós inala algumas das mesmas moléculas de oxigénio que estavam no último fôlego de Júlio César, e que foram reutilizadas ao longo dos séculos para sustentar toda a vida na Terra. Sabemos agora que o batimento das asas de uma borboleta pode de facto influenciar o percurso de um furacão muitos meses mais tarde, e que a preservação de uma espécie poderá estar criticamente dependente da existência de todas as outras espécies. O processo evolutivo iniciado há cerca de quatro mil milhões de anos conduziu até nós, e a quase tudo o que nos rodeia, incluindo os muitos dispositivos e utensílios que possuímos e utilizamos.
Este livro aborda muitas áreas diferentes que, do meu ponto de vista, partilham fortes ligações. Abrange os computadores, a evolução, a vida, os cérebros, as mentes e até um pouco de física. Vamos ver que elas estão interligadas e que existe um fio condutor a ligar a física, a computação e a vida.
Essa noção de que tudo está relacionado com tudo o resto resulta, em grande parte, da nossa acrescida compreensão do mundo e da nossa capacidade para dominar a tecnologia. Só há pouco tempo é que os avanços na ciência nos permitiram compreender que as mesmas equações descrevem a luz que recebemos do sol, o comportamento de um íman e a transmissão de sinais no cérebro. Até há poucas centenas de anos, tudo isso eram realidades independentes — mistérios distintos, escondidos da humanidade pela nossa ignorância coletiva.
A tecnologia, que usa os conhecimentos cada vez mais avançados da ciência, tem vindo a modificar as nossas vidas a um ritmo crescente desde há milhares de anos, mas a palavra tecnologia é relativamente nova. Johann Beckmann merece o crédito por ter criado esse termo (que significa “ciência dos ofícios”) em 1772 e, de certa forma, também o próprio conceito. Antes de Beckmann, os diversos aspetos da tecnologia eram conhecidos como ferramentas, artes e ofícios. Beckmann usou a palavra tecnologia em várias obras, incluindo num livro que mais tarde foi traduzido para inglês como Guide to Technology, or to the knowledge of crafts, factories and manufactories. No entanto, o termo raramente foi usado na linguagem comum antes do século XX. Na segunda metade do século XX, o uso dessa palavra na linguagem comum aumentou de forma constante e hoje em dia é muito vulgar em textos políticos, sociais e económicos.
Há algumas centenas de anos, a mudança era tão lenta que a maioria das pessoas esperava que o futuro fosse muito parecido com o passado. O conceito de que o futuro traria melhorias na vida das pessoas nunca foi comum, e muito menos popular. Tudo isso se alterou quando as mudanças começaram a ocorrer com tal frequência que passaram a ser não apenas claramente percetíveis, mas esperadas. Desde o início do rápido desenvolvimento da tecnologia, as pessoas esperam que o futuro lhes traga novas coisas que venham melhorar as suas vidas quotidianas. Muitos de nós temem até, agora, que as mudanças possam ser demasiado rápidas e demasiado profundas, para que possam ser assimiladas pela maioria da população.
Burro velho não aprende línguas
Se o leitor tem mais do que algumas décadas de idade, provavelmente sente que a tecnologia está a modificar-se tão depressa que não consegue acompanhá-la, que todos os dias aparecem novos dispositivos e novas modas de interesse muito duvidoso e que é, de uma forma geral, difícil acompanhar o ritmo da mudança. As coisas que os jovens fazem e usam hoje em dia são cada vez mais difíceis de perceber para os mais velhos, e é difícil mantermo-nos a par das novas tendências, utensílios e novidades tecnológicas. As crianças são melhores do que nós a lidar com os telefones móveis, estão mais à vontade com os computadores, jogam jogos nos seus telefones que não entendemos e usam novos sítios na Internet que têm pouco ou nenhum interesse para nós. A maior parte delas nem sequer sabe o que é um gravador de vídeo — aquela tecnologia milagrosa da década de 1980, que era tão difícil de usar. Até os CD e os DVD — tecnologias digitais que surgiram apenas nas últimas décadas do século XX — estão a desaparecer rapidamente, tendo durado apenas algumas décadas, muito menos tempo do que os discos de vinil e as bobinas de película que vieram substituir, e que duraram quase cem anos.
