Fake News
Ao ler este “não-romance” de Sinclair Lewis que é uma devastadora análise política e uma meditação sobre os perigos do populismo, a pergunta que continua sem resposta é esta: será que não aprendemos nada com a História?
Doremus Jessup, um jornalista pachorrento que aprecia o conforto do modo de vida americano, acompanha a campanha, para a presidência, de um obscuro candidato que parece estar a granjear, a cada dia que passa, um maior número de adeptos. Habituado a uma vida relativamente calma — uma boa mulher, um cão, uma casa acolhedora, amigos, vida social, a escrita regular de editoriais — começa a sentir-se incomodado com a ascensão de Berzelius (Buzz) Windrip, no que diz respeito ao apoio popular. A princípio, Windrip é um candidato improvável e há quem afirme que a eleição de um homem inconstante, histriónico, com chavões como promessas e uma agressividade discriminatória, será impossível num país como os Estados Unidos da América, terra de gente livre e corajosa. Mas Windrip faz declarações inflamadas, promete resolver os problemas com o México, construir estradas e limitar as despesas com a Cultura, afirma que está empenhado em baixar os impostos, em distribuir a riqueza pelos menos favorecidos e em cortar as importações para que os americanos, com o seu orgulho restaurado e um desígnio nacional — qual luz ofuscante no horizonte — possam consumir apenas os seus produtos, virando costas às nefastas influências estrangeiras.
Se alguns leitores mais distraídos ficarem com a impressão, no início de Isso não pode Acontecer Aqui de Sinclair Lewis, que esta obra trata da subida ao poder de Donald Trump, da sua campanha e da sua administração, estarão a incorrer num erro compreensível. (O New York Times noticiou que, em Novembro de 2016, quando Trump ganhou a presidência, este livro esgotou em todo o lado, incluindo na Amazon). Mas, na realidade, Lewis escreveu este romance em 1935 e publicou-o um ano depois, convictamente empenhado em veicular um sério aviso em relação ao poder assustador que Hitler estava a consolidar, na Alemanha. Lewis começou por ser jornalista, era um homem inteligente e atento e tinha a noção, ao contrário de muitos dos seus concidadãos, da catástrofe iminente, na Europa.
O ressurgimento de Sinclair Lewis é, no mínimo, merecido. Apesar de ter sido o primeiro escritor norte-americano a ganhar o Prémio Nobel, a sua obra não resistiu ao juízo do tempo com a mesma pertinácia que alguns dos seus contemporâneos, como Hemingway ou Scott Fitzgerald. É verdade que Lewis não possuía a força viril do primeiro nem o dramatismo poético do segundo nem, tão pouco, a riqueza lexical e imagética de Faulkner, embora, à semelhança deste último, tenha criado um lugar, a cidade de Zenith (em Babbitt) para aí colocar as suas ambíguas, dramáticas e por vezes hilariantes personagens, representantes dos diversos extractos sociais e das diferentes ideologias dos E.U.A.
Lewis nunca perdeu o seu estilo de pendor jornalístico, incisivo, sarcástico e muitas vezes devastador, agilmente trabalhado no já referido Babbitt, onde satiriza a cultura mercantilista americana, e em Elmer Gantry que tem como protagonista um ministro evangélico profundamente hipócrita.
Em Isso não pode Acontecer Aqui cria uma narrativa distópica sobre a ascensão ao poder de um déspota que promete, em campanha, fazer da América um país grandioso. Outra vez!
