Há dois pilares fundamentais — mas não únicos — na fixação da ideia moderna de património monumental: por um lado, as reflexões de Alois Riegl (1858-1905), um historiador de arte vienense, sobre “o culto moderno dos monumentos”, num famoso livro com esse título (em Portugal está publicado nas Edições 70); por outro, a cultura italiana da conservação, que se desenvolveu com uma enorme pujança por razões fáceis de explicar: a Itália é o país do mundo com as maiores “jazidas culturais”. O termo “jazidas” pertence a outra esfera e soa certamente de maneira estranha, neste contexto, mas ele é suscitado por uma metáfora que teve uma vasta utilização: a arte é o petróleo de Itália. Tal metáfora remete para a condição de abundância (há quem já tenha ousado fazer cálculos e conclua que a Itália possui 40% do património monumental/artístico de todo o mundo) e indiciava a penetração da linguagem empresarial e da lógica económica no universo das coisas sem preço, dos “bens simbólicos”, para usarmos uma terminologia que se impôs no domínio sociológico. Em Itália, as determinações próprias das empresas privadas na tutela do património — a gestão dos bens artísticos e culturais na óptica do mercado — foram consagradas numa lei polémica de um ministro de Berlusconi, contra a qual se ergueram muitas vozes. Uma das mais importantes foi a do historiador de arte italiano, Salvatore Settis, director da Escola Normal Superior de Pisa, que escreveu um livro de denúncia — mas com um enorme alcance teórico — sobre “o assalto ao património cultural”. Esse livro intitula-se Italia S.p.A e começa por citar o mais importante jornal alemão, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, que tinha chamado ao governo italiano “os talibãs de Roma”.
A doença moderna da patrimonialização tem esta contrapartida: o sistema de gestão e tutela segue, cada vez mais (em todo o mundo e não apenas em Itália), modelos de rentabilização decalcados da esfera privada dos negócios. As empresas e as marcas entram nos museus, nos monumentos, nos edifícios públicos e apropriam-se de espaços e programações. Não são assaltantes, são convidados que entram com capital. Às vezes, fazem-no ostensivamente e de maneira pouco respeitosa; outras vezes, são mais subtis. As regras de utilização — sob a forma de aluguer ou de investimento mecenático — de monumentos, museus e espaços públicos, começaram por ser bastante estritas, mas têm-se tornado cada vez mais frouxas, em todo o lado e não apenas na Itália de Berlusconi, onde algum património podia ser literalmente vendido. O património monumental parece condenado a estas duas formas de existência: ou é um passado fossilizado (a museificação generalizada tem um efeito amnésico), ou fica demasiado exposto aos modos de fruição e gestão do nosso tempo, sejam eles a exploração turística ou a utilização privada mediante arrendamento temporário ou “parcerias” de vários tipos. Num dos capítulos do seu livro, Salvatore Settis pergunta: “Quem visita Brera ou Capodimonte, quem passeia em Siena, na Piazza del Campo, ou em Brecia, na Piazza della Loggia, deve ser entendido como um cidadão ou como um consumidor?”. A pergunta é retórica. Quem a faz sabe muito bem que a gestão e necessária rentabilização do património fazem com que se pratique uma activa indistinção entre essas duas figuras. O modelo S.A (em italiano, S.p.A.), a gestão na óptica do mercado, é o destino de todo o património cultural. Ainda que por vezes haja um ou outro sobressalto por causa de encontros inconvenientes entre mortos e vivos, entre analógicos e digitais.