A “guerra da sucessão” ou a última batalha dos “antigos combatentes”
O poder de Mugabe assenta na legitimidade da “guerra de libertação”. O “pronunciamento” dos veteranos militares não é contra ele, é contra a ameaça de serem despojados do poder.
O rei está velho, 93 anos, perto do fim, e vários clãs disputam a sucessão. Tal parece ser o sentido do “golpe de estado” de ontem em Harare. Em 37 anos de poder, Robert Mugabe resistiu a todos os desafios. O “pronunciamento” dos veteranos militares não é contra ele, é contra a ameaça de serem despojados do poder pela “primeira dama”, Grace Mugabe. É o pouco que ontem se sabia.
O poder de Mugabe assenta na legitimidade da “guerra de libertação”. Os veteranos da guerrilha dominam o Exército e a Força Aérea e assumem-se como garantes do regime dominado por Mugabe e pela União Nacional Africana do Zimbabwe-Frente Patriótica (ZANU-FP). No ano passado, no quadro da feroz luta pela sucessão, o chefe das Forças Armadas, general Constantino Chiwenga, avisou que os militares apenas reconheceriam um governo dirigido por um veterano da “guerra de libertação”. A idade também forçará os veteranos à reforma. Mas, antes disso, quererão assegurar o controlo da “transição”, perante as ambições de Grace e da emergente “geração dos 40”.
Foi durante a guerrilha, e perante a ameaça de aniquilamento, que a ZANU unificou os seus aparelhos político e militar. E, após a independência (1980), Mugabe impôs a sua hegemonia num combate fratricida contra a outra guerrilha, a da União Nacional Africana do Zimbabwe (ZAPU), de Joshua Nkomo (1917-99).
Isto faz-nos revisitar brevemente o passado.
Zanu e ZAPU
Desfeita em 1965 a Federação da Rodésia-Niassalândia — domínio britânico que englobava o Malawi, o Zimbabwe e a Zâmbia — a Rodésia do Sul “branca” declarou a independência unilateral perante Londres. Dirigida por Ian Smith, impôs um regime de apartheid inspirado na África do Sul. Assim, os dois movimentos de libertação viram-se numa posição particular: entre o colonizador britânco e a “Rodésia branca”, entre uma luta anticolonial e uma guerra civil rodesiana. A ZAPU, a organização mais antiga, era apoiada pela URSS e a ZANU pela China. Em 1975, a ZANU está à beira da derrota total. É salva pela a independência de Moçambique, que tudo muda.
Proclamada a independência, Mugabe é eleito Presidente. Segue-se uma luta sem quartel para eliminar Nkomo, o líder mais prestigiado. Mugabe apoia-se no “factor tribal”. Pertence à maioria shona. Nkomo pertence à minoria ndebele. A ZAPU tenta manter as suas bases no Sul. Mugabe lança uma ofensiva e uma repressão sangrenta contra os rivais e a população ndebele. Nkomo defendia um regime democrático sem referências étnicas. Mugabe impôs um regime da “maioria”, isto é, assente na etnia dominante.
Foi ressuscitada a própria rivalidade tribal précolonial como instrumento de legitimação do poder. Mais tarde, para desviar o crescente descontentamento da população e o risco de revoltas, Mugabe lançará uma ofensiva de expropriação dos fazendeiros brancos, que asseguravam a produção agrícola do país. Foi um desastre económico.
Mugabe deixará uma pesada herança: transformou um país muito rico e com uma população educada no mais pobre da África Austral.
O desafio eleitoral
Perante a crise nacional, o sindicalista Morgan Tsvangirai lança um novo partido em 1999, o Movimento para Mudança Democrática (MDC) que cria uma ameaça séria a Mugabe e ao monopólio do poder pela ZANU. Tem uma base eleitoral muito mais larga que a de Nkomo: além do apoio do Sul dos ndebele, mobiliza a maioria do eleitorado urbano (ele próprio pertence à etnia shono). Desafia Mugabe nas presidenciais de 2002 e, sobretudo, nas de 2008, em que vence na primeira volta, o que desencadeia uma vaga de repressão contra os seus apoiantes. Nos actos eleitorais, os militares e a polícia garantem a fraude.
Numa manobra hábil, Mugabe fez um simulacro de partilha do poder, nomeando Tsvangirai primeiro-ministro entre 2009 e 2013. Quem perdeu no negócio foi o opositor.
E agora?
O “pronunciamento” militar teria como objectivo repor na vice-presidência o “antigo combatente” Emmerson Mnangagwa, demitido na semana passada. Depois, Mugabe renunciaria. E, através de Mnangagwa, a velha guarda da ZANU conservaria o seu poder e os seus negócios, como o dos diamantes. Chamam-lhes a “facção Lacoste”. Mnangagwa tem a alcunha de “crocodilo” porque “nunca fazia prisioneiros” e, nos anos 1980, notabilizou-se no massacre dos ndebele.
Nos últimos anos o Zimbabwe tem sido palco de grande agitação social. Pouco sabemos do que se passa em Harare. Resta a interrogação: e se o confronto derrapar e se tornar num conflito aberto? É um cenário que tira o sono aos vizinhos do Sul e do Leste de África.