Por outro lado, se o leitor nasceu no século XXI, não percebe como é que os seus pais e avós podem ter tantas dificuldades com as inovações tecnológicas. Para si as novas ideias e dispositivos parecem-lhe naturais, e sente-se à vontade com a mais recente aplicação para telemóvel, sítio da Internet ou rede social.
No entanto, as pessoas razoavelmente instruídas e até tecnologicamente sofisticadas da minha geração não se sentem de modo algum prontas para desistirem de acompanhar os avanços da tecnologia. A nossa geração inventou os computadores, os telemóveis, a World Wide Web e a sequenciação do ADN, entre muitas outras coisas. Sentimos que deveríamos ser capazes de compreender e utilizar todas as novidades que a tecnologia venha a desenvolver nas próximas décadas.
É provável que a tecnologia continue a modificar-se a um ritmo cada vez mais acelerado. Tal como aconteceu antes de nós com os nossos pais e os nossos avós, é provável que o conhecimento que temos acerca da tecnologia se torne rapidamente obsoleto, e ser-nos-á difícil compreender, utilizar e acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos das próximas décadas. Existe alguma verdade no provérbio “burro velho não aprende línguas”.
Se os nossos filhos e netos irão seguir o mesmo caminho inevitável para a obsolescência é algo que dependerá de como a tecnologia irá continuar a evoluir. Continuarão a surgir novos desenvolvimentos tecnológicos, cada vez mais rapidamente? Ou estamos agora numa época de ouro do desenvolvimento tecnológico, um período em que as coisas mudam mais rapidamente do que nunca?
Quando eu tinha oito anos gostava de ir visitar o meu avô. Ele morava numa pequena aldeia localizada naquele que eu então julgava ser um local bastante remoto, situado a cerca de cem quilómetros de Lisboa. A viagem de carro desde a minha casa até à aldeia onde ele morava demorava cerca de meio dia, pois as estradas eram estreitas e sinuosas. Quando ele ia trabalhar nos campos levava-me consigo, numa pequena carroça puxada por um cavalo. Para um menino, poder viajar numa carroça com um cavalo era bastante emocionante — um regresso aos tempos de antigamente. Havia outras coisas que reforçavam essa sensação de regressar ao passado. Em casa dele não havia luz elétrica, nem frigorífico, nem televisão nem livros. Essas tecnologias “modernas” não eram consideradas necessárias, pois os meus avós viviam da mesma forma que os seus antepassados viviam há séculos, com poucas alterações.
Em comparação, os meus pais, que saíram da sua aldeia quando se casaram, estavam familiarizados com tecnologias muito avançadas, para o tempo. Tiraram um curso, tinham um televisor e até possuíam um carro. Para os meus avós, essas tecnologias nunca tiveram muito significado. Não se interessavam pela televisão, jornais ou livros, a maioria dos quais se referiam a uma realidade tão remota e tão distante da sua experiência quotidiana que não tinha nenhum significado para eles. Os carros, os comboios e os aviões não tinham grande impacto na vida de pessoas que raramente viajavam para fora da sua pequena aldeia e poucas vezes sentiam vontade de o fazer.
Quarenta anos depois os meus pais continuam a ter um televisor, a ler livros e a deslocar-se no seu carro. Seria de imaginar que, desde a geração deles até à nossa, o abismo tecnológico se tornaria muito menor. Teria imaginado que, 40 anos depois, eles estariam muito mais próximos da minha geração do que da geração anterior, na sua capacidade de compreender a tecnologia. Porém, não é esse o caso, e a distância parece aumentar a cada geração. Os meus pais, que agora têm mais de 80 anos, nunca perceberam completamente que um computador é uma máquina universal que pode ser usada para brincar, para obter informação ou para comunicar, e nunca compreenderam que o computador que usamos é apenas um terminal de uma complexa rede de dispositivos de informação que podem gerar e disponibilizar informações específicas quando e onde elas forem necessárias. Muitas pessoas da geração dos meus pais nunca entenderam que — excetuando pequenos inconvenientes, causados por limitações das tecnologias, que não tardarão a desaparecer — não existe nenhum motivo para que os computadores não venham a substituir os livros, os jornais, a rádio, a televisão e quase todos os outros dispositivos que usamos para aceder a informação.
