E de uma exposição Siza fez um edifício para 19 famílias
Qual é o projecto europeu para as cidades? Os comissários da exposição que representou Portugal na Bienal de Arquitectura Veneza e que agora chega ao CCB, dedicada à habitação social de Álvaro Siza e às teorias de Aldo Rossi sobre a cidade histórica, querem que reaprendamos a ser vizinhos.
Em Veneza, há um ano, na exposição dedicada aos famosos projectos de habitação social de Álvaro Siza que Portugal levou à última Bienal de Arquitectura, não podíamos ter encontrado estas duas fotografias. Elas provam que, mais de 30 anos depois, recomeçaram as obras para terminar o conjunto habitacional que o arquitecto português desenhou para a Giudecca, a ilha em frente à praça de São Marcos, em Veneza.
Estas fotografias que Roberto Cremascoli, um dos dois curadores da representação oficial portuguesa que agora pode ser vista no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, tem no seu telemóvel mostram um cartaz com as datas de início e fim da obra, com o guindaste a marcar o horizonte. “Vai estar pronto daqui a um ano”, diz Cremascoli. As obras para concluir o segundo dos dois edifícios de Siza na Giudecca começaram a 4 de Setembro. Vítima de vários contratempos, entre os quais um empreiteiro falido, o segundo edifício estava por acabar desde 2010.
Em Veneza, foi ainda no edifício inacabado, como se fosse uma declaração de intenções, que se instalou em Maio de 2016 o “Pavilhão de Portugal” — como são chamadas as representações nacionais na Bienal de Veneza —, prometendo a 19 famílias italianas que as casas seriam mesmo entregues, uma vez que a exposição e a fama de Siza em Itália iriam conseguir dar a volta a um processo que se arrastava há décadas. Mas era preciso “ver para crer”, como nos dizia no ano passado Sonia Secchi, uma das moradoras da Giudecca que vive no edifício de Siza já terminado, reagindo ao anúncio do lançamento do concurso para a construção, feito pela agência pública veneziana que promove a habitação social, a ATER.
“Garantir às 19 famílias que vão ter casa foi a nossa maior conquista”, diz Nuno Grande, o segundo comissário, quando lhe perguntamos que impacto espera que o pavilhão nacional na Bienal de Veneza tenha em Portugal. É com a promessa cumprida em Itália, portanto, que a exposição intitulada Vizinhança: Onde Álvaro Encontra Aldo chega a Belém.
Aqui, Nuno Grande espera que os amantes de arquitectura, e em especial os estudantes da disciplina, percebam as consequências do encontro entre as duas personagens citadas no título da mostra: Álvaro Siza, 84 anos, o mestre português e Prémio Pritzker de Arquitectura, e Aldo Rossi (1931-1997), o arquitecto e teórico italiano. “Uma das personagens eles conhecem muito bem, porque está viva e trabalha, a outra está nos compêndios de história, e nem sequer é muito recuperada nas escolas de arquitectura, porque é vista como um arquitecto datado. Mas estamos a tentar mostrar como muito do pensamento de Rossi é completamente válido hoje.”
O catálogo da exposição é, aliás, dedicado à memória de Diogo Seixas Lopes (1972-2016), que publicou em 2015 um livro sobre Aldo Rossi, Melancolia e Arquitectura, com uma recepção internacional muito assinalável, mostrando, como aqui escreveu o crítico Jorge Figueira, parte deste processo de recuperação do arquitecto italiano, que “foi proscrito como pós-modernista e entendido como um caso perdido”, depois dos anos de glória nas décadas de 60 e 70, quando desenhou, também, o Cemitério de San Cataldo, em Modena, e o Bairro Gallaratese, em Milão.
A primeira exposição em que Álvaro e Aldo são convidados para mostrar o seu trabalho é a Bienal de Veneza de 1976, mas os curadores defendem que a relação entre os dois começa em 1966, quando é publicado o livro A Arquitectura da Cidade, uma das obras que mais influência teve na disciplina de Arquitectura na segunda metade do século XX. Tal como todos os arquitectos da sua geração, o Siza leu a obra do italiano. “Rossi defendia que a cidade histórica, que o modernismo queria ter destruído, tinha um potencial incrível e que era necessário reconquistar essa cidade. Nesse sentido, ambos são arquitectos pós-modernos. Retornam à cidade histórica e à arquitectura da cidade para fazer a cidade contemporânea”, afirma Nuno Grande.