E, assim, tal como Trump — e para surpresa de muitos — Windrip é eleito, derrotando Roosevelt, empenhando-se imediatamente em destruir as instituições democráticas, substituindo-as por uma tirania em que a militarização do país e o fecho de fronteiras são apenas algumas das medidas implementadas. Passadas cerca de cem páginas, Lewis dá-nos conta do desenvolvimento da situação. Windrip revela-se como um ser narcisista, misógino, racista, demagogo, utilizando uma linguagem, assustadoramente maníaca, cada vez mais bombástica e colorida, inundada de slogans simplistas. Só respeita quem “tem mais de um milhão de dólares” e persegue os seus inimigos políticos, onde se inclui o pobre Doremus Jessup, cujos editoriais acabam por o atirar para um campo de concentração e, mais tarde, para o exílio, enquanto membros da sua família são torturados e mortos. Windrip apoia-se num conselheiro que escreve, como autor fantasma, o livro A Hora H, uma espécie de Mein Kampf ianque, onde está condensado o seu “pensamento”, dirigido ao seu grupo de apoiantes, Os Homens Esquecidos. Depois, Windrip retira o poder ao Congresso, arma milícias que perseguem os seus oponentes e instala o terror, enquanto o senador, também derrotado, Walt Trowbridge, forma uma organização chamada New Underground, que se organiza como resistência, a partir do exílio, no Canadá. A acção desenvolve-se com Windrip a parecer-se cada vez mais com Hitler e menos com Trump — é mais inteligente e menos ignorante — com um desfecho dramático, que inclui uma inevitável guerra civil, depois de uma intervenção dos militares, que o retiram da Presidência.
Em Isso não pode Acontecer Aqui, Lewis mistura factos e personagens reais — F.D. Roosevelt, a corrida para as presidenciais de 1936, nos anos sombrios depois da Grande Depressão e da promessa do New Deal, a semelhança entre a figura de Windrip com a do senador do Luisiana, Huey Long, assassinado em 1935 — com uma ficção realisticamente assustadora que adverte para possibilidades arrepiantes. No entanto, Sinclair Lewis não foi o único a utilizar a sua escrita como arma “didáctica” e caucionária contra os perigos da demagogia e do populismo.
Em 2004, Philip Roth recuperou o tema das eleições presidenciais quando publicou A Conspiração contra a América, uma autobiografia ficcionada que é, também, um romance “histórico” passado numa realidade alternativa. Nele, o jovem Philip e a sua família são obrigados a viver com a ameaça crescente do anti-semitismo, depois de, nas eleições presidenciais de 1940, Charles Lindberg, o herói da aviação e admirador de Hitler, ter sido eleito, mais uma vez em detrimento de Franklin Delano Roosevelt. Os efeitos são devastadores, tanto nos Estados Unidos como na Europa, onde a Alemanha nazi exerce o seu domínio. A trama é rocambolesca, com ênfase na desinformação, na propaganda e na chantagem por parte de um governo estrangeiro que, assim, interfere nas eleições. Já, em 1962, Philip K.Dick desenvolve outra história alternativa em que a Alemanha nazi e o Japão imperial ganham a IIª Grande Guerra em O Homem do Castelo Alto e existem vários escritores e pensadores que se dedicam a tais especulações: Churchill imaginou uma América onde os estados confederados do Sul venciam a Guerra Civil (If Lee Had Not Won the Battle of Gettysburg”, Michael Chabon, em 2007, inventou um Estado de Israel localizado no Alasca, em O Sindicato dos Polícias Iídiches, Margaret Atwood em O Diário de uma Serva (1986), agora em formato de série televisiva, imagina um futuro próximo em que um estado cristão teocrático, totalitário, toma conta dos Estados Unidos e até Vladimir Nabokov, no seu Ada ou Ardor (1969), desloca as suas memórias de infância para um território americano dominado por uma Rússia czarista.
Quem se der ao trabalho de ler obras deste teor, ficará talvez surpreendido ao constatar que a realidade, em geral, acaba por se revelar bem melhor do que é imaginado. A Guerra Civil americana acabou com a escravatura, Hitler foi derrotado e a xenofobia, a misoginia, a homofobia e o racismo são publicamente condenados, numa boa parte do globo. No entanto, Trump continua na Casa Branca, as várias patologias (fobias) ganham terreno na Europa e os média e redes sociais contribuem, cada vez mais, para a desinformação, alheando-se da análise rigorosa dos factos. Ao ler este “não-romance” de Sinclair Lewis que é, essencialmente uma devastadora análise política e uma meditação sobre os perigos do populismo, a pergunta que continua sem resposta é a seguinte: será que não aprendemos nada, mesmo nada, com a História?