Poderá pensar-se que a minha geração percebe o que um computador pode fazer e não será tão facilmente ultrapassada pelos futuros desenvolvimentos tecnológicos.
Afinal, quase todos nós sabemos exatamente o que é um computador e muitos de nós até sabemos como funciona. Esse conhecimento deveria proporcionar-nos uma certa confiança de que não viremos a ser ultrapassados por novos desenvolvimentos da tecnologia, como sucedeu aos nossos pais e aos nossos avós. Porém, essa confiança é provavelmente ingénua, sobretudo por causa do efeito da Rainha Vermelha, cujo nome é inspirado pela personagem da obra-prima de Lewis Carroll, Alice do Outro Lado do Espelho: “Estás a perceber, é preciso correr-se o máximo possível, para se ficar no mesmo lugar.”
O efeito da Rainha Vermelha resulta do facto de que, à medida que a evolução ocorre, os organismos têm de tornar-se cada vez mais sofisticados, não para adquirirem uma vantagem competitiva, mas apenas para se manterem vivos enquanto os outros organismos presentes no sistema evoluem constantemente e se tornam mais competitivos.
Embora o efeito da Rainha Vermelha tenha a ver com a evolução e com a competição entre as espécies, ele poderá ser igualmente bem aplicado a qualquer outro ambiente no qual a competição resulte em mudanças rápidas — por exemplo nos negócios ou na tecnologia.
Antevejo que, no futuro, cada geração será ultrapassada de forma ainda mais drástica do que a geração precedente. Daqui a 30 anos entenderemos ainda menos das tecnologias da época do que os nossos pais entendem das tecnologias atuais. Este processo de obsolescência geracional continuará inevitavelmente a acelerar, geração após geração, e daqui a cem anos até os conceitos mais básicos da vida quotidiana no mundo serão estranhos às pessoas da minha geração.
A terceira lei de Arthur C. Clarke diz que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia. Daqui a cem anos, a tecnologia poderá ser tão estranha para quem hoje está vivo que lhe parecerá magia.
Dos computadores e algoritmos aos neurónios
Nas próximas décadas continuaremos a assistir ao rápido desenvolvimento e à convergência de uma série de tecnologias que, até há pouco, eram vistas como independentes.
A primeira dessas tecnologias, que é recente mas já alterou enormemente o mundo, é a computação, que se tornou possível graças ao desenvolvimento da eletrónica e da informática. Os computadores são agora tão banais que, para muitos de nós, é difícil imaginar um mundo sem eles. Todavia, os computadores apenas são úteis porque executam programas, os quais não são mais do que realizações de algoritmos pré-definidos. Os algoritmos estão em toda a parte, e são o motivo último para a existência dos computadores. Sem algoritmos, os computadores seriam inúteis.
Os responsáveis pelo desenvolvimento de algoritmos procuram a melhor forma de explicar aos computadores como efetuar cálculos específicos de um modo eficiente e correto. Os algoritmos são simplesmente receitas muito pormenorizadas — sequências de pequenos passos que um computador executa para obter um resultado específico. Um exemplo bem conhecido de um algoritmo é o algoritmo de adição de números, que todos aprendemos na escola primária. É uma sequência de pequenas etapas que permite a qualquer pessoa que siga a receita adicionar dois números, por maiores que eles sejam. Este algoritmo está no cerne de cada computador moderno e é usado em todos os programas e aplicações.
Os algoritmos são implementados num computador usando uma linguagem de programação específica. Os algoritmos propriamente ditos não são alterados pela linguagem de programação que é usada, dado que são meras sequências de instruções abstratas que descrevem como atingir um determinado resultado. A conceção de algoritmos é, a meu ver, um dos mais elegantes e fascinantes campos da matemática e da informática.
Um algoritmo é sempre desenvolvido para um fim específico. Existem muitas áreas de aplicação dos algoritmos, e duas delas irão desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento das tecnologias futuras, nas áreas cobertas por este livro.
