Drácula ou o Desmortal, um escuro causado pelo excesso de luz
Peça do Coletivo Soul aborda a personagem de Bram Stoker para a trazer para a contemporaneidade. O resultado é uma encruzilhada.
Esta não é uma peça sobre vampiros. Pelo menos não com a estética e carga simbólica com que eles são hoje normalmente representados. “Esse imaginário dos vampirinhos de Hollywood, que brilham no sol, que se tornaram vegan e já não querem beber sangue, que passaram a ter crises morais e se culpam.” Esta é a imagem que nos chega após de milhares de adaptações teatrais, cinematográficas e literárias da personagem criada por Bram Stoker em 1897, refere André Feitosa, que veste a personagem na peça Drácula ou o Desmortal, que se estreia nesta quarta-feira no Teatro Académico Gil Vicente (TAGV), em Coimbra.
Por oposição a esse retrato superficial, o Drácula é hoje uma figura que condensa em si os “lugares de uma nova marginalidade europeia”, entende. O espectáculo resulta de uma co-produção do TAGV com o Coletivo Soul, um grupo brasileiro que vem de Fortaleza. A montagem deste Drácula parte do texto original para teatro de Bram Stoker que, para além do célebre romance, escreveu também uma peça com o título Dracula or the Undead.
A obra do escritor irlandês serviu de “chão”, conta a escritora portuguesa Patrícia Portela, que, com o brasileiro Alexandre del Farra, assina a dramaturgia desta peça. Portela traduziu o texto vitoriano, ao qual foram acrescentadas reflexões e considerações suas, de Del Farra e do encenador, Thiago Arrais. O resultado “não é um texto, não é uma colaboração, não é um dueto, não é um trio”. É antes “uma conversa”. Uma conversa que André Feitosa, que participou na investigação que contribuiu para a criação artística, descreve com a palavra “encruzilhada”.
O Coletivo Soul foi em busca de material para alimentar este Drácula em lugares tão distintos como França, Roménia, Alemanha ou Amazónia, algo que se tornou possível porque o projecto do Coletivo Soul foi distinguido com o Prémio Rumos Itaú Cultural 2015/16, que se traduziu num apoio de 50 mil euros.
E o que pode trazer-nos de novo uma personagem com 120 anos? “O homem, ao querer saber tanto, de tanta luz, cegou.” É a escuridão causada pelo excesso de luz, aprofunda a Patrícia Portela. Por isso esta peça é também sobre o “iluminismo e o Homem moderno”. “[Nesta modernidade] não queremos conhecer. Queremos ter certezas. E a certeza diminui a capacidade de conhecimento”, sublinha a dramaturga.
Abordar esta figura no século XXI, entende Feitosa, não é mais do que “uma tentativa de abrir camadas”, uma “encruzilhada no tempo”. Socorrendo-se de um conceito do filósofo italiano Giorgio Agamben, o membro do Coletivo Soul explica que, no fundo, Drácula “é uma grande parede do tempo para falar da Europa, de várias eras e geografias”.
Uma proposta de interpretação
Sobre o trabalho a várias mãos Patrícia Portela regressa à ideia de camadas, em que não se pode dizer que o texto alimentou a cena, nem que o inverso tenha acontecido. O que se passa em palco é um encontro de várias pesquisas que resulta nessa sobreposição de camadas. Neste cenário, “não existe um entendimento comum. Existem vários Dráculas, há espaço para várias vozes”, acrescenta.
O que sobe ao palco pretende também questionar as premissas com que cada um de nós concebe o mundo. É a partir desta interrogação que vale a pena explicar o motivo pelo qual o Coletivo Soul foi à Amazónia, se o objectivo passava por abordar um texto anglo-saxónico com mais de um século de existência. André Feitosa conta que na região da Cabeça do Cachorro, na Amazónia, “foram mapeadas 11 cosmogonias (descrições hipotéticas de criação do mundo) para narrar o começo do mundo fora do repertório ocidental”.
A criação de Bram Stoker emerge assim como chave de “outras temporalidades que não estão acessíveis, mas continuam presentes”. “E continuam a contar outras narrativas que a gente não sabe operar.” O escritor fazia parte de círculos ocultistas, numa época em que “intelectuais estavam tentando trazer velhas narrativas para recontar a história do mundo através do simbolismo”. Da ideia de Europa que não começa na Odisseia de Homero. “Será que a gente suporta uma outra ontologia durante duas horas de espectáculo?”, pergunta Feitosa.
Outra camada de leitura é a “encruzilhada” desta personagem com origem na Roménia, um país que serve de porta entre o Leste europeu e a “Europa que venceu, de Londres e da Revolução Francesa”. “Esta é uma peça da Europa, construída pelas margens da Europa”, sintetiza o actor. Neste sentido, o facto de a estreia deste espectáculo ser em Coimbra – a cidade onde está instalada a universidade que teve um papel preponderante na colonização portuguesa – não é inocente, servindo igualmente como confronto com o passado.
Depois de uma outra sessão na quinta-feira, o projecto segue para o Brasil, onde tem apresentações previstas em Fortaleza, São Paulo e no Rio de Janeiro. A ideia é regressar depois à Europa, mas ainda não há datas marcadas.