“Julian Schnabel é uma criança que pensa sempre em grande”
Willem Dafoe interpreta Van Gogh no filme que está a ser rodado por Schnabel, a quem Pappi Corsicato dedicou um documentário. Os três amigos estão em Lisboa para apresentar filmes no Leffest.
Herói, vilão ou figura histórica. Durante a longa carreira como actor, o americano Willem Dafoe já foi quase tudo. Mas a curiosidade, “esse fio invisível que liga a segurança ao desejo de nos abandonarmos”, diz-nos ele, é aquilo que o continua a mover aos 62 anos de idade. Há dias esteve em Lisboa, no Lisbon & Sintra Film Festival, onde apresentou filmes onde foi protagonista como Anticristo (2009) de Lars von Trier ou onde entrou, como Julian Schnabel: A Private Portrait (2017), o documentário de Pappi Corsicato sobre o amigo de ambos, o artista e cineasta Julian Schnabel.
Ao longo dos anos, Dafoe tem trabalhado com realizadores de forte identidade (Scorsese, Von Trier, Cronenberg, Schrader, Anderson, Ferrara ou Bigelow), nas mãos dos quais gosta de se deixar ir. É isso que está a acontecer agora também com Schnabel, 65 anos, pintor e escultor, superestrela da arte que também tem realizado filmes desde os anos 1990, como Basquiat (1996), Antes Que Anoiteça (2000), O Escafandro e a Borboleta (2007), Miral (2010) ou o documentário Berlin (2007), sobre o álbum do mesmo nome do amigo Lou Reed, que morreu em 2013. Foi em Dafoe que Schnabel pensou para protagonista de At Eternity’s Gate, um filme que foca o período que o pintor Van Gogh passou em Arles, no Sul de França, e em Auvers-sur-Oise, perto de Paris, onde viria a morrer.
“É sobre Van Gogh, como é evidente, mas é mais sobre a pintura, a natureza ou a arte em geral e a relação com a existência”, afirma Dafoe. “É a versão de Julian de Van Gogh. Não é uma biografia. Conheço Julian há muito tempo e como todas as longas relações de amizade é algo de muito privado que está sempre a mudar. Agora estamos a trabalhar juntos, eu sou o material que ele pode modelar, e estamos a divertir-nos. Se me perguntar, neste momento, como está a nossa relação, dir-lhe-ei que o amo, mas nem sempre é assim, porque também nos zangamos”, ri-se ele.
A fisicalidade felina e a versatilidade são predicados normalmente utilizados para enquadrar o percurso de um actor que goza de uma reputação invejável tanto no teatro (ajudou a fundar o colectivo Wooster Group no final dos anos 1970) como no cinema (filmes como Platoon, O Paciente Inglês, O Aviador, A Última Tentação de Cristo são alguns exemplos) e que refere ser o mistério aquilo que lhe interessa num papel. “Não sei muito bem o que isto é, nem como me vou confrontar com isto, mas quero descobrir o que vai acontecer. Essa vontade de descoberta é fundamental. É esse o meu ponto de partida. Nunca existe a garantia que daí surja alto interessante, mas pelo menos no processo desafio-me.”
Mas existe sempre algo a que um actor se pode agarrar, arriscamos, seja uma técnica, um método ou a algo ainda mais intuitivo, mas que por norma sabe que funciona. “É verdade, mas conhecermos o processo não nos protege do sentimento de estarmos continuamente a adaptar-nos, ou seja, de alguma forma é sempre semelhante, sendo continuamente diferente. Por vezes não faço a mais pequena ideia do que estou para ali a fazer, mas confio nessa energia de desejar perceber o que estou a fazer.”
Centra-se no presente. A construção de um personagem é o momento que lhe interessa. “A representação interessa-me pouco, o que me importa é a construção de um personagem na relação com a vida, naquele instante. Nesse sentido, não penso muito no personagem, o que me prende é a experiência do momento”, afirma, acrescentando que a sua relação com determinado realizador acaba por ser decisiva quando aceita um papel.
Tanto pode aceder a projectos populares, como a algo exploratório. “Não tenho propriamente um plano prévio, mas forço-me a ser flexível e a não ficar confinado a um tipo de projectos. E aí, sim, a relação com o realizador é importante, seja ele alguém que vai fazer uma grande produção ou um projecto de características invulgares. Se acredito naquilo, mando-me de cabeça para ele.”