Hoje, quando nos estamos a confrontar com uma Europa em desagregação, “é muito importante voltar a Rossi” e ao seu livro A Arquitectura da Cidade, defende este arquitecto. “Se nós já não sabemos exactamente qual é o projecto europeu do ponto de vista social, também não sabemos qual é o projecto europeu do ponto de vista urbano. Voltar ao Rossi e à ideia de memória colectiva, um termo que ele usa imenso no livro, faz com que as pessoas percebam porque é que a casa é assim, porque é que o bairro é assim. Só reconhecemos isso se olharmos para os códigos que herdámos dos nossos antepassados. Essa cidade diz-nos que a Europa de Siza e de Rossi é a densidade, a coesão, são os vizinhos. A Europa é um palimpsesto. ”
No CCB, numa das vitrinas com documentação, está o telegrama de Siza a relatar a chegada a Veneza nesse ano de 1976, numa das primeiras vezes em que a arquitectura é tratada de uma forma independente pela Bienal de Veneza. “Dez anos depois da saída de A Arquitectura da Cidade ele é convidado para ir a Veneza. A exposição chamava-se Europa-América, Centro Histórico-Subúrbio e era organizada por Vittorio Gregotti e Peter Eisenman, ambos arquitectos, um europeu, outro americano. Cada um deles escolheu os arquitectos dos respectivos continentes. O Siza e o Rossi expõem na mesma sala lado a lado.” Siza mostrou os seus primeiros projectos de habitação social, no Porto (Bouça e São Vítor, de 1974) e em Vila do Conde (Caxinas, 1970), e Aldo Rossi assina, juntamente com outros colegas, a colagem A Cidade Análoga.
“Usando linguagens distintas, Álvaro e Aldo trouxeram a mesma mensagem à Bienal de Veneza: a cidade que conhecemos, e que desenhamos continuamente, resulta de uma acumulação de distintas tipologias arquitectónicas — tal qual objects trouvés — que a ‘memória colectiva’ vai retomando ou reciclando ao longo da história”, escrevem os dois comissários no catálogo.
Se não há nenhuma fotografia dos dois juntos em Veneza, eles cruzam-se num debate que acontece já em Agosto no Lido, uns dias depois da inauguração da bienal. “Intitulado Qual Movimento Moderno?, é o primeiro grande debate na Europa entre americanos e europeus sobre o que é isto do Movimento Moderno e o que vamos fazer ao Movimento Moderno. Estão aqui provavelmente todos os grandes arquitectos que fazem parte dessa primeira crítica à arquitectura moderna. Temos o James Stirling, a Denise Scott-Brown, o Robert Venturi, o Aldo Van Eyck, o Giancarlo De Carlo, o Paul Chemetov. Lá atrás o Peter Eisenman, o John Hejduk e o jovem Siza com ar de hippie ao lado do Oriol Bohigas.”
Uns anos mais tarde, em 1982, Rossi e Siza voltam a encontrar-se em Bogotá, na Universidade dos Andes, novamente numa discussão sobre a cidade histórica. Quando Siza ganha o concurso para a recuperação do Campo di Marte, na Giudecca, feito por convite a dez arquitectos, entre os quais está Rossi, acaba por chamar, como estava previsto, alguns dos colegas derrotados para se juntarem à execução de um plano que abrangia uma área muito maior do que viria a ser construído. Trabalha com Rossi, mas também com o espanhol Rafael Moneo, e outro italiano, Carlo Aymonino, nalguns dos edifícios.
Só os dois italianos viram a sua obra integralmente construída. Se o de Siza vai agora ser terminado, o de Moneo continua à espera.
É o projecto de Moneo, aliás, que “fechará” o Campo di Marte, explica Nuno Grande, dando à praça que os dois edifícios de Siza abraçam em “L” a sua forma final em “U”. “O plano do Siza, do qual só se fez o Campo, está cheio de alusões a essas praças típicas de Veneza.” Praças irregulares, espaços abertos, rossios, normalmente circundadas por edifícios mais indiferenciados.
Um Rossiano um pouco Pessoano
Para a Giudecca, segundo Nuno Grande, Aldo e Álvaro vão buscar formas urbanas “análogas” — a praça, a rua, os edifícios longos que se repetem —, num piscar de olhos ao termo usado por Rossi na sua colagem para a Bienal de Veneza de 1976. “O Rossi diz que se pode sempre fazer de novo fazendo o que já existe.” A diferença entre os dois, sobre a qual Siza reflecte num dos vídeos da exposição, está mais na escala, explica o curador: “O Siza parte de uma cidade mais modesta do ponto de vista da escala, enquanto o Rossi é mais monumental.”
