O narrador entra num bar

Numa escrita breve e intensa, este é um livro que se ergue com a força do seu estilo, e onde se procuram as palavras para as separar do real.

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Rolin regressa aos seus temas preferidos: amor, morte e literatura; e às suas histórias de amor obsessivas NUNO FERREIRA SANTOS

Como é característico nos livros do francês Olivier Rolin (n. 1947) também a trama deste seu mais recente romance, Veracruz, surge no decurso de uma das viagens do narrador; desta vez durante uma viagem à cidade mexicana de Veracruz, para onde fora convidado pela universidade do Estado “para fazer umas conferências sobre Proust”, e às quais dera o título de “Proust irrita-me”. Rolin regressa assim aos seus temas preferidos: amor, morte e literatura; e às suas histórias de amor obsessivas (porque fora do mundo), trágicas (porque sinceras), talhadas no escuro do jogo de dados do acaso, malditas (porque o narrador não se suporta), eternas (porque verdadeiras): “A nossa relação durou pouco, mas lembrar-me-ei dela para além da morte, se a eternidade, ou algo semelhante, for uma opção possível.”

Num dia de Junho de 1990, o narrador entra num bar e espera uma jovem cantora cubana, Dariana, que, é-nos dito de imediato, “nunca chegou”. Vinte e cinco anos depois, no outro lado do mundo, conta-nos o que aconteceu por esses dias breves e intensos em que prolongou a espera na cidade com a esperança de reencontrar a mulher. Ou melhor: não há muito para contar, e ele recorre a um manuscrito, um drama barroco em quatro actos (quatro relatos trágicos), que misteriosamente lhe chegou às mãos (sem saber quem lho enviou ou quem o escreveu) por esses dias em que ele esperava Dariana, perdido no álcool e nos abismos da memória. É uma história de paixões ferozes contada a quatro vozes, e em registos que se diferenciam bem uns dos outros: no centro está uma mulher, Susana, que vive num palácio com ambiente velasquiano, rodeada por três homens apaixonados por ela: Inácio, ex-jesuíta, devasso, e criado servil que lhe recita Quevedo; Miller, o mafioso marido bruto; e El Griego, o pai vil e incestuoso. O narrador tenta encontrar nestas histórias, cheias de paixões insanas, de cenas de sexo e de violência, algo que as ligue à cantora cubana que nunca chegou. Ou lido também de outra forma: o narrador inquire sobre o desejo que liga homens e mulheres, sobre o sentido da vida (ou talvez ainda mais, sobre “o sentido na vida”).

Nesse manuscrito — o romance valeria sópor ele — que lhe foi anonimamente entregue, o narrador tenta encontrar os rastos de Dariana, como autora ou como personagem, e há de facto pormenores que remetem para a sua (deles) breve história: os passeios junto ao mar, a pistola que ela sempre carregava dentro de um saco, o disparar certeiro em borboletas em vôo (no caso de Dariana, eram morcegos). Tenta estabelecer a relação entre o real e o fictício, o vivido e o escrito, a luz e a sombra, mas sempre em vão porque o mundo, e cada fragmento dele — as histórias — não são mecanismos engrenados, e os nós entre eles são poucos e resultam do acaso. E mais uma vez, o narrador remete para uma citação de Pierre Bayard, usada já num anterior livro de Olivier Rolin, Baku: “É a vida que decalca a escrita, e não a escrita que imita a vida”. Veracruz é assim mais um romance que assenta num elegante jogo no fio da navalha, entre a ficção e a pretensa realidade que temos dificuldade em entender.

Numa escrita breve e intensa, este é um livro que se ergue apenas com a força do seu estilo, uma escrita de difícil equilíbrio onde se procuram as palavras para as separar do real demasiado “ofuscante”. Por aqui passam as histórias de um amor que perdura na memória — nisto a fazer lembrar um texto antigo de Rolin, Bar des Flots Noirs, em que o narrador evoca as mulheres e os escritores que o marcaram. Olivier Rolin inquire a ficção para saber que a realidade é o que importa, que esta imita aquela, e que cada momento vivido e belo, como se nos fosse dado, é uma finalidade por si mesmo, “uma perfeição que temos de deixar entrar em nós”, e que o resto talvez não importa para nada — ou que talvez importe (a dúvida surge no final do livro).

O mundo, neste escritor francês cujos livros são sempre atravessados por uma silhueta de mulher fugidia, é como um lançar de dados, como um caleidoscópio cujas faces coloridas se vão recompondo sem cessar para formarem novas figuras.

Olivier Rolin, ao remeter quase todos os seus livros para o tema do amor obsessivo e fugidio, parece repetir como estribilho: “São instantes eternos, porque confundem todas as modalidades do tempo que conhecemos, estes em que vemos a mulher amada”. E em Veracruz, mais uma vez, fá-lo muito bem.

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