A primeira dessas áreas é a aprendizagem automática. Os algoritmos de aprendizagem automática permitem que os computadores aprendam com a experiência. Muitos leitores poderão estar convencidos de que os computadores não aprendem e de que apenas fazem o que lhes é explicitamente dito para fazerem, mas isso não é verdade. Há muitas formas pelas quais os computadores podem aprender, e nós usamos essa capacidade de aprendizagem dos computadores quando vemos televisão, fazemos pesquisas na Internet, usamos um cartão de crédito ou conversamos ao telefone. Em muitos casos os verdadeiros mecanismos de aprendizagem estão escondidos, mas apesar disso a aprendizagem ocorre e os resultados dessa aprendizagem são usados para efetuar as tarefas desejadas.
A segunda dessas áreas é a bioinformática, a aplicação dos algoritmos à compreensão dos sistemas biológicos. A bioinformática (também conhecida como biologia computacional) utiliza algoritmos para processar os dados biológicos e clínicos obtidos pelas tecnologias modernas. A nossa capacidade para sequenciar genomas, para coligir dados sobre os mecanismos biológicos, e para usar esses dados de forma a entender o funcionamento dos sistemas biológicos depende, em grande parte, do uso de algoritmos desenvolvidos especialmente para esse fim. A bioinformática é a tecnologia que torna possível modelar e compreender o comportamento das células e dos organismos. Os mais recentes avanços na biologia estão intimamente ligados aos avanços na bioinformática e, nos dias que correm, é impossível desenvolver investigação de ponta em biologia sem usar bioinformática.
A evolução, o processo que criou todos os seres vivos, também é, de certo modo, um algoritmo. Usa uma plataforma muito diferente para correr, e está em execução há cerca de quatro mil milhões de anos, mas, na sua essência, é um algoritmo que otimiza a capacidade reprodutiva das criaturas vivas. Quatro mil milhões de anos de evolução não criaram apenas células e organismos, mas também cérebros e seres inteligentes e conscientes.
Porém, a tecnologia evoluiu tanto que, agora, pela primeira vez, enfrentamos a possibilidade real de que outras entidades — entidades criadas por nós — possam vir a tornar-se inteligentes. Essa possibilidade deriva da revolução nas tecnologias de informação e comunicação que ocorreu nos últimos 50 anos, incluindo a inteligência artificial e a aprendizagem automática, mas também dos progressos significativos na nossa compreensão dos seres vivos — em particular na nossa compreensão do corpo humano e do cérebro humano.
Com os progressos nas tecnologias da medicina e da computação, um dia talvez seja possível vir a entender suficientemente bem como funciona o cérebro para conseguirmos reproduzir a inteligência num suporte digital — ou seja, talvez um dia sejamos capazes de escrever um programa, executado por um computador, que exiba inteligência. Existem várias formas pelas quais isso poderá acontecer, mas qualquer uma delas conduzirá a uma situação em que as mentes não-biológicas passarão a existir e se tornarão membros da nossa sociedade. Neste livro, chamei-lhes mentes digitais porque, quase de certeza, elas serão um resultado da existência da tecnologia de computação digital. O facto de, dentro em breve, poderem existir na Terra mentes não-biológicas desencadeará uma revolução social, que não poderá ser comparada com qualquer outra que tenha tido lugar até agora. No entanto, a maioria das pessoas está cega, não apenas à possibilidade dessa revolução, mas também às profundas mudanças que ela trará aos nossos sistemas sociais e políticos. Este livro é também uma tentativa de chamar a atenção da sociedade para as consequências dessa revolução.
É provável que a maioria das previsões que serão feitas neste livro venha a revelar-se erradas. Até agora o futuro sempre teve a capacidade de criar coisas mais estranhas, mais inovadoras e mais desafiantes do que aquelas que os homens conseguiram imaginar. Os próximos anos não serão uma exceção e, se tiver a sorte de estar vivo, irei, como a maioria dos leitores, surpreender-me com novas tecnologias e descobertas que não eram aquelas que esperava. No entanto, é essa a natureza da tecnologia, e fazer previsões é sempre difícil, especialmente sobre o futuro.