Ambos, explica Nuno Grande, estão a tentar interpretar a arquitectura veneziana. “Siza faz um edifício austero, regrado, quase anónimo, que lembra a Veneza popular, operária. Ao seu edifício, junta alguns apontamentos domésticos de remate — varandas de esquina, a loggia do último piso e o fontanário de topo que se vai realizar agora no final da obra. O Rossi, como já disse, tende a monumentalizar mais o seu edifício através do uso de coberturas abobadadas que remetem para uma arquitectura palaciana.”
Se Rossi dedicou “a sua investigação urbana à sistematização de um número definido de arquétipos arquitectónicos, encontrados nessa cidade histórica, Siza consagrou a sua carreira a multiplicar os seus próprios heterótipos, inscrevendo-os em tantas outras geografias e culturas”, defendem os curadores no catálogo. “Siza não repete as suas referências venezianas nos outros bairros. Vai à procura da heterogeneidade da arquitectura de cada lugar. Rossi, noutro sentido, repete muitas vezes esses elementos monumentais — coberturas pronunciadas, esquinas marcadas por colunas cilíndricas monumentais, arquétipos geométricos, como o triângulo, o círculo, o quadrado”, diz Nuno Grande ao Ípsilon.
Foi essa atenção detalhada à cultura arquitectónica de cada cidade, também ela Rossiniana no seu método — os comissários dão-lhe um sabor Pessoano ao falar de heterótipos — que leva Siza a pesquisar o tema do Haagse Portiek em Haia, reinventando um espaço tradicional de acesso aos edifícios a partir da rua, como podemos ver noutro dos projecto de habitação social presente no Pavilhão de Portugal de 2016. Como também está exposto no CCB, faz o mesmo em Berlim, sendo a esquina do seu Bonjour Tristesse o momento mais icónico dessa pesquisa, onde revisita a arquitectura expressionista alemã. No Porto, no Bairro da Bouça, procura cruzar os modelos de habitação operária do Movimento Moderno com as estruturas dos bairros populares da cidade, conhecidas como “ilhas”.
Por isso, na Giudecca, mais do que uma leitura nas entrelinhas de A Arquitectura na Cidade, Álvaro Siza recorda na entrevista documentada em vídeo que dá aos dois comissários no seu escritório do Porto como estudou atentamente o tecido urbano de Veneza através do livro Venezia Minore, da historiadora de arquitectura Egle Trincanato. “O Siza na Giudecca põe em prática a Trincanato mais do que o Rossi. Ele ainda não nos tinha contado, mas há pouco tempo lembrou-se que a primeira vez que chegou a Veneza, com a mulher, nos anos 60, é a Trincanato que o vai buscar à estação. Os dois vão visitar o Carlo Scarpa [o mais famoso arquitecto veneziano do século XX] no atelier que este tinha na Giudecca.”
Como muitos criadores, Siza não fala sempre da mesma maneira de cada vez que fala de Rossi. Às vezes sentimo-lo a hesitar sobre as influências Rossianas e, quando se refere à Giudecca — ouvimos no vídeo filmado no Centro Canadiano de Arquitectura —, lembra que foi ele que ganhou o concurso e que o arquitecto italiano, um pouco desiludido, acabou por construir sobre uma malha definida por si.
“Até ao momento [da Giudecca] o Rossi não tinha especial interesse, para não dizer interesse nenhum, nos meus projectos. Eu tinha uma admiração incrível por ele. […] O que se compreende perfeitamente, porque o trabalho dele era já muito sólido do ponto de vista da cidade e o meu era muito disperso e ligado ao que estava próximo”, afirma na conversa no escritório do Porto. A única aproximação de que Siza se lembra foi a visita que Rossi fez ao Bonjour Tristesse, relatada por Eduardo Souto de Moura, em que o italiano terá dito que a obra de Berlim tinha sido uma boa surpresa e que estava quase no ponto.
Álvaro Siza não se lembra de a leitura de A Arquitectura da Cidade ter provocado uma mudança consciente em si. “É como acontece muitas vezes quando me dizem que num edifício há uma coisa que foi tirada de um arquitecto tal e eu não sei. Que li sim, que há uma influência sem dúvida, mas não foi uma coisa consciente.” E acrescenta que não é um Rossiano convicto: “No sentido em que fiz uma jura, mas absorvi a sua influência como fiz com outros.”
