Do “smart coup” à incógnita da transição política

Os homens que afastaram Mugabe têm as mesmas responsabilidades que o “fundador” num regime autoritário e predatório das riquezas nacionais, em massacres, na falsificação de eleições ou na tragédia económica que assola o país. Um pesado cadastro.

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Mugabe demitiu-se. Os 37 anos de poder dão direito a que se fale num “dia histórico”. A população celebra: “Pandemónio nas ruas de Harare”, resume o enviado do diário sul-africano Mail & Guardian. No entanto, o “golpe que não foi golpe” nada tem de popular ou democrático. Trata-se da “guerra da sucessão de Mugabe”, uma disputa do poder entre duas (ou mais) facções da “elite” — o partido ZANU-PF e o Exército que governam o país desde a independência. Mas, ao extravasar para a rua, pode criar uma dinâmica que talvez venha a surpreender os seus autores.

Mugabe demorou uma semana a render-se. Não sabemos o que se passou nos bastidores mas terá sido esse espaço de tempo que trouxe as multidões para a rua, encabeçadas pelos “veteranos da guerra de libertação”. A figura maldita é Grace — ou “Dis-Grace” — Mugabe. O Presidente deposto poderá permanecer como “fundador da nação”.

A primeira coisa curiosa é aquilo que um analista sul-africano desiga por “smart coup”. Os militares não tinham como programa a democratização ou uma liberalização. O seu objectivo declarado era afastar “os criminosos” que rodeavam Mugabe através de sua mulher, cuja ambição presidencial se tornou patente. Foi a demissão do vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, líder do chamado “clã Lacoste”, que desencadeou o “smart coup”.

Como? Primeiro, os militares não estavam a derrubar um regime mas, pelo contrário, a zelar pela sua conservação e reprodução. Em segundo lugar, os “golpes clássicos” estão a ficar fora de moda em África. Conclusão: o pronunciamento militar já foi legitimado pela população, pelo parlamento e pelas organizações africanas. Os seus autores estão de momento em “estado de graça”.

Os homens que afastaram Mugabe têm as mesmas responsabilidades que o “fundador” num regime autoritário e predatório das riquezas nacionais, em massacres, na falsificação de eleições ou na tragédia económica que assola o país. Um pesado cadastro. No entanto, ser-lhes-á dado o benefício da dúvida quanto ao futuro, na medida em que adoptem uma nova política económica e se resignem a uma abertura política. O teste tem uma data: as eleições presidenciais e legislativas de Julho de 2018. Boa ou má, e apesar da “elite”, haverá uma transição política. A oposição renascerá e, logicamente, deverá ser integrada num Governo de transição — de que ainda nada sabemos.

A ZANU não quererá abdicar da sua hegemonia. Governa por “direito divino” em nome da luta de libertação. Mas o “clã Lacoste” não vai ter vida fácil. Muito depende da dinâmica que se vai abrir e da energia com que a sociedade irá canalizar as frustrações e as agora renovadas aspirações. No meio do caos económico, o Zimbabwe tem elites cultas e modernas.

Olhar a China

Se o desfecho é um alívio para os países vizinhos, as atenções voltam-se também para a China, o maior investidor no Zimbabwe. Já antes da independência, a ZANU tinha relações privilegiadas com Pequim, que a armava e formava os seus militares. E, após 2009, os investimentos chineses aumentaram 5000%.

Por curiosa coincidência, o general Chiwenga estava em Pequim, na véspera do “golpe”, após a destituição de Mnangagwa. Que conversações terá tido com o seu poderoso homónimo chinês, Chang Wanquan?

Pequim desmentiu já qualquer influência nos acontecimentos de Harare. Mas analistas chineses dão conta das queixas de Pequim sobre a desastrosa gestão de Mugabe, que levou ao cancelamento de vários projectos. A estabilidade é a prioridade para Pequim que, por doutrina, não se envolve nas questões domésticas dos países amigos. Mas está atenta. É um actor a seguir no desenvolvimento da crise do Zimbabwe.

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