Nos últimos meses estreou vários filmes (de The Florida Project de Sean Baker a Murder on the Orient Express de Kenneth Branagh), encontrando-se outros em pós-produção, como Aquaman, e outros em rodagem, como o que está a desenvolver com Schnabel. Os dois vieram de Paris para Lisboa e quando lhe perguntamos se concorda com o retrato de figura excessiva que é feito de Schnabel, pela fisicalidade, estilo de vida, pinturas e esculturas de grandes dimensões ou pela enorme casa-palácio que construiu em Manhattan, o amigo actor ri-se. “Claro que sim. Toda a gente diz que ele é desmedido. Tem uma energia imparável. Imenso apetite. Uma grande ambição. Pensa sempre em grande. Mas ao mesmo tempo é como uma criança, muito vulnerável, criativo e à procura do prazer. É uma criança inventiva que pensa sempre em grande.”
As pessoas com quem gosta de trabalhar, diz, têm qualquer coisa que também encontra em Schnabel. “Por um lado, uma grande confiança no que estão a fazer, e, por outro, uma grande abertura para transformarem o que estão a fazer. A maior parte, no caso do cinema, tem um plano prévio. Não fazem tenções de o mudar necessariamente quando o iniciam, mas no momento estão receptivas ao que acontece à sua volta. A forma como Julian pinta é assim: traz elementos para o espaço e começa a organizá-los à sua maneira e ao fazê-lo nunca antecipa o que irá mesmo acontecer.”
No cinema, diz, acaba por não ser muito diferente. “Ele não é nada convencional. Todos os seus filmes têm um carácter experimental e este não será diferente. Não é claramente um filme biográfico sobre Van Gogh, é mais sobre os impulsos de um pintor e a sua relação com a natureza.”
Na preparação para o mesmo, Dafoe não se preocupou em ver os mais de 30 filmes que já foram feitos à volta de Van Gogh. Não é essa a sua forma de trabalhar. “Recordo-me de ter visto há uns anos Lust for Life de Vincente Minnelli, mas sinceramente não tenho grande memória. Não tenho necessidade, neste caso, de fazer esse trabalho prévio, porque aqui o que conta é ter uma ideia muito aberta e ampla de Van Gogh. Para mim é como se ele nunca tivesse existido. Claro que trouxemos certos elementos para cima da mesa, eu e Julian, e alguns têm que ver com aquilo que foi a vida de Van Gogh, mas é mais a sua arte que nos interessa. E aí contam mais as nossas impressões e experiências. Pode parecer um pouco estranho o que vou dizer, mas não creio que Van Gogh fosse muito diferente de Julian ou de mim. Se estivesse num lugar inatingível, não nos interessaria. É a proximidade que é inexplicável mas interpeladora.”
As filmagens em locais onde o pintor esteve acabam por também criar essa sensação de proximidade. “Sim, claro, mas por vezes são coisas muito sensoriais, como olhar para uma velha e enorme árvore e imaginar que ele também olhou para ela. É qualquer coisa de muito físico e isso deverá passar no filme. Quer dizer, nunca se sabe o resultado final, mas Julian é um artista muito expressivo e corpóreo, seja na pintura ou no cinema, e eu tenho a certeza que essa gestualidade muito expressiva vai lá estar.”
Quando falámos com Schnabel, no sábado passado, este estava longe de estar centrado no cinema. “Morreu um dos meus melhores amigos há mais de 35 anos”, diz-nos, referindo-se ao designer de moda franco-tunisino Azzedine Alaïa. A notícia da sua morte havia-lhe sido transmitida pouco tempo antes e estava a ser inundado de telefonemas de amigos que, sabendo do vínculo entre os dois, queriam saber como se encontrava. “Todos me perguntam se estou bem. Sei lá como estou! Ele era família. Éramos muito próximos. Nos últimos anos tenho visto desaparecer boas pessoas – Lou Reed, David Bowie, Jonathan Demme. Não é nada fácil.”
A morte também paira sobre o documentário Julian Schnabel: A Private Portrait. A meio vemos uma homenagem póstuma a Lou Reed onde se encontraram muitos dos amigos de Reed que são também os de Schnabel. Alguns surgem no documentário a falar dele. Gente da música como Laurie Anderson ou Bono, do cinema como Dafoe, Al Pacino ou Hector Babenco (1946-2016) ou das artes como Mary Boone e Jeff Koons. Uma constelação de figuras que dá bem a medida da fama de Schnabel que, nos anos 1980, se tornou no símbolo do regresso à pintura através do neo-expressionismo.
No entanto, mais do que os amigos, o que lhe custou enfrentar, quando viu o documentário pela primeira vez, foi a família. “Ver os meus filhos e ex-mulheres a falarem sobre mim foi embaraçoso, principalmente os meus filhos, porque algumas das coisas que eles reflectem não as vivenciaram realmente, ou seja, em algumas das coisas que eles dizem existe um misto de verdade e de mito. Todavia, ao mesmo tempo, é interessante perceber que de alguma forma a minha pintura e a minha arte se misturam com a minha vida de uma forma de que nem eu tenho consciência. Esse é talvez o principal mérito do documentário. Mostrar-me a pessoas que apenas conhecem as minhas pinturas ou os meus filmes.”
O documentário, que se estreou em Abril no festival Tribeca de Nova Iorque, e que será repetido nesta terça-feira nas Amoreiras em Lisboa, foi filmado numa altura difícil para ele. “Não o queria fazer”, confessa. “Cada vez me é mais difícil falar sobre o meu trabalho. Gosto de criar, mas falar sobre o que faço é outra coisa. Quando o documentário foi feito, passava por algumas indefinições. Agora não. Estou bem. De alguma forma vamos morrendo e renascendo várias vezes ao longo da vida. Na maior parte das vezes as pessoas pensam que ser conhecido é fantástico, mas é também um enorme peso que estou sempre a tentar retirar dos meus ombros.”
Essa relação dúplice com a fama está também presente em algumas das suas escolhas artísticas. Parecem interessar-lhe figuras que quando morreram ainda não tinham alcançado a notoriedade que viriam a obter depois. Foi assim com o pintor Jean-Michel Basquiat, de quem foi cúmplice nos anos 1980, vindo a fazer um filme sobre ele. E acontece o mesmo agora com Van Gogh. “Marcou-me muito um texto do Antonin Artaud em que ele responsabiliza a sociedade por ter levado Van Gogh ao desespero. Aliás, numa das primeiras sequências de Basquiat ouve-se uma voz a dizer: ‘Toda a gente quer entrar no barco de Van Gogh… Ninguém quer fazer parte de uma geração que ignore outro Van Gogh… Quando olhamos para uma pintura, podemos estar a olhar para a orelha de Van Gogh’… Essas linhas eram sobre Keith Haring e Basquiat, mas na verdade são sobre toda essa relação conflituosa entre artistas e o público e o que deseja realmente um artista no meio disso. No fim de contas ninguém quer pertencer a uma geração que é capaz de ignorar artistas essenciais.”
Existem muitos filmes sobre Van Gogh, mas Schnabel acredita que ainda existem pontos de vista que não foram abordados. “Toda a gente pensa que sabe tudo sobre ele, mas não creio que seja verdade. De qualquer forma, o meu filme não é uma biografia, mas sim ficção pura. É um conjunto de cenas inventadas pelo [argumentista] Jean-Claude Carrière e o Willem torna-as totalmente credíveis.” A meio da conversa mostra-nos algumas cenas pelo iPhone, com Dafoe a deambular pelo Louvre ou nos campos do Sul de França. “Já viu a semelhança física? É incrível! O Willem é maravilhoso. É um actor muito ágil e maduro. Desde o primeiro momento que pensei nele. Tinha de ser um actor com uma relação aprofundada com a vida, porque o filme é isso: é sobre a perseguição de um desígnio, de um sentido para a existência e do papel da pintura nessa viagem.”
Minutos antes parecia disperso. Agora os seus olhos brilham vendo as imagens. O realizador do documentário, o cineasta italo-americano Pappi Corsicato, também presente em Lisboa, diz-nos que aquilo que lhe admira mais é a sua capacidade de focagem. “O que parece uma incongruência”, ri-se, “porque ao longo da vida tem sido imensas coisas, pintor, escultor, cineasta, até arquitecto, mas em tudo o que faz existe um investimento imenso. Não desiste de nada. Trabalha o dia inteiro. Tem uma energia imparável que nos envolve. Agarra nas formas. Atribui-lhes novos sentidos. E é por isso que, como pintor ou a filmar, é tão vital.”
Entre as suas exposições mais mediáticas dos últimos tempos encontramos uma retrospectiva no Aspen Art Museum e uma individual na Galeria Pace, nos EUA, mas a sua obra está disseminada por todo o mundo. “Já trabalhei com outros grandes artistas, como Richard Serra, mas Julian é o mais cinemático. A forma como se veste, como se move, a maneira enérgica como pinta ao ar livre, a sua relação com o mar e o surf, enfim, tudo o que faz. Não consegue colocar uma máscara. A forma como o vemos é como ele é. Tem qualquer coisa de cowboy, mas ao mesmo tempo é um tipo muito terno. Quando se tem a sorte de o conhecer bem, como é o meu caso, é como se estivéssemos dentro de um filme. E naturalmente quis fazer um filme sobre ele, até porque para mim representa o sonho americano: um miúdo provindo de um meio muito humilde e que com talento e energia alcança o sonho de se tornar um grande artista.”
A dada altura, ao ver aproximar-se Dafoe, Corsicato lança: “Tive a sorte de ir para Nova Iorque nos anos 1980 e mergulhar naquele fantástico ambiente criativo. Foi aí que conheci Willem e Julian. Era uma altura em que a vida e arte não eram dissociáveis. Havia uma urgência muito grande de afirmação. É por isso que se pode dizer de Julian que ele é o tipo de artista cujo estilo de vida se tornou também uma obra de arte.”