O subtítulo da exposição, Onde Álvaro encontra Aldo, é também uma metáfora sobre o encontro que duas pessoas podem ter num bairro. “A influência de Rossi é mais conceptual do que o resultado de uma amizade. Eles não eram propriamente compadres. Eles encontravam-se nestes fóruns de discussão, viajavam, iam ver as mesmas obras, mas não eram propriamente amigos como o Siza é do Vittorio Gregotti.”
Mas os comissários não concordam com a possibilidade, levantada pelo Ípsilon, de Siza se sentir um pouco distante de Rossi passados tantos anos. “Ele não está a relativizar Rossi”, antes pelo contrário, diz Roberto Cremascoli, mas quer apenas explicar que Rossi não estava tão interessado nele quanto ele estava no italiano. “Quando nós lhe propusemos este encontro, Siza disse que achava um pouco desequilibrado. Que Rossi era alguém que para a História da Arquitectura ou para a história da Bienal de Veneza tinha muito mais importância do que ele. ‘Vocês estão-me aqui a colocar em confronto com uma pessoa que tem um capital intelectual enorme, pelo menos em Itália.’”
Como lembra Siza num dos vídeos, Aldo Rossi morreu demasiado cedo num desastre de automóvel. Por isso, afirma Nuno Grande, é difícil comparar as obras dos dois, uma vez que ele já não está aqui para provar o que faria. Os seus anos americanos, que podem ser descritos, como Siza faz elegantemente, pelos anos em que correu muitos riscos, não foram bem compreendidos. É quando Rossi se aproximou mais do pós-modernismo americano, “mais epidérmico”, explica Nuno Grande.
“O Siza continua a ser completamente inovador naquilo que faz. Todos os dias reinventa os arquétipos e os heterótipos que os dois andaram a debater nestes encontros.” Nuno Grande e Roberto Cremascoli dizem que não se trata de comparar dois percursos arquitectónicos, mas de promover um encontro. “Interessava-nos esta relação, porque os dois concorreram para a Giudecca e estávamos em 2016, quando passavam 50 anos sobre o livro do Rossi e 40 sobre o primeiro encontro dos dois arquitectos na Bienal de Veneza.”
As hesitações de Siza, dizem os comissários, também podem ter a ver com a sua vontade de não ferir susceptibilidades. “O grande amigo italiano de Siza é o Gregotti. É o que escreve sobre Siza em Itália, é o que vem a Portugal várias vezes e fica em casa do Siza. Tem uma relação de amizade com o Siza para lá da arquitectura. O Siza com o Rossi tem apenas uma relação de par, de arquitecto para arquitecto.”
No CCB, um edifício desenhado por Gregotti, a exposição também vive deste cruzamento involuntário com a arquitectura italiana. Se na Giudecca a mostra explorava o lado “sujo” de um estaleiro, como dizem os comissários, na Garagem Sul do CCB encontra a métrica de Grogotti e explora o lado “limpo” de um espaço que se divide como uma igreja de três naves.
O lado mais espectacular da exposição — e generoso, como diz Cremascoli — está bem à vista na cacofonia que resulta da exibição em simultâneo dos quatro documentários Vizinhos, feitos pela equipa da SIC (Cândida Pinto e Rodrigo Lobo), que acompanham o regresso de Siza às quatro experiência de habitação social no Porto, Haia, Berlim e Veneza e a conversa com as pessoas que agora moram nas casas. Essa sobreposição de vozes, explicam, mostra a magia da viagem. “Não sei que outro arquitecto Pritzker se confrontava com uma coisa deste género. Chegar e entrar nestas casas após 30, 25 ou 20 anos”, diz Cremascoli. Nuno Grande acrescenta: “Estes vídeos foram vistos por mais de um milhão de pessoas. Foi por causa da arquitectura, do arquitecto e das pessoas. A exposição mostra, sem grandes demagogias, que a arquitectura também são as pessoas.”
Como escreve Álvaro Siza num texto que encontramos no CCB, a propósito da viagem aos quatro bairros, a Europa está diferente: “Visitamos agora vários apartamentos em Schilderswijk [Haia], relembrando a experiência dos anos 80. Vinte anos depois. Alguma coisa mudara, em Haia como em grande parte da Europa. A decisão de construir habitação para os mais necessitados (emigrantes ou não), através de um programa participado, não corresponde à realidade de hoje. Apercebi-me no Schilderswijk de que a distribuição dos habitantes evoluíra no sentido da formação de comunidades de uma mesma origem, num relativo isolamento, mas sem conflitos. Faltava, contudo, ou diminuíra significativamente, o número de famílias holandesas. ‘Dizem que somos perigosos’, explicou-me um dos emigrantes.”