Regulação da Internet
Há escolhas a fazer que podem melhorar o funcionamento dos mercados digitais e a qualidade da vida democrática.
Nos alvores da massificação da banda larga era claro que a união de um operador de redes de telecomunicações e de um produtor de conteúdos podia criar pelo menos dois problemas de concorrência. A empresa que resultasse da união poderia negar aos outros operadores acesso aos seus conteúdos e poderia negar aos outros produtores de conteúdos acesso aos seus assinantes. Entendia-se então que estes problemas, e outros, se existissem, poderiam ser resolvidos através da legislação de defesa da concorrência. Ainda se entende assim — e bem.
Mas nos últimos anos houve um impulso que contrariou a tendência, que vinha do início da liberalização, de transferir competências das autoridades reguladoras setoriais para as autoridades de concorrência. Com esse impulso, um princípio de não discriminação, ou de neutralidade de rede, presente na expansão da Internet, foi densificado na União Europeia como um princípio de livre escolha dos utilizadores, e competências para a sua implementação foram atribuídas às autoridades reguladoras setoriais de comunicações eletrónicas. Isto significa que qualquer que seja o entendimento de uma autoridade da concorrência num caso concreto, a autoridade reguladora nacional das telecomunicações tem competências próprias, e aliás mais abrangentes, que não pode deixar de exercer, com a natural criatividade adequada ao caso em análise.
Assim, na União Europeia, existem instrumentos e autoridades para lidar com os efeitos concorrenciais da integração de operadores de telecomunicações e de produtores de conteúdos digitais. Nos Estados Unidos também. Aliás têm tido alguma coisa para fazer, com a tentativa, em curso, de aquisição da TimeWarner pela AT&T ou, antes, com a aquisição da NBCUniversal e da Dreamworks pela Comcast e da Yahoo pela Verizon. Entre nós, temos a tentativa de aquisição da TVI pela Altice. Isto, como é óbvio, sem discutir a bondade de cada decisão, ou mesmo da falta de decisão.
Entretanto, na Internet apareceram outras fontes de poder de mercado. As grandes plataformas digitais beneficiam da falta de informação que os consumidores têm sobre o valor e sobre a utilização que é feita dos seus dados pessoais, assim como das vantagens da dimensão quando há falta de conectividade e de mobilidade entre plataformas. Por exemplo, podemos mudar de operador de telecomunicações e manter o número e a informação a ele associados, mas isso não acontece geralmente quando pretendemos mudar de plataforma. Sendo assim, as grandes plataformas podem mais facilmente criar barreiras à entrada, e constituir ou reforçar posições dominantes. Também aqui se deve dizer que alguns destes problemas poderiam ser abordados através da legislação de defesa da concorrência. Mas tendo-se admitido que esta não era suficiente para garantir a neutralidade de rede e a liberdade de escolha, deve ser difícil aceitar que não é necessária alguma regulação ex ante adicional para promover a concorrência nos mercados digitais. Ou seja, o que há a discutir é a utilidade de regulação ex ante de produtores de conteúdos online e de plataformas digitais, em articulação com a regulação ex ante dos operadores de comunicações eletrónicas.
Coisa diferente é a preocupação que existe com as notícias falsas, ou com as ameaças ao pluralismo. O que aqui está em causa não se reduz à concorrência entre operadores e plataformas. Está em causa o que pode ser entendido como um bem maior, relacionado com a qualidade da vida pública democrática. Aqui também, o quadro legal europeu poderá estar preparado para resolver problemas tradicionais que resultem da integração de operadores de telecomunicações e de televisões, mas não é evidente que o esteja para acudir a todos os potenciais problemas que os mercados digitais podem criar, e estão a criar, em matéria de manipulação de informação, falta de rigor ou falta de pluralismo.
Assim, estamos numa altura em que a “regulação da Internet”, expressão intuitiva, à falta de melhor, deve continuar a ser discutida. Digo continuar, porque discussão, e legislação, existem sobre proteção de dados pessoais, privacidade e cibersegurança. O lado novo, e historicamente contraintuitivo, é a discussão da regulação da Internet para proteger a concorrência e a liberdade de escolha e salvaguardar o rigor e a liberdade de expressão. Durante muito tempo a hipótese implícita de quase toda a gente é que “a Internet” protegia tudo isto — bastava para o efeito que os reguladores a deixassem em paz. Infelizmente, nos últimos anos esta ideia tem sido refutada pela realidade e as próprias plataformas digitais têm vindo a aceitar que há problemas a resolver por intervenção regulativa e que elas podem e devem ajudar a resolvê-los. De uma posição de considerar as grandes plataformas como utilities e regulá-las em conformidade, a outra posição, não fazer nada, há escolhas a fazer que podem melhorar o funcionamento dos mercados digitais e a qualidade da vida democrática.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico